Por Eleonora de Magalhães Carvalho, no site do Instituto de Estudos Sociais e Políticos:
Muito se comenta sobre o estado de polarização política no qual se encontra o país. O grau de incerteza em torno da corrida presidencial de 2018 aponta para dúvidas não apenas quanto a quem ganhará a disputa, mas se de fato haverá eleição e se o resultado dela será considerado válido. Essa perspectiva foi enfatizada recentemente com a declaração do presidente do TSE, Luiz Fux, sobre a possibilidade de uma eleição ser anulada pela justiça caso comprovado que ela tenha sido influenciada pela veiculação de fake news (notícias intencionalmente falsas, que encontraram nas redes sociais online e aplicativos de mensagens, como Facebook e WhatsApp, polos para sua disseminação em larga escala). Poucos dias após o alerta dado pelo ministro, um grupo formado por 24 organizações de mídia brasileiras divulgou o lançamento do projeto “Comprova”, voltado ao combate da “desinformação online nas eleições” – uma “obrigação do jornalismo profissional”, segundo seus idealizadores.
A circulação de fake news, assim como seu combate, são potencialmente perigosos à democracia, uma vez que podem tanto promover a desinformação quanto cercear interpretações que destoem daquelas majoritariamente aceitas sobre um dado acontecimento político. Neste último caso, iniciativas de enfrentamento às fake news podem resultar na restrição da presença daqueles considerados “não autorizados” ao exercício do jornalismo, agentes marginais que atuam fora do circuito mainstreamocupado pelas grandes empresas de notícia. O que de fato aconteceu com alguns veículos da mídia alternativa, como a Revista Fórum e o Diário do Centro do Mundo (DCM), notificados pelo Facebook de que poderiam ter o alcance de suas páginas reduzido ou mesmo serem removidos da rede social, após terem sido avaliados como disseminadores de conteúdos falsos pela agência de checagem Lupa, no caso das notícias sobre o terço abençoado pelo Papa Francisco e entregue ao ex-presidente Lula por um assessor do pontífice.
A internet, assim como a circulação de informação online, portanto, tornaram-se elementos importantes a serem considerados quando se trata de compreender a política contemporaneamente e sua relação com a democracia – ou ameaças a esta. A imprensa de modo geral possui um papel relevante nesse processo. Paradoxalmente, o jornalismo tradicional enfrenta uma crise no Brasil e no mundo. Além disso, a destituição da presidente Dilma Rousseff em 2016, ato parlamentar apoiado pela mídia e pelo judiciário, mostrou mais uma vez que a grande imprensa pode ser nociva à democracia, ao contribuir para levar ao poder e consolidar ações de desmonte do Estado promovidas por um governo que carece de legitimidade. Em paralelo, esse cenário que tensiona antigas formas de atuação propiciou condições para o desenvolvimento de um espaço alternativo de comunicação, a Blogosfera Progressista Brasileira (BP), objeto que assume maior relevância em um cenário político de ataque à democracia, cujo processo é altamente midiatizado.
A BP é um movimento encabeçado por blogueiros, iniciado em meados dos anos 2000, que levou para a web um conjunto de agentes, formado principalmente por jornalistas, intelectuais e militantes políticos ou ligados a movimentos sociais. A iniciativa foi capaz de transformar o jornalismo político em elemento unificador de agentes desiguais, que se articularam em torno de um projeto comum que reivindica construir na web um espaço alternativo ao jornalismo mainstream – possuindo não apenas um papel de imprensa, mas também condições para se desenvolver em um cenário midiático pouco democrático e altamente concentrado nas mãos de algumas famílias e empresários do ramo da comunicação. Cabe notar que o uso do termo “blogosfera” para nomear o fenômeno não é de todo preciso. Além dos blogs, a BP abarca sites, portais, perfis e páginas de redes sociais online. Dentre seus componentes se encontram os jornalistas Renato Rovai e Kiko Nogueira, responsáveis respectivamente pelos portais de notícias Fórum e DCM, páginas expressivas no nicho em que atuam.
Diferentemente do que ocorreu com a blogosfera progressista norte-americana, a brasileira se construiu sobre instituições e lideranças anteriores à existência da blogosfera ou mesmo da popularização da internet. Assim, esse ecossistema midiático não é formado primordialmente por um “novo conjunto de lideranças”; ao contrário, é um grupo cujo vigor remete a instituições existentes fora do ambiente online. Alguns dos blogueiros mais proeminentes devem muito de seu prestígio à carreira construída anteriormente na grande mídia, pela militância em partidos de esquerda, como o PT e, principalmente, PCdoB, ou em movimentos sociais. No campo dos jornalistas, por exemplo, Luis Nassif, do Jornal GGN, foi membro do conselho editorial da Folha de S. Paulo; Kiko Nogueira trabalhou como editor da Veja São Paulo; Altamiro Borges, do Blog do Miro, além de militante político do PCdoB, já atuava no campo do jornalismo no período de abertura política no Brasil e, assim como Renato Rovai, estabeleceu vínculos com movimentos sociais que se desenrolaram no país a partir daquele período, em especial o movimento sindical.
No Brasil, podemos dizer que foi na eleição presidencial de 2010 que as ferramentas digitais assumiram uma importância inédita, em virtude de seu processo de popularização. Nelas, além dos meios considerados já tradicionais, como sites, viu-se a presença mais contundente de blogs, que desde o escândalo do Mensalão, em 2005, e a cobertura eleitoral de 2006 disputavam espaço no cenário do jornalismo político no país. Paralelamente, também ganharam força as redes sociais online como locais de troca de conteúdo político – em especial Twitter e, mais recentemente, Facebook, com destaque para a eleição de 2014, marcadamente polarizada e agressiva. Em meio a esse processo, a participação política se converteu, grosso modo, em defender ou atacar determinados espectros político-ideológicos, cuja pedra angular veio a ser o PT. Na corrida presidencial de 2018, por outro lado, deve se destacar a apatia e extrema desconfiança do eleitorado nas instituições políticas tradicionais – e, sob esse prisma, candidatos considerados “pontos fora da curva”, que consigam se descolar da imagem de “políticos tradicionais” possuem chance de angariar votos com esses eleitores. Entretanto, seria impreciso afirmar que os partidos políticos, e suas respectivas identificações ideológicas, perderam a vez no jogo político…
Se, por um lado, há que se considerar que a crise política, agravada no segundo mandato de Dilma Rousseff, aponta para uma a perda de legitimidade das instituições políticas, por outro ela também contribuiu para reunir a esquerda em defesa da manutenção de um governo democraticamente eleito e restituir – ao menos temporariamente e em meio a nichos da população – um protagonismo do institucional (sobretudo dos partidos tradicionais de esquerda, como PT e PCdoB) na internet, um lugar onde se imaginava que as instituições haviam sido superadas. No que tange especificamente ao campo da comunicação política, a presença do fenômeno BP no sistema midiático brasileiro aponta para uma demanda por opinião que desafia o modelo convencional de jornalismo informativo que até então funcionou como referencial de imprensa no país. Mais que isso, sua ascensão (centralidade e protagonismo no segmento de esquerda) representa a evidência mais dramática da crise pela qual atravessa o jornalismo brasileiro na atualidade, o que se relaciona à disputa pelo monopólio da notícia, de um lado, e à premissa de que um sistema midiático plural, da qual participam múltiplas vozes, é saudável para a democracia. Justamente por esse motivo, o movimento BP se estabelece no cenário contemporâneo brasileiro enquanto forma de resistência não apenas midiática, como também política.
Dessa forma, a polarização na qual nos encontramos é proveniente de uma atuação politicamente mais explícita dos meios de comunicação tradicionais, ao tomarem partido nas disputas, demonstrando que “têm lado”. É, em parte, desse enviesamento da grande mídia que proliferam interpretações “anti-mainstream”, tendo na BP uma das faces mais evidentes dessa dinâmica. O agendamento da temática das fake news potencializa o conflito em torno de um lugar de mediação ocupado pelo jornalismo na sociedade: afinal, a quem cabe informar? Quem está autorizado a ocupar este papel – e quem dará essa autorização? O que se vê é um processo de tomada de decisão que vem se tornando assaz dependente do judiciário e das agências de checagem. O ideal democrático, porém, indica que essa discussão deve ser feita no seio da sociedade, de forma ampla e não-restritiva. Cenário pouco provável de se concretizar após o golpe de 2016.
* Eleonora de Magalhães Carvalho é doutora em Comunicação pelo PPGCOM-UFF, professora nos cursos de Estudos de Mídia (UFF) e Jornalismo (FPG).
Muito se comenta sobre o estado de polarização política no qual se encontra o país. O grau de incerteza em torno da corrida presidencial de 2018 aponta para dúvidas não apenas quanto a quem ganhará a disputa, mas se de fato haverá eleição e se o resultado dela será considerado válido. Essa perspectiva foi enfatizada recentemente com a declaração do presidente do TSE, Luiz Fux, sobre a possibilidade de uma eleição ser anulada pela justiça caso comprovado que ela tenha sido influenciada pela veiculação de fake news (notícias intencionalmente falsas, que encontraram nas redes sociais online e aplicativos de mensagens, como Facebook e WhatsApp, polos para sua disseminação em larga escala). Poucos dias após o alerta dado pelo ministro, um grupo formado por 24 organizações de mídia brasileiras divulgou o lançamento do projeto “Comprova”, voltado ao combate da “desinformação online nas eleições” – uma “obrigação do jornalismo profissional”, segundo seus idealizadores.
A circulação de fake news, assim como seu combate, são potencialmente perigosos à democracia, uma vez que podem tanto promover a desinformação quanto cercear interpretações que destoem daquelas majoritariamente aceitas sobre um dado acontecimento político. Neste último caso, iniciativas de enfrentamento às fake news podem resultar na restrição da presença daqueles considerados “não autorizados” ao exercício do jornalismo, agentes marginais que atuam fora do circuito mainstreamocupado pelas grandes empresas de notícia. O que de fato aconteceu com alguns veículos da mídia alternativa, como a Revista Fórum e o Diário do Centro do Mundo (DCM), notificados pelo Facebook de que poderiam ter o alcance de suas páginas reduzido ou mesmo serem removidos da rede social, após terem sido avaliados como disseminadores de conteúdos falsos pela agência de checagem Lupa, no caso das notícias sobre o terço abençoado pelo Papa Francisco e entregue ao ex-presidente Lula por um assessor do pontífice.
A internet, assim como a circulação de informação online, portanto, tornaram-se elementos importantes a serem considerados quando se trata de compreender a política contemporaneamente e sua relação com a democracia – ou ameaças a esta. A imprensa de modo geral possui um papel relevante nesse processo. Paradoxalmente, o jornalismo tradicional enfrenta uma crise no Brasil e no mundo. Além disso, a destituição da presidente Dilma Rousseff em 2016, ato parlamentar apoiado pela mídia e pelo judiciário, mostrou mais uma vez que a grande imprensa pode ser nociva à democracia, ao contribuir para levar ao poder e consolidar ações de desmonte do Estado promovidas por um governo que carece de legitimidade. Em paralelo, esse cenário que tensiona antigas formas de atuação propiciou condições para o desenvolvimento de um espaço alternativo de comunicação, a Blogosfera Progressista Brasileira (BP), objeto que assume maior relevância em um cenário político de ataque à democracia, cujo processo é altamente midiatizado.
A BP é um movimento encabeçado por blogueiros, iniciado em meados dos anos 2000, que levou para a web um conjunto de agentes, formado principalmente por jornalistas, intelectuais e militantes políticos ou ligados a movimentos sociais. A iniciativa foi capaz de transformar o jornalismo político em elemento unificador de agentes desiguais, que se articularam em torno de um projeto comum que reivindica construir na web um espaço alternativo ao jornalismo mainstream – possuindo não apenas um papel de imprensa, mas também condições para se desenvolver em um cenário midiático pouco democrático e altamente concentrado nas mãos de algumas famílias e empresários do ramo da comunicação. Cabe notar que o uso do termo “blogosfera” para nomear o fenômeno não é de todo preciso. Além dos blogs, a BP abarca sites, portais, perfis e páginas de redes sociais online. Dentre seus componentes se encontram os jornalistas Renato Rovai e Kiko Nogueira, responsáveis respectivamente pelos portais de notícias Fórum e DCM, páginas expressivas no nicho em que atuam.
Diferentemente do que ocorreu com a blogosfera progressista norte-americana, a brasileira se construiu sobre instituições e lideranças anteriores à existência da blogosfera ou mesmo da popularização da internet. Assim, esse ecossistema midiático não é formado primordialmente por um “novo conjunto de lideranças”; ao contrário, é um grupo cujo vigor remete a instituições existentes fora do ambiente online. Alguns dos blogueiros mais proeminentes devem muito de seu prestígio à carreira construída anteriormente na grande mídia, pela militância em partidos de esquerda, como o PT e, principalmente, PCdoB, ou em movimentos sociais. No campo dos jornalistas, por exemplo, Luis Nassif, do Jornal GGN, foi membro do conselho editorial da Folha de S. Paulo; Kiko Nogueira trabalhou como editor da Veja São Paulo; Altamiro Borges, do Blog do Miro, além de militante político do PCdoB, já atuava no campo do jornalismo no período de abertura política no Brasil e, assim como Renato Rovai, estabeleceu vínculos com movimentos sociais que se desenrolaram no país a partir daquele período, em especial o movimento sindical.
No Brasil, podemos dizer que foi na eleição presidencial de 2010 que as ferramentas digitais assumiram uma importância inédita, em virtude de seu processo de popularização. Nelas, além dos meios considerados já tradicionais, como sites, viu-se a presença mais contundente de blogs, que desde o escândalo do Mensalão, em 2005, e a cobertura eleitoral de 2006 disputavam espaço no cenário do jornalismo político no país. Paralelamente, também ganharam força as redes sociais online como locais de troca de conteúdo político – em especial Twitter e, mais recentemente, Facebook, com destaque para a eleição de 2014, marcadamente polarizada e agressiva. Em meio a esse processo, a participação política se converteu, grosso modo, em defender ou atacar determinados espectros político-ideológicos, cuja pedra angular veio a ser o PT. Na corrida presidencial de 2018, por outro lado, deve se destacar a apatia e extrema desconfiança do eleitorado nas instituições políticas tradicionais – e, sob esse prisma, candidatos considerados “pontos fora da curva”, que consigam se descolar da imagem de “políticos tradicionais” possuem chance de angariar votos com esses eleitores. Entretanto, seria impreciso afirmar que os partidos políticos, e suas respectivas identificações ideológicas, perderam a vez no jogo político…
Se, por um lado, há que se considerar que a crise política, agravada no segundo mandato de Dilma Rousseff, aponta para uma a perda de legitimidade das instituições políticas, por outro ela também contribuiu para reunir a esquerda em defesa da manutenção de um governo democraticamente eleito e restituir – ao menos temporariamente e em meio a nichos da população – um protagonismo do institucional (sobretudo dos partidos tradicionais de esquerda, como PT e PCdoB) na internet, um lugar onde se imaginava que as instituições haviam sido superadas. No que tange especificamente ao campo da comunicação política, a presença do fenômeno BP no sistema midiático brasileiro aponta para uma demanda por opinião que desafia o modelo convencional de jornalismo informativo que até então funcionou como referencial de imprensa no país. Mais que isso, sua ascensão (centralidade e protagonismo no segmento de esquerda) representa a evidência mais dramática da crise pela qual atravessa o jornalismo brasileiro na atualidade, o que se relaciona à disputa pelo monopólio da notícia, de um lado, e à premissa de que um sistema midiático plural, da qual participam múltiplas vozes, é saudável para a democracia. Justamente por esse motivo, o movimento BP se estabelece no cenário contemporâneo brasileiro enquanto forma de resistência não apenas midiática, como também política.
Dessa forma, a polarização na qual nos encontramos é proveniente de uma atuação politicamente mais explícita dos meios de comunicação tradicionais, ao tomarem partido nas disputas, demonstrando que “têm lado”. É, em parte, desse enviesamento da grande mídia que proliferam interpretações “anti-mainstream”, tendo na BP uma das faces mais evidentes dessa dinâmica. O agendamento da temática das fake news potencializa o conflito em torno de um lugar de mediação ocupado pelo jornalismo na sociedade: afinal, a quem cabe informar? Quem está autorizado a ocupar este papel – e quem dará essa autorização? O que se vê é um processo de tomada de decisão que vem se tornando assaz dependente do judiciário e das agências de checagem. O ideal democrático, porém, indica que essa discussão deve ser feita no seio da sociedade, de forma ampla e não-restritiva. Cenário pouco provável de se concretizar após o golpe de 2016.
* Eleonora de Magalhães Carvalho é doutora em Comunicação pelo PPGCOM-UFF, professora nos cursos de Estudos de Mídia (UFF) e Jornalismo (FPG).
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