Por Patrick Mariano, na Revista Cult:
Jânio de Freiras, no artigo “A disputa que decide”, é certeiro quando afirma que nas eleições deste ano a disputa será entre Lula versus o combinado STF-STJ e que isto questiona a legitimidade do resultado do pleito como representação eleitoral democrática. De um lado, pontua Jânio, 150 milhões de eleitores e, do outro, 11 ministros do STF e 33 do STJ.
A ascensão dessa burocracia estatal sobre o poder político vem de longa data, mas nos últimos anos ganhou forte impulso, notadamente com a aprovação da Lei da Ficha Limpa pelo próprio Congresso Nacional, que cedeu parcela relevante do poder do voto dos eleitores para os juízes, em evidente afronta ao texto constitucional. A entrega do exercício do poder popular para uma burocracia estatal de clara verniz conservadora, como demonstram as pesquisas sobre a classe social dos juízes e sua vinculação ideológica, se deu gratuitamente, sem qualquer contrapartida por parte de quem o recebeu.
E não é só no poder de decidir as eleições de 2018 que reside o protagonismo do Judiciário, mas também na aceitação jurídica dos vários retrocessos constitucionais praticados pelo atual governo. Ou seja, o protagonismo político desses ministros em decidir o pleito eleitoral é acompanhando da nebulização do real projeto político defendido, cada vez mais evidente e materializado na cumplicidade com o projeto neoliberal.
Esse fenômeno é bem estudado por juristas do porte de Martonio Mont’Alverne Barreto Lima e Marcelo Semer. O primeiro, inclusive, faz uma relação entre o papel da ascensão política da burocracia judiciária no período da República de Weimar para a consolidação do nazismo e o atual momento brasileiro.
Na República Velha, havia dispositivo semelhante ao da ficha limpa com a chamada “política dos governadores”. Campos Sales (1898-1902), instituiu em acordo entre os governadores e a União um sistema de troca de apoio mútuo. Pelo acerto, os governadores não faziam oposição ao governo federal e o presidente da República não interferia na vida política dos Estados. Um dos mecanismos de manutenção dessa política foi a Comissão de Verificação de Poderes, chefiada por um político de confiança do presidente com a atribuição de verificar a legitimidade da eleição de deputados e senadores, barrando aqueles que contrariavam seus interesses com a “degola”.
Por isso, o acerto da análise de Jânio, ao retratar o dilema mais atual da democracia no Brasil a 90 dias do pleito: o eleitor estará diante de candidatos “oficiais” na cédula, mas a disputa real é entre o líder das pesquisas e parte da burocracia jurídica estatal. Quantos milhões de eleitores vale um voto de um ministro do Supremo?
Eu acrescentaria, no entanto, mais alguns pontos, apenas para se somar nesse questionamento do grau democrático político brasileiro.
Protagonismo da burocracia
Em 20 de março de 2015, o Ministério Público Federal apresentou ao país o seu projeto de poder, embrulhado em um pacote denominado “10 medidas contra a corrupção”. Poucos dias antes, o então procurador-geral da República, Rodrigo Janot, se deixou fotografar ao sair da sede da PGR com um cartaz escrito “Janot, vc é a esperança do Brasil”. Era o auge político da instituição.
A proposta, entre outras coisas, acabava com a garantia do habeas corpus no Brasil de uma forma até mais generalizada que o Ato Institucional nº 5 de autoria do general Costa e Silva e legalizava a prova ilícita (tortura, por exemplo) colhida de “boa fé”. Para quem quiser saber mais sobre o pacote, vale assistir à participação de Marcelo Semer na audiência pública ocorrida na Comissão Especial da Câmara que debateu o projeto.
O protagonismo político assumido por essa parcela da burocracia estatal foi resultado à época, também, de uma massiva campanha de marketing e coleta de assinaturas financiada com dinheiro público. Basta consultar rapidamente a página hospedada pelo MPF sobre as “10 Medidas” e se encontrará desde flâmulas, material para produção de outdoors, adesivos, camisetas e material de audiovisual estrelado por integrantes da Operação Lava Jato e artistas. A campanha deve ter custado aos cofres públicos bem mais que uma candidatura a governo de Estado de médio suporte.
Rodrigo Janot, após uma negociação de delação até agora pouco transparente com o grupo empresarial JBS, caiu em profundo ostracismo, tendo seus ajudantes mais próximos envolvidos em uma rede de denúncias e acusações, alguns até respondendo a processo criminal. No entanto, sua sucessora, Raquel Dodge, tem dado amostras de que manterá a instituição no mesmo rumo anterior, ao criminalizar magistrado que, por livre convencimento, proferiu decisão que determinava a soltura de um réu.
Neste episódio, a Associação Juízes pela Democracia soltou nota em defesa da independência judicial, pilar do Estado Democrático de Direito. No entanto, a principal associação de juízes federais, AJUFE, disse que não se manifestaria porque o desembargador não era seu associado.
Esse silêncio da magistratura nacional é preocupante, pois representa a aceitação da criminalização do ato decisório e da independência dos juízes, base da democracia. Na prática, a manifestação de Raquel Dodge é um perigosíssimo precedente que quebra a lógica do sistema de justiça e permite que representantes do Ministério Público que discordem de determinada decisão judicial, ao invés dos recursos legais, passe a pedir abertura de inquérito criminal contra quem a proferiu. A proposta de poder do MPF é, portanto, a consolidação de um sistema de matriz inquisitória e autoritária.
Se na proposta de poder do Judiciário é preciso adentrar a análise das últimas decisões e do silêncio quanto ao desmonte constitucional realizado no país, o pacote das dez medidas, ao menos, serve como publicidade da plataforma de governo desses atores.
Voto sem valor
De fato, o sequestro da política por setores que não passam pelo crivo do voto se revela cada vez mais consolidado. O valor do voto, base central da democracia é cada vez mais mitigado. Seja por golpes parlamentares, seja pelo crescimento do protagonismo político dessa burocracia estatal sem qualquer legitimidade popular.
O processo do golpe ocorrido em 2016 e o desmonte social imposto ao país, serviu mais ao capital financeiro do que aos partidos que o conduziram. Basta ver a petrificação do eleitorado do candidato do PSDB nas pesquisas. FHC, do alto do seu apartamento em Higienópolis, ao colocar sua tropa ao lado de Eduardo Cunha e outros atores nesse ataque frontal à democracia que foi o impedimento da presidenta Dilma Rousseff, praticamente implodiu o que havia de social e democrata na sigla do partido, cedendo espaço e protagonismo político à extrema direita, representada por Jair Bolsonaro.
A democracia, no capitalismo, cada vez mais se torna um jogo decidido antes da entrada dos times em campo, em gabinetes distantes das cabines de votação. O projeto de poder dessa burocracia estatal representada pelo Ministério Público e Judiciário é a porta de entrada para um sistema de justiça estruturado sobre o arbítrio e o abuso de poder em que a política é cada vez mais relegada às páginas policiais, esvaindo-se como areia das mãos de cada eleitor e eleitora.
* Patrick Mariano é advogado criminalista, mestre em direito pela UnB e integrante da Rede Nacional de Advogados e Advogadas Populares – RENAP.
Jânio de Freiras, no artigo “A disputa que decide”, é certeiro quando afirma que nas eleições deste ano a disputa será entre Lula versus o combinado STF-STJ e que isto questiona a legitimidade do resultado do pleito como representação eleitoral democrática. De um lado, pontua Jânio, 150 milhões de eleitores e, do outro, 11 ministros do STF e 33 do STJ.
A ascensão dessa burocracia estatal sobre o poder político vem de longa data, mas nos últimos anos ganhou forte impulso, notadamente com a aprovação da Lei da Ficha Limpa pelo próprio Congresso Nacional, que cedeu parcela relevante do poder do voto dos eleitores para os juízes, em evidente afronta ao texto constitucional. A entrega do exercício do poder popular para uma burocracia estatal de clara verniz conservadora, como demonstram as pesquisas sobre a classe social dos juízes e sua vinculação ideológica, se deu gratuitamente, sem qualquer contrapartida por parte de quem o recebeu.
E não é só no poder de decidir as eleições de 2018 que reside o protagonismo do Judiciário, mas também na aceitação jurídica dos vários retrocessos constitucionais praticados pelo atual governo. Ou seja, o protagonismo político desses ministros em decidir o pleito eleitoral é acompanhando da nebulização do real projeto político defendido, cada vez mais evidente e materializado na cumplicidade com o projeto neoliberal.
Esse fenômeno é bem estudado por juristas do porte de Martonio Mont’Alverne Barreto Lima e Marcelo Semer. O primeiro, inclusive, faz uma relação entre o papel da ascensão política da burocracia judiciária no período da República de Weimar para a consolidação do nazismo e o atual momento brasileiro.
Na República Velha, havia dispositivo semelhante ao da ficha limpa com a chamada “política dos governadores”. Campos Sales (1898-1902), instituiu em acordo entre os governadores e a União um sistema de troca de apoio mútuo. Pelo acerto, os governadores não faziam oposição ao governo federal e o presidente da República não interferia na vida política dos Estados. Um dos mecanismos de manutenção dessa política foi a Comissão de Verificação de Poderes, chefiada por um político de confiança do presidente com a atribuição de verificar a legitimidade da eleição de deputados e senadores, barrando aqueles que contrariavam seus interesses com a “degola”.
Por isso, o acerto da análise de Jânio, ao retratar o dilema mais atual da democracia no Brasil a 90 dias do pleito: o eleitor estará diante de candidatos “oficiais” na cédula, mas a disputa real é entre o líder das pesquisas e parte da burocracia jurídica estatal. Quantos milhões de eleitores vale um voto de um ministro do Supremo?
Eu acrescentaria, no entanto, mais alguns pontos, apenas para se somar nesse questionamento do grau democrático político brasileiro.
Protagonismo da burocracia
Em 20 de março de 2015, o Ministério Público Federal apresentou ao país o seu projeto de poder, embrulhado em um pacote denominado “10 medidas contra a corrupção”. Poucos dias antes, o então procurador-geral da República, Rodrigo Janot, se deixou fotografar ao sair da sede da PGR com um cartaz escrito “Janot, vc é a esperança do Brasil”. Era o auge político da instituição.
A proposta, entre outras coisas, acabava com a garantia do habeas corpus no Brasil de uma forma até mais generalizada que o Ato Institucional nº 5 de autoria do general Costa e Silva e legalizava a prova ilícita (tortura, por exemplo) colhida de “boa fé”. Para quem quiser saber mais sobre o pacote, vale assistir à participação de Marcelo Semer na audiência pública ocorrida na Comissão Especial da Câmara que debateu o projeto.
O protagonismo político assumido por essa parcela da burocracia estatal foi resultado à época, também, de uma massiva campanha de marketing e coleta de assinaturas financiada com dinheiro público. Basta consultar rapidamente a página hospedada pelo MPF sobre as “10 Medidas” e se encontrará desde flâmulas, material para produção de outdoors, adesivos, camisetas e material de audiovisual estrelado por integrantes da Operação Lava Jato e artistas. A campanha deve ter custado aos cofres públicos bem mais que uma candidatura a governo de Estado de médio suporte.
Rodrigo Janot, após uma negociação de delação até agora pouco transparente com o grupo empresarial JBS, caiu em profundo ostracismo, tendo seus ajudantes mais próximos envolvidos em uma rede de denúncias e acusações, alguns até respondendo a processo criminal. No entanto, sua sucessora, Raquel Dodge, tem dado amostras de que manterá a instituição no mesmo rumo anterior, ao criminalizar magistrado que, por livre convencimento, proferiu decisão que determinava a soltura de um réu.
Neste episódio, a Associação Juízes pela Democracia soltou nota em defesa da independência judicial, pilar do Estado Democrático de Direito. No entanto, a principal associação de juízes federais, AJUFE, disse que não se manifestaria porque o desembargador não era seu associado.
Esse silêncio da magistratura nacional é preocupante, pois representa a aceitação da criminalização do ato decisório e da independência dos juízes, base da democracia. Na prática, a manifestação de Raquel Dodge é um perigosíssimo precedente que quebra a lógica do sistema de justiça e permite que representantes do Ministério Público que discordem de determinada decisão judicial, ao invés dos recursos legais, passe a pedir abertura de inquérito criminal contra quem a proferiu. A proposta de poder do MPF é, portanto, a consolidação de um sistema de matriz inquisitória e autoritária.
Se na proposta de poder do Judiciário é preciso adentrar a análise das últimas decisões e do silêncio quanto ao desmonte constitucional realizado no país, o pacote das dez medidas, ao menos, serve como publicidade da plataforma de governo desses atores.
Voto sem valor
De fato, o sequestro da política por setores que não passam pelo crivo do voto se revela cada vez mais consolidado. O valor do voto, base central da democracia é cada vez mais mitigado. Seja por golpes parlamentares, seja pelo crescimento do protagonismo político dessa burocracia estatal sem qualquer legitimidade popular.
O processo do golpe ocorrido em 2016 e o desmonte social imposto ao país, serviu mais ao capital financeiro do que aos partidos que o conduziram. Basta ver a petrificação do eleitorado do candidato do PSDB nas pesquisas. FHC, do alto do seu apartamento em Higienópolis, ao colocar sua tropa ao lado de Eduardo Cunha e outros atores nesse ataque frontal à democracia que foi o impedimento da presidenta Dilma Rousseff, praticamente implodiu o que havia de social e democrata na sigla do partido, cedendo espaço e protagonismo político à extrema direita, representada por Jair Bolsonaro.
A democracia, no capitalismo, cada vez mais se torna um jogo decidido antes da entrada dos times em campo, em gabinetes distantes das cabines de votação. O projeto de poder dessa burocracia estatal representada pelo Ministério Público e Judiciário é a porta de entrada para um sistema de justiça estruturado sobre o arbítrio e o abuso de poder em que a política é cada vez mais relegada às páginas policiais, esvaindo-se como areia das mãos de cada eleitor e eleitora.
* Patrick Mariano é advogado criminalista, mestre em direito pela UnB e integrante da Rede Nacional de Advogados e Advogadas Populares – RENAP.
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