Por Tarso Genro, no site Sul-21:
Na época em que fui crítico literário do Correio do Povo, nas décadas de 60 e parte dos anos 70 – sob o manto protetor da amizade de P.F. Gastal – escrevi muito sobre a nova literatura latino-americana, que surgira com força lá pelos anos 30 e se projetara, majestosa – naquela época – através dos incontornáveis Gabriel Garcia Marques, Augusto Roa Bastos, José Maria Arguedas, Mario Vargas Llosa, Carlos Fuentes, Guilherme Cabrera Infante, Alejo Carpentier, Manoel Scorza e outros grandiosos, que agora a memória sufoca. A literatura e o direito sempre foram a minha fascinação. Sempre que posso busco unir estes dois “tormentos do espírito” com a dureza da vida real.
Raul Bopp escreveu – num poema sobre os remanescentes escravos – sobre como eludir a memória, num verso definitivo: “negro velho fuma diamba para amassar a memória…”. Hoje ela é amassada pela velocidade da história, pela rapidez e fluidez dos fatos e factoides, nos quais se misturam o último sorriso de Bruna Marquezine, para o seu namorado, com a desconfiança de parte do Congresso Americano de que o Presidente dos EEUU é mentalmente insano. A provável doença mental de Trump concorre, assim, como fato relevante, com o sorriso da vida festiva e merecida da artista em ascenso.
Quando a informação do cotidiano perde a hierarquia e ela é servida, para o “mercado mental” dos consumidores, como sequência de fatos indiferenciados capazes de influir, com a mesma força, no destino comum, é porque algo já estava resolvido por alguém, para um destino que não é mais comum. E porque não fomos nós que fizemos as opções. Elas nos foram servidas para consolidar ressentimentos, provocar invejas, suscitar demônios, não para potencializar as grandezas contidas em nós. Não nos foram servidas para serem fruídas no coletivo para intercambiar dúvidas, mas o foram para serem cristalizadas como juízo interessado.
A controvérsia fundada entre as pessoas, o olhar do outro sobre o mundo que nos faz vizinhos, no qual as hierarquias dos amores seletivos e das irmandades proclamadas são escolhas autênticas, -aquela controvérsia fundada- só é livre se o mercado mental dos consumidores tem condições de diferenciar o verdadeiro do falso, o manipulatório do relato sério. Só isso pode nos permitir ajuizar – por exemplo – que a eventual doença mental de Trump é bem mais importante – para qualquer um de nós – do que o último sorriso da bela Marquezine.
Se essa hierarquia não puder ser conscientizada é porque a nossa vida, majoritariamente, está sendo produto da manipulação escravocrata da informação, na sociedade de classes, que tanto pode ser democrática, politicamente, para ir forjando verdadeiros destinos comuns, como pode tornar-se gradativamente totalitária – hoje de novo tipo – para ir forjando as condições para a anomia e a guerra civil não declarada. A anomia e a guerra civil – declarada ou não – não são acasos ou contingências da história, mas processos previamente preparados para sustentar interesses.
No auge do grande romance e das grandes novelas e contos latino-americanos, esta busca de um destino estava centrada na luta democrática e as ditaduras eram transparentes, como tal, quando apresentavam clara e barbaramente as suas pretensões de grandeza. Ninguém tem saudades daqueles tempos de lucidez trágica, mas os fatos – embora escondidos nos porões da censura – se erguiam em cada manhã, na consciência majoritária, para considerar a democracia uma necessidade elementar. E o que se ergue, hoje, além do ódio fabricado na exceção, da manipulação da informação para facilitar maiorias para as “reformas”; o que se ergue além dos vazamentos seletivos programados e dos pré-julgamentos terminativos?
Um grande livro me escapou, naquela época em que fui “crítico literário”, mais formado pela curiosidade e pelo amor à literatura do que pela técnica e pelo conhecimento que fez, entre tantos, um José Veríssimo e um Astrogildo Pereira. Trata-se do “Vida Breve”, de Juan Carlos Onetti (Planeta, 2004), no qual um personagem – torturado pela perda do seu vínculo maior com a vida – Juan Maria Brausen, transforma-se em mais duas pessoas e inventa uma cidade. Nesta cidade inventada, quem sabe uma fusão surreal de Montevidéu e Buenos Aires, o personagem final, Dias Grey, no qual se transforma Brausen – derrotado e soturno – vinga-se do fracasso,”com fúria e sem destino”, “envaidecido pela segurança de ser capaz de toda a injustiça”.
A constatação final de Dias Grey é, ao mesmo tempo, o refúgio dos fracos e o templo dos fortes sem futuro. Dias Grey, hoje, representa os julgadores de Lula se, neste processo sem provas, o condenarem cumprindo as ordens do oligopólio da mídia, que prefere o sufocamento da Constituição, como já fizeram no golpe contra Dilma, ao veredicto sadio do povo empírico, que fez a democracia e a república há trinta anos atrás.
Na época em que fui crítico literário do Correio do Povo, nas décadas de 60 e parte dos anos 70 – sob o manto protetor da amizade de P.F. Gastal – escrevi muito sobre a nova literatura latino-americana, que surgira com força lá pelos anos 30 e se projetara, majestosa – naquela época – através dos incontornáveis Gabriel Garcia Marques, Augusto Roa Bastos, José Maria Arguedas, Mario Vargas Llosa, Carlos Fuentes, Guilherme Cabrera Infante, Alejo Carpentier, Manoel Scorza e outros grandiosos, que agora a memória sufoca. A literatura e o direito sempre foram a minha fascinação. Sempre que posso busco unir estes dois “tormentos do espírito” com a dureza da vida real.
Raul Bopp escreveu – num poema sobre os remanescentes escravos – sobre como eludir a memória, num verso definitivo: “negro velho fuma diamba para amassar a memória…”. Hoje ela é amassada pela velocidade da história, pela rapidez e fluidez dos fatos e factoides, nos quais se misturam o último sorriso de Bruna Marquezine, para o seu namorado, com a desconfiança de parte do Congresso Americano de que o Presidente dos EEUU é mentalmente insano. A provável doença mental de Trump concorre, assim, como fato relevante, com o sorriso da vida festiva e merecida da artista em ascenso.
Quando a informação do cotidiano perde a hierarquia e ela é servida, para o “mercado mental” dos consumidores, como sequência de fatos indiferenciados capazes de influir, com a mesma força, no destino comum, é porque algo já estava resolvido por alguém, para um destino que não é mais comum. E porque não fomos nós que fizemos as opções. Elas nos foram servidas para consolidar ressentimentos, provocar invejas, suscitar demônios, não para potencializar as grandezas contidas em nós. Não nos foram servidas para serem fruídas no coletivo para intercambiar dúvidas, mas o foram para serem cristalizadas como juízo interessado.
A controvérsia fundada entre as pessoas, o olhar do outro sobre o mundo que nos faz vizinhos, no qual as hierarquias dos amores seletivos e das irmandades proclamadas são escolhas autênticas, -aquela controvérsia fundada- só é livre se o mercado mental dos consumidores tem condições de diferenciar o verdadeiro do falso, o manipulatório do relato sério. Só isso pode nos permitir ajuizar – por exemplo – que a eventual doença mental de Trump é bem mais importante – para qualquer um de nós – do que o último sorriso da bela Marquezine.
Se essa hierarquia não puder ser conscientizada é porque a nossa vida, majoritariamente, está sendo produto da manipulação escravocrata da informação, na sociedade de classes, que tanto pode ser democrática, politicamente, para ir forjando verdadeiros destinos comuns, como pode tornar-se gradativamente totalitária – hoje de novo tipo – para ir forjando as condições para a anomia e a guerra civil não declarada. A anomia e a guerra civil – declarada ou não – não são acasos ou contingências da história, mas processos previamente preparados para sustentar interesses.
No auge do grande romance e das grandes novelas e contos latino-americanos, esta busca de um destino estava centrada na luta democrática e as ditaduras eram transparentes, como tal, quando apresentavam clara e barbaramente as suas pretensões de grandeza. Ninguém tem saudades daqueles tempos de lucidez trágica, mas os fatos – embora escondidos nos porões da censura – se erguiam em cada manhã, na consciência majoritária, para considerar a democracia uma necessidade elementar. E o que se ergue, hoje, além do ódio fabricado na exceção, da manipulação da informação para facilitar maiorias para as “reformas”; o que se ergue além dos vazamentos seletivos programados e dos pré-julgamentos terminativos?
Um grande livro me escapou, naquela época em que fui “crítico literário”, mais formado pela curiosidade e pelo amor à literatura do que pela técnica e pelo conhecimento que fez, entre tantos, um José Veríssimo e um Astrogildo Pereira. Trata-se do “Vida Breve”, de Juan Carlos Onetti (Planeta, 2004), no qual um personagem – torturado pela perda do seu vínculo maior com a vida – Juan Maria Brausen, transforma-se em mais duas pessoas e inventa uma cidade. Nesta cidade inventada, quem sabe uma fusão surreal de Montevidéu e Buenos Aires, o personagem final, Dias Grey, no qual se transforma Brausen – derrotado e soturno – vinga-se do fracasso,”com fúria e sem destino”, “envaidecido pela segurança de ser capaz de toda a injustiça”.
A constatação final de Dias Grey é, ao mesmo tempo, o refúgio dos fracos e o templo dos fortes sem futuro. Dias Grey, hoje, representa os julgadores de Lula se, neste processo sem provas, o condenarem cumprindo as ordens do oligopólio da mídia, que prefere o sufocamento da Constituição, como já fizeram no golpe contra Dilma, ao veredicto sadio do povo empírico, que fez a democracia e a república há trinta anos atrás.
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