Por Sebastião Velasco, no site Carta Maior:
Não sei se você, caro leitor, mas de minha parte jamais imaginei que viveria o bastante para assistir ao espetáculo hoje exibido ao mundo pelos Estados Unidos.
A sequência é estonteante. Descontada a fase preparatória – a campanha eleitoral --, ela começa na cerimônia de transmissão de cargo, em 20 de janeiro, com o discurso pronunciado pelo novo Presidente logo depois de seu juramento.
Quem viu, há de lembrar. Feitos os agradecimentos convencionais, Trump abre sua fala com um ataque à elite política de seu país, cuja brutalidade não poupa nenhum dos presentes. Na sequência, define sua vitória como a devolução do poder ao povo americano, e reafirma seus compromissos de campanha, sintetizados no slogan “Make America Great Again”: reerguer a indústria, trazer de volta os empregos, reconstruir a infraestrutura devastada por décadas de descaso, reequipar as Foras Armadas. Com a sua contrapartida, mudar as relações com os parceiros comerciais, defender as fronteiras nacionais; cobrar dos aliados o custo de sua segurança. Os Estados Unidos buscarão amizade e boa vontade em toda parte – assevera o orador -- mas colocarão os seus interesses em primeiro lugar, como fazem – ou devem fazer – todas as nações do mundo.
A invocação altissonante do egoísmo nacional feriu os ouvidos educados na linguagem vaporosa dos interesses da humanidade, obrigatória no discurso de seus predecessores. Mas choque não menor estava reservado para o dia seguinte.
Jovens e não tão jovens, que haviam protestado vigorosamente durante a solenidade de posse, tomam as ruas, em Washington e centenas de outras cidades americanas, manifestando seu repúdio a Trump (“não é meu presidente”) e sua disposição de resistir a seu governo.
Já tínhamos visto algo parecido na Ucrânia e em outros países menos conhecidos, mas a contestação ruidosa dos resultados de eleições presidências nos Estados Unidos era um fato inédito – pelo menos desde a vitória de Abraham Lincoln, naquele remoto ano de 1861.
O clima de beligerância seria avivado logo a seguir, com a decisão judicial que anulou ato de Trump suspendendo por seis meses a emissão de vistos para cidadãos de sete países de maioria mulçumana, e deu origem a uma batalha jurídico-política ainda não resolvida.
Mas o que elevou a tensão a seu grau mais alto foi a notícia – três semanas após a inauguração do governo -- de que o recém nomeado Conselheiro de Segurança Nacional mantivera conversação sigilosa, durante a campanha eleitoral, com o Embaixador da Rússia nos Estados Unidos.
O general Michael Flynn foi imediatamente exonerado. Mas isso não pôs fim ao escândalo. Ele se realimentava da suspeita, publicamente expressa por políticos de oposição e pela midia, a respeito do possível envolvimento de Trump no episódio. E ganhava intensidade maior com a denúncia sustentada pelos republicanos de que setores da comunidade de inteligência empenhavam-se em sabotar o governo vazando ilegalmente informações secretas à imprensa amiga.
O discurso sobre o Estado da União -- surpreendentemente comedido para os padrões de Trump -- selou um período de trégua, logo quebrado por novas revelações sobre contatos de membros de sua equipe com agentes russos. Entre eles, o Senador Jeff Sessions, ora no exercício do cargo de Procurador Geral da República. E o conflito ganharia ares ainda mais graves com a acusação de Trump, lançada no Twitter, de que o ex-presidente Obama teria determinado a escuta de seus telefones.
A perplexidade produzida por essa sucessão de fatos fica bem expressa na imagem usada por um jornalista americano para descrever o seu país, no presente: uma superpotência econômica e militar, com uma política argentina.
Exageros à parte, a pergunta que não quer calar é bem simples: como explicar a ocorrência de uma combinação tão esdrúxula?
Há dois caminhos para responder a essa pergunta. O primeiro consiste em olhar para os antecedentes em busca das condições que teriam propiciado a emergência de tal estado de coisas. Não avançarei nessa linha. Direi apenas que a polarização política nos Estados Unidos é antiga, tem sido muito estudada e se manifestou de forma peculiar nas eleições de 2016, quando o consenso bipartidário sofreu o ataque convergente da esquerda (representada por Bernard Sanders) e da direita, vocalizada pela campanha de Donald Trump.
A segunda via é observar as consequências da deliberação coletiva. Desse ponto de vista, o mais importante não é a eleição de um candidato que cortejou o eleitorado apresentando-se como “antissistema”, mas a constatação de que ao assumir o cargo ele parece disposto a agir nessa qualidade, quebrando equilíbrios há muito estabelecidos.
Para além dos discursos, Trump fez questão de demonstrar essa disposição em várias áreas. No tocante às relações econômicas internacionais ele o fez ao anunciar a saída dos Estados Unidos da Parceria Trasnpacífica, ao reiterar a promessa de construir um muro na fronteira com o México e abrir negociações com esse país e o Canadá para a revisão do NAFTA. Fez isso também ao insinuar que a Alemanha se aproveitaria de um cambio distorcido para construir seus gigantescos superávits comerciais. E coroaria a obra com o enunciado da política comercial de seu governo, em documento que critica acerbamente o mecanismo de solução de controvérsias da OMC e ameaça romper com a organização caso as mudanças pleiteadas não sejam atendidas.
No plano da segurança internacional, o governo Trump insistiu na cobrança a seus aliados europeus de contribuições maiores ao sistema de defesa coletiva, e indicou que poderia rever o papel do país na OTAM, se os desequilíbrios presentes não fossem corrigidos.
A prometida normalização das relações com a Rússia, porém, não avançou, em grande medida pelas resistências internas expressas no escândalo antes referido.
Tocamos por aí no nervo da questão. O governo Trump começa prometendo mudar elementos centrais da política de longo prazo dos Estados Unidos. A reação virulenta que ele provoca tem o sentido de um veto a essa – mas não apenas a essa -- mudança de rumo.
Nada garante que Trump consiga efetuá-la. Além das resistências referidas, as diferenças políticas em sua equipe de governo e o enorme fiasco do projeto Paul Ryan que pretendia sepultar a reforma do sistema de saúde de Obama – antiga promessa republicana, enfaticamente reiterada na campanha de Trump -- levantam muitas dúvidas a esse respeito.
Não importa. A perspectiva de uma tal mudança cria problemas difíceis para seus parceiros estratégicos. Não surpreende, pois, que se discuta na Europa o aprofundamento da integração na área de defesa e política exterior, e que alguns cheguem a cogitar da criação de uma força nuclear europeia.
Debates análogos ocorrem na Rússia, na China, na Índia, em todos os países capazes de projetar seus interesses no tempo longo e de planejar ações para dar consequência às suas imagens de futuro.
Devia ser assim também entre nós. Mas o golpe que sofremos no ano passado não atingiu apenas o governo democraticamente eleito de Dilma Rousseff. Ele desorganizou o Estado e deixou a nação brasileira à deriva, como um náufrago, que vagueia ao sabor das ondas no mar encarpelado, mal seguro num destroço do navio.
Será preciso um esforço hercúleo de vontade para reconstruir nossa capacidade de planejamento estratégico e nos colocar de novo à altura dos nossos imensos desafios.
Não sei se você, caro leitor, mas de minha parte jamais imaginei que viveria o bastante para assistir ao espetáculo hoje exibido ao mundo pelos Estados Unidos.
A sequência é estonteante. Descontada a fase preparatória – a campanha eleitoral --, ela começa na cerimônia de transmissão de cargo, em 20 de janeiro, com o discurso pronunciado pelo novo Presidente logo depois de seu juramento.
Quem viu, há de lembrar. Feitos os agradecimentos convencionais, Trump abre sua fala com um ataque à elite política de seu país, cuja brutalidade não poupa nenhum dos presentes. Na sequência, define sua vitória como a devolução do poder ao povo americano, e reafirma seus compromissos de campanha, sintetizados no slogan “Make America Great Again”: reerguer a indústria, trazer de volta os empregos, reconstruir a infraestrutura devastada por décadas de descaso, reequipar as Foras Armadas. Com a sua contrapartida, mudar as relações com os parceiros comerciais, defender as fronteiras nacionais; cobrar dos aliados o custo de sua segurança. Os Estados Unidos buscarão amizade e boa vontade em toda parte – assevera o orador -- mas colocarão os seus interesses em primeiro lugar, como fazem – ou devem fazer – todas as nações do mundo.
A invocação altissonante do egoísmo nacional feriu os ouvidos educados na linguagem vaporosa dos interesses da humanidade, obrigatória no discurso de seus predecessores. Mas choque não menor estava reservado para o dia seguinte.
Jovens e não tão jovens, que haviam protestado vigorosamente durante a solenidade de posse, tomam as ruas, em Washington e centenas de outras cidades americanas, manifestando seu repúdio a Trump (“não é meu presidente”) e sua disposição de resistir a seu governo.
Já tínhamos visto algo parecido na Ucrânia e em outros países menos conhecidos, mas a contestação ruidosa dos resultados de eleições presidências nos Estados Unidos era um fato inédito – pelo menos desde a vitória de Abraham Lincoln, naquele remoto ano de 1861.
O clima de beligerância seria avivado logo a seguir, com a decisão judicial que anulou ato de Trump suspendendo por seis meses a emissão de vistos para cidadãos de sete países de maioria mulçumana, e deu origem a uma batalha jurídico-política ainda não resolvida.
Mas o que elevou a tensão a seu grau mais alto foi a notícia – três semanas após a inauguração do governo -- de que o recém nomeado Conselheiro de Segurança Nacional mantivera conversação sigilosa, durante a campanha eleitoral, com o Embaixador da Rússia nos Estados Unidos.
O general Michael Flynn foi imediatamente exonerado. Mas isso não pôs fim ao escândalo. Ele se realimentava da suspeita, publicamente expressa por políticos de oposição e pela midia, a respeito do possível envolvimento de Trump no episódio. E ganhava intensidade maior com a denúncia sustentada pelos republicanos de que setores da comunidade de inteligência empenhavam-se em sabotar o governo vazando ilegalmente informações secretas à imprensa amiga.
O discurso sobre o Estado da União -- surpreendentemente comedido para os padrões de Trump -- selou um período de trégua, logo quebrado por novas revelações sobre contatos de membros de sua equipe com agentes russos. Entre eles, o Senador Jeff Sessions, ora no exercício do cargo de Procurador Geral da República. E o conflito ganharia ares ainda mais graves com a acusação de Trump, lançada no Twitter, de que o ex-presidente Obama teria determinado a escuta de seus telefones.
A perplexidade produzida por essa sucessão de fatos fica bem expressa na imagem usada por um jornalista americano para descrever o seu país, no presente: uma superpotência econômica e militar, com uma política argentina.
Exageros à parte, a pergunta que não quer calar é bem simples: como explicar a ocorrência de uma combinação tão esdrúxula?
Há dois caminhos para responder a essa pergunta. O primeiro consiste em olhar para os antecedentes em busca das condições que teriam propiciado a emergência de tal estado de coisas. Não avançarei nessa linha. Direi apenas que a polarização política nos Estados Unidos é antiga, tem sido muito estudada e se manifestou de forma peculiar nas eleições de 2016, quando o consenso bipartidário sofreu o ataque convergente da esquerda (representada por Bernard Sanders) e da direita, vocalizada pela campanha de Donald Trump.
A segunda via é observar as consequências da deliberação coletiva. Desse ponto de vista, o mais importante não é a eleição de um candidato que cortejou o eleitorado apresentando-se como “antissistema”, mas a constatação de que ao assumir o cargo ele parece disposto a agir nessa qualidade, quebrando equilíbrios há muito estabelecidos.
Para além dos discursos, Trump fez questão de demonstrar essa disposição em várias áreas. No tocante às relações econômicas internacionais ele o fez ao anunciar a saída dos Estados Unidos da Parceria Trasnpacífica, ao reiterar a promessa de construir um muro na fronteira com o México e abrir negociações com esse país e o Canadá para a revisão do NAFTA. Fez isso também ao insinuar que a Alemanha se aproveitaria de um cambio distorcido para construir seus gigantescos superávits comerciais. E coroaria a obra com o enunciado da política comercial de seu governo, em documento que critica acerbamente o mecanismo de solução de controvérsias da OMC e ameaça romper com a organização caso as mudanças pleiteadas não sejam atendidas.
No plano da segurança internacional, o governo Trump insistiu na cobrança a seus aliados europeus de contribuições maiores ao sistema de defesa coletiva, e indicou que poderia rever o papel do país na OTAM, se os desequilíbrios presentes não fossem corrigidos.
A prometida normalização das relações com a Rússia, porém, não avançou, em grande medida pelas resistências internas expressas no escândalo antes referido.
Tocamos por aí no nervo da questão. O governo Trump começa prometendo mudar elementos centrais da política de longo prazo dos Estados Unidos. A reação virulenta que ele provoca tem o sentido de um veto a essa – mas não apenas a essa -- mudança de rumo.
Nada garante que Trump consiga efetuá-la. Além das resistências referidas, as diferenças políticas em sua equipe de governo e o enorme fiasco do projeto Paul Ryan que pretendia sepultar a reforma do sistema de saúde de Obama – antiga promessa republicana, enfaticamente reiterada na campanha de Trump -- levantam muitas dúvidas a esse respeito.
Não importa. A perspectiva de uma tal mudança cria problemas difíceis para seus parceiros estratégicos. Não surpreende, pois, que se discuta na Europa o aprofundamento da integração na área de defesa e política exterior, e que alguns cheguem a cogitar da criação de uma força nuclear europeia.
Debates análogos ocorrem na Rússia, na China, na Índia, em todos os países capazes de projetar seus interesses no tempo longo e de planejar ações para dar consequência às suas imagens de futuro.
Devia ser assim também entre nós. Mas o golpe que sofremos no ano passado não atingiu apenas o governo democraticamente eleito de Dilma Rousseff. Ele desorganizou o Estado e deixou a nação brasileira à deriva, como um náufrago, que vagueia ao sabor das ondas no mar encarpelado, mal seguro num destroço do navio.
Será preciso um esforço hercúleo de vontade para reconstruir nossa capacidade de planejamento estratégico e nos colocar de novo à altura dos nossos imensos desafios.
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