Por Tarso Genro
A transposição das águas do rio São Francisco reabre um outro período na memória dos governos do Presidente Lula. Para a infelicidade do golpismo pós-moderno, que recebeu uma procuração em branco das mãos da mídia tradicional, destinada a cumprir os rituais do “ajuste”, a situação - por estes e outros motivos - está deixando de ser confortável. Sim, porque este Golpe tem donos e origem: ele veio de uma clara articulação de setores (ainda que minoritários) do Poder Judiciário com o oligopólio da mídia, ao qual foram somados os políticos neoliberais e conservadores dos vários partidos. As classes médias conservadoras, ou não, foram convidadas pela Globo para um tipo de baile, mas a festa era outra.
A peça que este triunvirato pregou nas classes médias me fez lembrar uma longínqua história, que vivenciei como adolescente nos anos 60, ainda em Santa Maria. Meu amigo tinha uma namorada belíssima – uma das “moças” mais bonitas da cidade – mas estava muito longe de querer “noivar” e casar. Num desses feriados tediosos, que repercutem com especial modorra num verão sem mar, de cidades do interior, meu amigo viaja com a sua namorada para conhecer sua família, que residia numa pequena localidade próxima da nossa cidade. Chegando lá percebe os movimentos de uma festa preparada especialmente para ele: primos, primas, parentes, avós, irmãos, cunhados e cunhadas, recebem meu amigo com afeto, fraternidade e manifestações de boas vindas.
À noite, num ambiente de descontração, à luz de uma lua cheia, conversando com a avó da namorada e já com a “água meio pela cintura” – como dizíamos depois da terceira “brahma” – meu amigo diz que iria usar da palavra. Queria fazer uma surpresa para a namorada, “falar em público” – agradecer a briosa recepção – imprevista manifestação de uma pessoa sempre retrátil a exposições públicas, em quaisquer circunstâncias. A matriarca-avó, emocionada e sem cerimônia, vai até o violonista que dedilhava algo como uma milonga, susta a música, pega o microfone e meio chorando tira a sua aliança do dedo anular e anuncia que meu amigo vai pedir sua neta em casamento. E lhe oferece a aliança para que o compromisso fosse, então, selado com uma joia da família.Talvez o relato factual não esteja exato, mas totalidade foi essa: uma simples vontade de falar em público, que se transformou num noivado e depois num casamento.
Desenhado nas “jornadas de junho”, o golpe mistificou seus objetivos com o anti-petismo, iludiu o povo e fantasiou que os Procuradores de Curitiba e o Juiz Sergio Moro fariam a redenção do Brasil. Como se o jacobismo sectário e pouco ilustrado, de qualquer poder, pudesse dar conta de complexas operações políticas, econômicas e judiciais, destinadas a retirar o país do atoleiro da crise mundial, igualmente permeada pela corrupção das mazelas do capital financeiro. O oligopólio da mídia convidou as classes médias para dançar a música da luta contra a corrupção, que, na verdade era um grande baile com esta, para promover -através dos seus agentes mais notórios- o ajuste neoliberal e o fim das funções públicas do Estado: economicismo monetarista, desemprego, revogação de direitos sociais e sucateamento de grandes empresas nacionais.
No sentido mais tradicional da classificação das posições políticas, o Brasil demonstrou a partir das “jornadas de junho”, que não tinha nem tem, até agora, um grupo centrista democrático forte, que estivesse, de um lado, disposto a “segurar” o apoio à Constituição Social de 88, dando estabilidade para os governos governarem a partir desse compromisso. A brecagem ao “rentismo” e a promoção de saídas negociadas dentro da democracia só seria possível, nas circunstâncias atuais, com o apoio deste centro. De outro, também ficou certificada a inexistência de um centrismo que preferisse combater a corrupção dentro da legalidade e garantisse a supremacia da política democrática, originária dos processos eleitorais, para conter os métodos fascistas, pelos quais os fins justificam os meios (contra os outros). O que vimos foi um falso centro que aderiu ao golpe, no qual prosperou o visão dos “atalhos” messiânicos e oportunistas, com a tentativa de se abrigarem das investigações policiais e judiciais, em torno da corrupção.
Cabe à esquerda, hoje, propor um programa de reversão da crise e de renascimento democrático do país, a partir de dois enunciados fundamentais: a soberania nacional, que não se fortalecerá sem a retomada do crescimento; e a defesa das cláusulas sociais da Constituição de 88, que não só mantem a sua atualidade, mas muitas delas até agora sequer tiveram efetividade. Mas a radicalização do ajuste e a manipulação dos processos de formação da opinião abrem a expectativa de que possamos ter um “centro” com características progressistas? Confesso que já tenho as minhas dúvidas, mas se isso não for possível podemos entrar numa ambiente de putrefação política e institucional, sem nenhuma saída, à curto ou médio prazo.
Com todos os seus percalços e ambiguidades, as reformas – aqui e no Brasil – vão em frente, estrangulando as parcas políticas socialdemocratas que conseguimos emplacar no país, até o fim do primeiro governo Dilma. Os Governos Lula, como qualquer Governo em qualquer parte do mundo, teve muitas limitações e cometeu erros, mas o seu grande pecado não foi deixar de combater a corrupção, que, de resto, vem da história do nosso Estado cartorial e do sistema político que lhe sucedeu. Seu (nosso) grande erro foi político: não ter compreendido que num certo momento de esgotamento do modelo de crescimento com distribuição de renda, o nosso sistema de alianças iria esboroar, porque as formas tradicionais de governabilidade só funcionam quando a economia vai bem..
Era no momento que “todos” estavam ganhando”, que seria necessário reunir forças -momento de auge de popularidade do projeto lulo-petista- para cumprir três tarefas históricas, visando abrir um novo período de avanços, dentro da democracia: democratização dos meios de comunicação de molde a garantir não somente a liberdade de imprensa, mas a liberdade de fazer circular livremente a opinião; uma reforma tributária ousada, para refinanciar o funcionamento do Estado sem aumentar o endividamento (o nosso ajuste); uma reforma política que permitisse reduzir fortemente o poder das oligarquias regionais, sobre as quais se ergue o poder do partidos e se definem as eleições.
As águas do Velho Chico, fluindo verdes no sertão, abrem flores na memória do povo excluído e violentado pela globalização ritmada nas bolsas de Wall Street. São milhões de pessoas que se somarão a outros milhões, que assistirão os ataques políticos e os processos contra Lula, como processos e ataques desfechados contra si mesmas. Não nos esqueçamos: a pessoas reais vivem e morrem no presente e é nesse barro informe, às vezes generoso do presente, que as pessoas começam a recuperar o gosto pela utopia e recuperar o sonho que a vida sempre pode ser melhor.
* Tarso Genro foi Governador do Estado do Rio Grande do Sul, prefeito de Porto Alegre, Ministro da Justiça, Ministro da Educação e Ministro das Relações Institucionais do Brasil.
A transposição das águas do rio São Francisco reabre um outro período na memória dos governos do Presidente Lula. Para a infelicidade do golpismo pós-moderno, que recebeu uma procuração em branco das mãos da mídia tradicional, destinada a cumprir os rituais do “ajuste”, a situação - por estes e outros motivos - está deixando de ser confortável. Sim, porque este Golpe tem donos e origem: ele veio de uma clara articulação de setores (ainda que minoritários) do Poder Judiciário com o oligopólio da mídia, ao qual foram somados os políticos neoliberais e conservadores dos vários partidos. As classes médias conservadoras, ou não, foram convidadas pela Globo para um tipo de baile, mas a festa era outra.
A peça que este triunvirato pregou nas classes médias me fez lembrar uma longínqua história, que vivenciei como adolescente nos anos 60, ainda em Santa Maria. Meu amigo tinha uma namorada belíssima – uma das “moças” mais bonitas da cidade – mas estava muito longe de querer “noivar” e casar. Num desses feriados tediosos, que repercutem com especial modorra num verão sem mar, de cidades do interior, meu amigo viaja com a sua namorada para conhecer sua família, que residia numa pequena localidade próxima da nossa cidade. Chegando lá percebe os movimentos de uma festa preparada especialmente para ele: primos, primas, parentes, avós, irmãos, cunhados e cunhadas, recebem meu amigo com afeto, fraternidade e manifestações de boas vindas.
À noite, num ambiente de descontração, à luz de uma lua cheia, conversando com a avó da namorada e já com a “água meio pela cintura” – como dizíamos depois da terceira “brahma” – meu amigo diz que iria usar da palavra. Queria fazer uma surpresa para a namorada, “falar em público” – agradecer a briosa recepção – imprevista manifestação de uma pessoa sempre retrátil a exposições públicas, em quaisquer circunstâncias. A matriarca-avó, emocionada e sem cerimônia, vai até o violonista que dedilhava algo como uma milonga, susta a música, pega o microfone e meio chorando tira a sua aliança do dedo anular e anuncia que meu amigo vai pedir sua neta em casamento. E lhe oferece a aliança para que o compromisso fosse, então, selado com uma joia da família.Talvez o relato factual não esteja exato, mas totalidade foi essa: uma simples vontade de falar em público, que se transformou num noivado e depois num casamento.
Desenhado nas “jornadas de junho”, o golpe mistificou seus objetivos com o anti-petismo, iludiu o povo e fantasiou que os Procuradores de Curitiba e o Juiz Sergio Moro fariam a redenção do Brasil. Como se o jacobismo sectário e pouco ilustrado, de qualquer poder, pudesse dar conta de complexas operações políticas, econômicas e judiciais, destinadas a retirar o país do atoleiro da crise mundial, igualmente permeada pela corrupção das mazelas do capital financeiro. O oligopólio da mídia convidou as classes médias para dançar a música da luta contra a corrupção, que, na verdade era um grande baile com esta, para promover -através dos seus agentes mais notórios- o ajuste neoliberal e o fim das funções públicas do Estado: economicismo monetarista, desemprego, revogação de direitos sociais e sucateamento de grandes empresas nacionais.
No sentido mais tradicional da classificação das posições políticas, o Brasil demonstrou a partir das “jornadas de junho”, que não tinha nem tem, até agora, um grupo centrista democrático forte, que estivesse, de um lado, disposto a “segurar” o apoio à Constituição Social de 88, dando estabilidade para os governos governarem a partir desse compromisso. A brecagem ao “rentismo” e a promoção de saídas negociadas dentro da democracia só seria possível, nas circunstâncias atuais, com o apoio deste centro. De outro, também ficou certificada a inexistência de um centrismo que preferisse combater a corrupção dentro da legalidade e garantisse a supremacia da política democrática, originária dos processos eleitorais, para conter os métodos fascistas, pelos quais os fins justificam os meios (contra os outros). O que vimos foi um falso centro que aderiu ao golpe, no qual prosperou o visão dos “atalhos” messiânicos e oportunistas, com a tentativa de se abrigarem das investigações policiais e judiciais, em torno da corrupção.
Cabe à esquerda, hoje, propor um programa de reversão da crise e de renascimento democrático do país, a partir de dois enunciados fundamentais: a soberania nacional, que não se fortalecerá sem a retomada do crescimento; e a defesa das cláusulas sociais da Constituição de 88, que não só mantem a sua atualidade, mas muitas delas até agora sequer tiveram efetividade. Mas a radicalização do ajuste e a manipulação dos processos de formação da opinião abrem a expectativa de que possamos ter um “centro” com características progressistas? Confesso que já tenho as minhas dúvidas, mas se isso não for possível podemos entrar numa ambiente de putrefação política e institucional, sem nenhuma saída, à curto ou médio prazo.
Com todos os seus percalços e ambiguidades, as reformas – aqui e no Brasil – vão em frente, estrangulando as parcas políticas socialdemocratas que conseguimos emplacar no país, até o fim do primeiro governo Dilma. Os Governos Lula, como qualquer Governo em qualquer parte do mundo, teve muitas limitações e cometeu erros, mas o seu grande pecado não foi deixar de combater a corrupção, que, de resto, vem da história do nosso Estado cartorial e do sistema político que lhe sucedeu. Seu (nosso) grande erro foi político: não ter compreendido que num certo momento de esgotamento do modelo de crescimento com distribuição de renda, o nosso sistema de alianças iria esboroar, porque as formas tradicionais de governabilidade só funcionam quando a economia vai bem..
Era no momento que “todos” estavam ganhando”, que seria necessário reunir forças -momento de auge de popularidade do projeto lulo-petista- para cumprir três tarefas históricas, visando abrir um novo período de avanços, dentro da democracia: democratização dos meios de comunicação de molde a garantir não somente a liberdade de imprensa, mas a liberdade de fazer circular livremente a opinião; uma reforma tributária ousada, para refinanciar o funcionamento do Estado sem aumentar o endividamento (o nosso ajuste); uma reforma política que permitisse reduzir fortemente o poder das oligarquias regionais, sobre as quais se ergue o poder do partidos e se definem as eleições.
As águas do Velho Chico, fluindo verdes no sertão, abrem flores na memória do povo excluído e violentado pela globalização ritmada nas bolsas de Wall Street. São milhões de pessoas que se somarão a outros milhões, que assistirão os ataques políticos e os processos contra Lula, como processos e ataques desfechados contra si mesmas. Não nos esqueçamos: a pessoas reais vivem e morrem no presente e é nesse barro informe, às vezes generoso do presente, que as pessoas começam a recuperar o gosto pela utopia e recuperar o sonho que a vida sempre pode ser melhor.
* Tarso Genro foi Governador do Estado do Rio Grande do Sul, prefeito de Porto Alegre, Ministro da Justiça, Ministro da Educação e Ministro das Relações Institucionais do Brasil.
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