Por Paulo Moreira Leite, em seu blog:
Entre pessoas familiarizadas com as negociações para a fusão da Embraer com a Boeing, cresce a visão de que a ressalva de Jair Bolsonaro ao acordo entre as duas empresas constitui mais do que uma simples opinião pessoal - e expressa uma visão partilhada por outros setores do governo.
A objeção mencionada pelo presidente numa entrevista na sexta-feira, na Base Aérea de Brasília, envolve o capítulo final das tratativas conduzidas pela atual presidência da Embraer, estatal criada como parte dos projetos de industrialização do país que foi privatizada por moedas podres no governo Fernando Henrique Cardoso.
Sem enfrentar nenhum obstáculo conhecido por parte de Michel Temer, a negociação se encontra na sua reta final. Basta uma manifestação do governo brasileiro -- proprietário da chamada golden share - para uma decisão definitiva.
Pelo acordo, após uma convivência de cinco anos numa terceira empresa, formada por Boeing e Embraer, prevê-se que a companhia brasileira repasse a totalidade das ações de seu departamento comercial -- a fatia realmente lucrativa -- para a sócia norte-americana, que assim se tornará a única proprietária do negócio, afastando de vez uma empresa brasileira de um mercado conquistado e explorado há meio século, com investimentos públicos pesados.
"Seria muito boa essa fusão, mas é uma preocupação nossa daqui cinco anos tudo ser repassado para o outro lado. É um patrimônio nosso", disse Bolsonaro, na sexta-feira. Refletindo a observação do presidente, que pegou de surpresa empresários e membros do próprio governo, a declaração provocou uma queda imediata de 5% nos papéis da empresa negociados em Bolsa -- num patamar que até então refletia os interesses mobilizados pela expectativa da entrega da Embraer em cinco anos.
A verdade é que, empregando outras palavras, Bolsonaro retomou um ponto de vista que guarda uma semelhança importante com a visão de críticos da fusão Boeing-Embraer, dentro e fora do governo, inclusive das Forças Armadas. A explicação para o silêncio mantido até aqui é que a postura monolítica do governo Michel Temer não estimulava vozes dissonantes, que jamais tiveram uma oportunidade à altura para se manifestar.
No plano jurídico, por duas vezes, o juiz Vitorio Giuzio Neto, de São Paulo, contestou a venda, determinado que, em função do caráter estratégico da empresa, o caso deveria ser resolvido pelo Conselho Nacional de Defesa. Nas duas decisões a sentença foi derrubada nas instâncias superiores, que aceitaram o argumento da Advocacia Geral da União, para quem a liminar "agride o princípio constitucional da livre iniciativa". Detalhe: a sentença que derrubou a liminar pela segunda vez foi assinada uma semana antes da mudança de governo. Apenas vinte e nove dias antes de Bolsonaro falar da preocupação com o "patrimônio nosso".
A declaração de Bolsonaro mostra o que sempre se soube: no país real, o ambiente é outro e as vozes críticas têm mais relevância do que se supunha.
Presidente do Clube de Engenharia e um dos mais influentes estudiosos de temas ligados ao desenvolvimento do país, no artigo "O futuro da Embraer", publicado logo depois que as tratativas com a Boeing vieram a público, e ninguém imaginava que Jair Bolsonaro se tornaria presidente da República um dia, o engenheiro Pedro Celestino colocou alguns pontos básicos.
Lembrou a importância estratégica da empresa, fruto do esforço de vários lideres da Aeronáutica -- o Marechal do Ar Casimiro Montenegro, o ministro Osiris Silva, o brigadeiro Sérgio Ferolla - que tornou-se a terceira maior empresa de aviação do planeta. Capaz de competir no mercado mundial de tecnologia de ponta, com a produção de aviões comerciais pequenos e médios para voos regionais, também produz naves de treinamento e também de ataque na área militar.
Examinando uma aproximação em curso na mesma época, entre a europeia Air Bus e a canadense Bombardier, movimento que produziu uma mudança imensa de no mercado mundial de aviação, no Celestino reconhece no texto que que "é compreensível" nessa conjuntura que a Boeing e a Embraer tomassem uma iniciativa equivalente para se proteger de um adversário que se fortalecia repentinamente.
Mas, preocupado com a preservação daquilo que, mais tarde, Bolsonaro iria chamar de "patrimônio nosso", Celestino defende no artigo "uma parceria comercial e tecnológica com a Boeing ou outra grande empresa da indústria aeronáutica". Faz questão de sublinhar, contudo, um ponto essencial: "desde que não implique cessão acionária que repercuta no desenvolvimento da empresa". Numa lembrança de caráter histórico, Celestino recorda que por alguns anos, a Embraer teve uma parceria com a empresa francesa Dassault. Deixa claro que, longe de um convívio amigável e construtivo, o que se viu ali foram várias jogadas desleais. "Enquanto durou a participação, a Dassault tentou impedir o ingresso da Embraer na aviação executiva, por temer a concorrência".
Entre os militares, a visão de que o acordo com a Boeing poderia ajudar na consagração internacional de um novo produto, o cargueiro KC 390 -- construído com dinheiro público, a partir de uma verba inicial de R$ 800 milhões aprovada pelo Congresso durante o governo Lula -- parecia animar muitas conversas. O ambiente hoje é outro, ensina a entrevista de Bolsonaro, situação que abre espaço para outros argumentos.
Na prática, a oposição ao acordo parecia integrar exclusivamente a pauta de poucos remanescentes do nacionalismo militar, perseguido e expurgado durante o regime de 64, intelectuais desenvolvimentistas, sindicalistas e militantes de esquerda.
Na prática, o acordo Boeing-Embraer equivale a tradução material, de uma série de atos que insultam os brasileiros, país onde 66% da população repudia o alinhamento automático com os Estados Unidos, conforme apurou o Data Folha em dezembro. Neste ambiente, Bolsonaro tem um ministro das Relações Exteriores capaz de falar em "Deus de Trump", sinalizando sua referência na cena política mundial. O filho Eduardo saiu de uma audiência na Casa Branca portando um bonezinho, "Trump 2020". O próprio Bolsonaro já bateu continência à bandeira dos Estados Unidos.
Ao falar de "patrimônio nosso", Bolsonaro definiu um fato de extrema gravidade. Resta saber o que pretende fazer com isso.
As sociedades humanas sabem que a existência define as atitudes que se espera das pessoas. Aos críticos de arte, por exemplo, é dado o direito de ter uma opinião -- e basta. Aos homens públicos, que reconhecem uma perda do "patrimônio nosso", espera-se que tomem uma providência para impedir um assalto a riqueza do povo.
Alguma dúvida?
Nenhuma. Quando fala do crime de prevaricação, o artigo 319 do Código Penal é bastante claro: "deixar de praticar, indevidamente, ato de ofício, ou praticá-lo contra disposição expressa de lei, para satisfazer interesse ou sentimento pessoal".
A objeção mencionada pelo presidente numa entrevista na sexta-feira, na Base Aérea de Brasília, envolve o capítulo final das tratativas conduzidas pela atual presidência da Embraer, estatal criada como parte dos projetos de industrialização do país que foi privatizada por moedas podres no governo Fernando Henrique Cardoso.
Sem enfrentar nenhum obstáculo conhecido por parte de Michel Temer, a negociação se encontra na sua reta final. Basta uma manifestação do governo brasileiro -- proprietário da chamada golden share - para uma decisão definitiva.
Pelo acordo, após uma convivência de cinco anos numa terceira empresa, formada por Boeing e Embraer, prevê-se que a companhia brasileira repasse a totalidade das ações de seu departamento comercial -- a fatia realmente lucrativa -- para a sócia norte-americana, que assim se tornará a única proprietária do negócio, afastando de vez uma empresa brasileira de um mercado conquistado e explorado há meio século, com investimentos públicos pesados.
"Seria muito boa essa fusão, mas é uma preocupação nossa daqui cinco anos tudo ser repassado para o outro lado. É um patrimônio nosso", disse Bolsonaro, na sexta-feira. Refletindo a observação do presidente, que pegou de surpresa empresários e membros do próprio governo, a declaração provocou uma queda imediata de 5% nos papéis da empresa negociados em Bolsa -- num patamar que até então refletia os interesses mobilizados pela expectativa da entrega da Embraer em cinco anos.
A verdade é que, empregando outras palavras, Bolsonaro retomou um ponto de vista que guarda uma semelhança importante com a visão de críticos da fusão Boeing-Embraer, dentro e fora do governo, inclusive das Forças Armadas. A explicação para o silêncio mantido até aqui é que a postura monolítica do governo Michel Temer não estimulava vozes dissonantes, que jamais tiveram uma oportunidade à altura para se manifestar.
No plano jurídico, por duas vezes, o juiz Vitorio Giuzio Neto, de São Paulo, contestou a venda, determinado que, em função do caráter estratégico da empresa, o caso deveria ser resolvido pelo Conselho Nacional de Defesa. Nas duas decisões a sentença foi derrubada nas instâncias superiores, que aceitaram o argumento da Advocacia Geral da União, para quem a liminar "agride o princípio constitucional da livre iniciativa". Detalhe: a sentença que derrubou a liminar pela segunda vez foi assinada uma semana antes da mudança de governo. Apenas vinte e nove dias antes de Bolsonaro falar da preocupação com o "patrimônio nosso".
A declaração de Bolsonaro mostra o que sempre se soube: no país real, o ambiente é outro e as vozes críticas têm mais relevância do que se supunha.
Presidente do Clube de Engenharia e um dos mais influentes estudiosos de temas ligados ao desenvolvimento do país, no artigo "O futuro da Embraer", publicado logo depois que as tratativas com a Boeing vieram a público, e ninguém imaginava que Jair Bolsonaro se tornaria presidente da República um dia, o engenheiro Pedro Celestino colocou alguns pontos básicos.
Lembrou a importância estratégica da empresa, fruto do esforço de vários lideres da Aeronáutica -- o Marechal do Ar Casimiro Montenegro, o ministro Osiris Silva, o brigadeiro Sérgio Ferolla - que tornou-se a terceira maior empresa de aviação do planeta. Capaz de competir no mercado mundial de tecnologia de ponta, com a produção de aviões comerciais pequenos e médios para voos regionais, também produz naves de treinamento e também de ataque na área militar.
Examinando uma aproximação em curso na mesma época, entre a europeia Air Bus e a canadense Bombardier, movimento que produziu uma mudança imensa de no mercado mundial de aviação, no Celestino reconhece no texto que que "é compreensível" nessa conjuntura que a Boeing e a Embraer tomassem uma iniciativa equivalente para se proteger de um adversário que se fortalecia repentinamente.
Mas, preocupado com a preservação daquilo que, mais tarde, Bolsonaro iria chamar de "patrimônio nosso", Celestino defende no artigo "uma parceria comercial e tecnológica com a Boeing ou outra grande empresa da indústria aeronáutica". Faz questão de sublinhar, contudo, um ponto essencial: "desde que não implique cessão acionária que repercuta no desenvolvimento da empresa". Numa lembrança de caráter histórico, Celestino recorda que por alguns anos, a Embraer teve uma parceria com a empresa francesa Dassault. Deixa claro que, longe de um convívio amigável e construtivo, o que se viu ali foram várias jogadas desleais. "Enquanto durou a participação, a Dassault tentou impedir o ingresso da Embraer na aviação executiva, por temer a concorrência".
Entre os militares, a visão de que o acordo com a Boeing poderia ajudar na consagração internacional de um novo produto, o cargueiro KC 390 -- construído com dinheiro público, a partir de uma verba inicial de R$ 800 milhões aprovada pelo Congresso durante o governo Lula -- parecia animar muitas conversas. O ambiente hoje é outro, ensina a entrevista de Bolsonaro, situação que abre espaço para outros argumentos.
Na prática, a oposição ao acordo parecia integrar exclusivamente a pauta de poucos remanescentes do nacionalismo militar, perseguido e expurgado durante o regime de 64, intelectuais desenvolvimentistas, sindicalistas e militantes de esquerda.
Na prática, o acordo Boeing-Embraer equivale a tradução material, de uma série de atos que insultam os brasileiros, país onde 66% da população repudia o alinhamento automático com os Estados Unidos, conforme apurou o Data Folha em dezembro. Neste ambiente, Bolsonaro tem um ministro das Relações Exteriores capaz de falar em "Deus de Trump", sinalizando sua referência na cena política mundial. O filho Eduardo saiu de uma audiência na Casa Branca portando um bonezinho, "Trump 2020". O próprio Bolsonaro já bateu continência à bandeira dos Estados Unidos.
Ao falar de "patrimônio nosso", Bolsonaro definiu um fato de extrema gravidade. Resta saber o que pretende fazer com isso.
As sociedades humanas sabem que a existência define as atitudes que se espera das pessoas. Aos críticos de arte, por exemplo, é dado o direito de ter uma opinião -- e basta. Aos homens públicos, que reconhecem uma perda do "patrimônio nosso", espera-se que tomem uma providência para impedir um assalto a riqueza do povo.
Alguma dúvida?
Nenhuma. Quando fala do crime de prevaricação, o artigo 319 do Código Penal é bastante claro: "deixar de praticar, indevidamente, ato de ofício, ou praticá-lo contra disposição expressa de lei, para satisfazer interesse ou sentimento pessoal".
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