Por Tarso Genro
Dona Marisa Letícia foi uma pessoa comum, como somos a maioria dos brasileiros, com as nossas humanidades cheias de grandezas e defeitos. Pessoa boa, educada, fraterna e sensível. Só que Marisa Letícia, pela sua relação amorosa com Lula, com quem realizou e cuidou de uma família – um político originário da classe operária e uma mulher da mesma origem – foi jogada num turbilhão político. Primeira Dama do país, respeitosa dos protocolos, foi consciente da suas responsabilidade, mas não para estar “atrás” de um grande homem, mas ao seu lado. Nos seus momentos de glórias, vicissitudes e resistência, lá estava a “Galega”, como lhe chamava Lula, cumprindo o papel que o destino e a militância lhe reservou.
Perante a morte, ou a doença grave de uma pessoa, paira uma áurea de respeito e expectativa. É o sofrimento pela finitude que nos une. As pessoas podem ser secretamente indiferentes, desejar até – por falta de comiseração humana – que uma pessoa desapareça por ser sua inimiga pessoal, mas não se manifestam, por respeito e humanidade. Podem não aceitar a morte de alguém por amor, afeto ou admiração, ou, – aqueles que momentaneamente são expectadores da morte de outrem – podem até apagar desavenças e desejar que a vida de alguém prossiga, mesmo que ele não seja um ser querido, por mero respeito ao semelhante. O não-comum, o “inumano”, o abjeto, no sentido que lhe empresta a sociabilidade do homem simples e as principais filosofias e religiões, é desejar a morte do outro sem motivos. Desejá-la por puro ódio.
Hegel disse que “a vida é um equilíbrio muito instável” e do reconhecimento, pelo ser humano, desta instabilidade originária dos organismos, é possível que tenham surgido os sentimentos transcendentes das religiões. Talvez daí venha, também, a busca de proteção das comunidades primitivas, contra o “perigo externo” – tanto vindo da natureza como de outras comunidades – e assim o próprio preparo para “adiar” esta “finitude”. A morte fisiológica, como padrão universal da individualidade humana, é o elo absoluto que une a nossa espécie. Por isso ela tem, normalmente, um protocolo de respeito, de contenção de desavenças e mesmo de simples consideração humana, que envolve as pessoas normais.
As manifestações de regozijo, pela doença e morte de Dona Marisa, não são estranhas na História. Trata-se do mesmo sentimento que gera aquilo que Hannah Arendt classificou, equivocadamente na minha opinião, como “banalidade do mal”. É uma manifestação, em escala reduzida, do mesmo sentimento de indiferença dos policiais nazistas observando famílias inteiras, com as suas crianças, entrando nas câmaras de gás dos campos de concentração; do mesmo sentimento do torturador das salas de tortura dos processo de Moscou, “cumprimentando” o velho bolchevique por sua coragem de “não delatar” os supostos “trotskistas”; do mesmo sentimento dos Torquemadas e Savanarolas, nos idos da inquisição, quando queimavam e matavam em nome de Deus. É o mesmo sentimento despido da mínima humanidade. É onde começa tudo, tanto para o aniquilamento do indivíduo como do grupo adverso, seja ele qual for. Tem um nome: é o fascismo.
É preciso ter consciência que estas pessoas, que cultuam a doença e a morte como instrumento político – ou vingança pelas suas frustrações existenciais – ou mesmo simples ódio de classe, tiveram coragem de se manifestar desta forma porque as suas taras tiveram “passe-livre”. Uma grande parte da mídia tradicional – apoiando e induzindo parcelas das instituições do Ministério Público, do Poder Judiciário e da Polícia Federal – não hesitou, para atacar, neutralizar e tentar prender Lula, em envolver Dona Marisa no mesmo palco degradante da “exceção”. Esta ocorre, quando na democracia, o “devido processo legal”, que pode atingir qualquer cidadão, seja ele Presidente ou integrante do MP, torna-se um assecla político do golpismo.
Se estas pessoas que festejaram a morte de Dona Marisa foram motivadas pela grande mídia a manifestar o seu contentamento infame, de forma livre e aberta, sem medo de punição da sua própria consciência, é possível imaginar as sequelas, sobre Dona Marisa, das humilhações públicas despejadas sobre a sua pessoa. Dona Marisa, uma brasileira comum, digna, simples, companheira do seu marido, partiu triste e sofrida. Mas partiu sem culpa e sem medo. O que teremos depois destas muralhas de infâmias, que conseguiram tornar a luta contra a corrupção um instrumento de dissolução da República, ainda não sabemos. Dona Marisa, todavia, não estará mais aqui para saber.
* Tarso Genro foi Governador do Estado do Rio Grande do Sul, prefeito de Porto Alegre, Ministro da Justiça, Ministro da Educação e Ministro das Relações Institucionais do Brasil.
Dona Marisa Letícia foi uma pessoa comum, como somos a maioria dos brasileiros, com as nossas humanidades cheias de grandezas e defeitos. Pessoa boa, educada, fraterna e sensível. Só que Marisa Letícia, pela sua relação amorosa com Lula, com quem realizou e cuidou de uma família – um político originário da classe operária e uma mulher da mesma origem – foi jogada num turbilhão político. Primeira Dama do país, respeitosa dos protocolos, foi consciente da suas responsabilidade, mas não para estar “atrás” de um grande homem, mas ao seu lado. Nos seus momentos de glórias, vicissitudes e resistência, lá estava a “Galega”, como lhe chamava Lula, cumprindo o papel que o destino e a militância lhe reservou.
Perante a morte, ou a doença grave de uma pessoa, paira uma áurea de respeito e expectativa. É o sofrimento pela finitude que nos une. As pessoas podem ser secretamente indiferentes, desejar até – por falta de comiseração humana – que uma pessoa desapareça por ser sua inimiga pessoal, mas não se manifestam, por respeito e humanidade. Podem não aceitar a morte de alguém por amor, afeto ou admiração, ou, – aqueles que momentaneamente são expectadores da morte de outrem – podem até apagar desavenças e desejar que a vida de alguém prossiga, mesmo que ele não seja um ser querido, por mero respeito ao semelhante. O não-comum, o “inumano”, o abjeto, no sentido que lhe empresta a sociabilidade do homem simples e as principais filosofias e religiões, é desejar a morte do outro sem motivos. Desejá-la por puro ódio.
Hegel disse que “a vida é um equilíbrio muito instável” e do reconhecimento, pelo ser humano, desta instabilidade originária dos organismos, é possível que tenham surgido os sentimentos transcendentes das religiões. Talvez daí venha, também, a busca de proteção das comunidades primitivas, contra o “perigo externo” – tanto vindo da natureza como de outras comunidades – e assim o próprio preparo para “adiar” esta “finitude”. A morte fisiológica, como padrão universal da individualidade humana, é o elo absoluto que une a nossa espécie. Por isso ela tem, normalmente, um protocolo de respeito, de contenção de desavenças e mesmo de simples consideração humana, que envolve as pessoas normais.
As manifestações de regozijo, pela doença e morte de Dona Marisa, não são estranhas na História. Trata-se do mesmo sentimento que gera aquilo que Hannah Arendt classificou, equivocadamente na minha opinião, como “banalidade do mal”. É uma manifestação, em escala reduzida, do mesmo sentimento de indiferença dos policiais nazistas observando famílias inteiras, com as suas crianças, entrando nas câmaras de gás dos campos de concentração; do mesmo sentimento do torturador das salas de tortura dos processo de Moscou, “cumprimentando” o velho bolchevique por sua coragem de “não delatar” os supostos “trotskistas”; do mesmo sentimento dos Torquemadas e Savanarolas, nos idos da inquisição, quando queimavam e matavam em nome de Deus. É o mesmo sentimento despido da mínima humanidade. É onde começa tudo, tanto para o aniquilamento do indivíduo como do grupo adverso, seja ele qual for. Tem um nome: é o fascismo.
É preciso ter consciência que estas pessoas, que cultuam a doença e a morte como instrumento político – ou vingança pelas suas frustrações existenciais – ou mesmo simples ódio de classe, tiveram coragem de se manifestar desta forma porque as suas taras tiveram “passe-livre”. Uma grande parte da mídia tradicional – apoiando e induzindo parcelas das instituições do Ministério Público, do Poder Judiciário e da Polícia Federal – não hesitou, para atacar, neutralizar e tentar prender Lula, em envolver Dona Marisa no mesmo palco degradante da “exceção”. Esta ocorre, quando na democracia, o “devido processo legal”, que pode atingir qualquer cidadão, seja ele Presidente ou integrante do MP, torna-se um assecla político do golpismo.
Se estas pessoas que festejaram a morte de Dona Marisa foram motivadas pela grande mídia a manifestar o seu contentamento infame, de forma livre e aberta, sem medo de punição da sua própria consciência, é possível imaginar as sequelas, sobre Dona Marisa, das humilhações públicas despejadas sobre a sua pessoa. Dona Marisa, uma brasileira comum, digna, simples, companheira do seu marido, partiu triste e sofrida. Mas partiu sem culpa e sem medo. O que teremos depois destas muralhas de infâmias, que conseguiram tornar a luta contra a corrupção um instrumento de dissolução da República, ainda não sabemos. Dona Marisa, todavia, não estará mais aqui para saber.
* Tarso Genro foi Governador do Estado do Rio Grande do Sul, prefeito de Porto Alegre, Ministro da Justiça, Ministro da Educação e Ministro das Relações Institucionais do Brasil.
1 comentários:
Excelente reflexão sobre uma figura exemplar, dona Marisa, nesta quadra infeliz de nossa história, onde a desumanização parece fazer parte da normalidade.
Um pequeno reparo: quando Tarso diz: "..paira uma áurea de respeito.." - o certo é AURA.
Postar um comentário