Charge: Miguel Paiva/Jornal do Brasil |
A morte está no ar: no seu voo sobre Angra dos Reis, o governador do Rio de Janeiro disparou projeteis contra a segurança pública, violando os direitos humanos e a Constituição brasileira. .
Maio, 2019. Diante do helicóptero pronto para decolar, peito estufado, alto e altivo, hierático e assertivo, o governador Wilson Witzel diz para a câmera: “Olá pessoal [nesse ponto, projeta o lado esquerdo do corpo e o braço esquerdo para a frente, mantendo o pé direito fixo na grama, o que o obriga a equilibrar a perna direita sobre a ponta do pé], estamos começando hoje, aqui em Angra dos Reis, a pedido do prefeito Ceciliano Jordão [nesse momento, sem deixar de encarar a câmera, bate duas vezes com as mãos no ombro esquerdo do prefeito , situado à sua direita, cuja altura reduzida destaca coreográfica e cenograficamente a superioridade física do governador], uma operação [os braços de Witzel se agitam e as mãos apontam para baixo, quando não os indicadores, realçando o caráter afirmativo do enunciado], começando com a Core, com a polícia militar, com a polícia civil, para acabar de vez com essa bandidagem [aqui, os braços dobrados jogam os antebraços e as mãos espalmadas para os lados, cruzando-se, reforçando o sentido negativo da oração] que está aterrorizando a nossa cidade maravilhosa de Angra dos Reis. Jordão [virando-se para o prefeito e os demais circunstantes, postando-se de costas e de lado para a câmera], esse é o pessoal da CORE e do helicóptero. Nós vamos começar hoje [aproxima-se da câmera, encarando-a, novamente, braço esquerdo à frente, indicador apontando repetidamente para baixo, a pontuar a decisão e sua firmeza; o tom de voz eleva-se, sugerindo indignação], hoje nós vamos começar a operação. Acabou a bagunça [os antebraços e as mãos descrevem um arco, concluído com o afastamento das mãos, linguagem gestual que redunda, visualmente, a expressão “acabou a bagunça”; o dorso está projetado para a frente e o governador põe-se em close, simulando intimidade com o espectador]. Vamos colocar ordem na casa. Vambora.”
Witzel faz o gesto de quem comanda, como que a determinar que os espectadores o sigam, vira-se de costas e caminha, célere, para o helicóptero. Afastando-se da câmera, olha para trás, isto é, para os espectadores, duas vezes, como que a certificar-se de que ainda está sendo filmado. Finalmente, à distância, repete o gesto que convoca os espectadores para que o sigam. Citando, provavelmente de modo inconsciente, conhecido repórter, o governador evoca o “vem comigo” que simula parceria e cumplicidade.
Os gestos são estudados e teatrais. Disso dá-se conta quem percebe o pé direito, em ponta, fixo sobre o gramado, enquanto o corpo se projeta para a câmera. Ou quem não desiste do vídeo antes do fim e sente-se interpelado pelo gesto dos braços, ombro e cabeça, que, de longe, repetem o “vambora”, réplica envergonhada do “vem comigo”. Sim, envergonhado, porque, se o convite fosse explicitado, a seriedade do momento se esvairia: o público estaria sendo convocado a “acabar com a bandidagem”. Em outras palavras: o eleitorado, no sofá, comendo pipoca, estaria sendo chamado a acompanhar, cúmplice, a vitória do Estado em sua luta incansável, e aérea, contra o crime. Como nos programas sensacionalistas das tardes nas TVs abertas, o espectador seria instado a odiar e vingar-se, no mesmo movimento, sem precisar sequer levantar-se da poltrona. Bastaria devolver em audiência, e voto, aquele espetáculo de autoridade e redenção, promessa de sangue e vísceras.
O dublê de governador, repórter midiático e soldado de games veste camisa Lacoste comprida cinza, calças pretas e tênis cinza e branco. Parece roteiro banal, destinado a esgotar-se na conclamação inusitada: a bravata de opereta e o herói de fancaria. “Bat-zel e a Liga do Bem contra os guerreiros do mal.” Tudo pode, enfim, acabar em chave cômica. A caricatura do Estado decadente, substituindo a solução objetiva dos problemas pelo triunfo imaginário no teatro das operações.
A segunda cena, entretanto, demonstra, definitivamente, a gravidade do que se vê. Não há lugar para humor e ironia. No interior da aeronave em pleno voo, o governador em closecom proteção auricular, reeditando Apocalipse Now, filma-se a si mesmo, alguns policiais, e a arma apontada para fora do helicóptero: “Estamos iniciando hoje uma operação aqui em Angra dos Reis com a CORE. Trouxe aqui nosso , prefeito Jordão, vamos botar fim na bandidagem em Angra dos Reis. Acabou.”
A arma, o rosto, a determinação. Esse é nosso governador. O crime, no entanto, não acabou, embora a brutalidade letal por parte das polícias não cesse de crescer. Nos três primeiros meses de 2019, 434 pessoas foram mortas em ações policiais, no estado do Rio. Um recorde absoluto para a sala de troféus do governador.
Circulam na internet outros dois vídeos focalizando o que talvez seja o mesmo helicóptero sobrevoando uma região povoada. Ouvem-se tiros. Sua veracidade, contudo, não pode ser garantida. Afinal, ocorreram vários sobrevoos de helicópteros e tiros, não por acaso com resultados trágicos. Indiscutível é a autenticidade das duas cenas iniciais, protagonizadas pelo próprio governador. Elas são suficientes, porque anunciam tiros e correspondem a uma confissão de Witzel. Ele está cumprindo promessas de campanha e ameaças enunciadas ao vivo e a cores de que seu governo estimulará o abate de criminosos, ou melhor, de suspeitos que estiverem portando fuzis. Recorrerá a snipers, se for preciso. E a plataformas instáveis, como um helicóptero. Se, por exemplo, alguém caminhar numa favela com um fuzil para levá-lo de uma casa a outra, constrangido pela chantagem de um criminoso, tornar-se-á alvo de execução extrajudicial. A pena de morte está instalada no estado do Rio, dispensando-se o julgamento. É claro que se essa pessoa for negra o abate será ainda mais provável.
Antes de seguir adiante, uma observação: o governador não disse se determinará à polícia a adoção dos mesmos procedimentos em áreas controladas por milícias. Será que policiais abririam fogo contra seus colegas? Políticos aprovariam o abate de suas bases?
Mas não só de más notícias vivem o Brasil e o Rio de Janeiro. No dia 6 de maio, a deputada estadual Renata Souza (PSOL), honrou seu mandato e deu voz à consciência cívica fluminense, enviando à relatora para o Brasil da Comissão Interamericana de Direitos Humanos da OEA, Antonia Urrejola Noguera, informações sobre violações aos direitos humanos no estado do Rio de Janeiro. Ao final das 13 páginas do documento circunstanciado, a deputada solicita que a Comissão requeira às autoridades brasileiras “uma declaração a respeito dos fatos” e recomende ao governo brasileiro providências que visem a redução das violações, sobretudo aquelas letais, perpetradas pelas forças de segurança.
Associo-me aos protestos de Renata Souza e adiciono alguns argumentos. Nas posturas do governador Witzel e em sua “política de segurança” belicista há vários aspectos a examinar: a natureza da atitude do governador, suas implicações práticas, políticas e simbólico-morais, seus pressupostos e a percepção equivocada tanto de suas funções quanto do papel das polícias e da segurança pública como política de Estado.
O abate começou
A natureza da atitude do governador nos vídeos é eminentemente performática, no sentido linguístico do termo: quando diz que vai acabar com a bandidagem, entrando num helicóptero com policiais armados, Witzel não está declarando uma disposição, está agindo, isto é, está fazendo algo descrito (pela dimensão constativa do discurso, ou seja, pelo relato de sua atuação por quem o vê e ouve) como uma ação contra o crime. Em outras palavras: o governador encena a iminência de um combate. Ele vai à caça de criminosos.
O abate começou – é o que seus atos incitam o espectador a depreender. Falando agressivamente sobre seus alvos e expressando, indignado, sua decisão de atingi-los, o locutor não está vocalizando opiniões negativas sobre esses alvos; está, sim, performaticamente, agredindo seus inimigos. Quer dizer, está fazendo, não falando. Por que discutir uma política de segurança, que inclui tantas mediações complexas (diagnóstico, planejamento, execução, monitoramento corretivo e avaliação) e a articulação de competências distintas e complementares, se já estão em curso ações, produzindo, supostamente, resultados imediatos?
O performativo é o teatro de ilusões da operação aérea, embora nem por isso seja inócuo. Com suas cenas, o governador promove resultados, sim, mas não exatamente o que seria de se esperar: a redução da violência e da insegurança, a garantia dos direitos elementares da população, em um Estado democrático de direito, que exige respeito aos mandamentos constitucionais. Pelo contrário.
A implicação prática do vídeo, assim como das promessas de abate, é a elevação meteórica dos indicadores de vitimização letal por ações policiais, já tão elevados. Em 2018, com a intervenção federal no Rio de Janeiro, houve um aumento de 36% (em relação a 2017) e os números finais correspondem a 31% da quantidade total dos homicídios dolosos perpetrados no estado do Rio. Em 2019, tudo leva a crer que o número será maior. Ou seja, cerca de um terço, ou mais, dos assassinatos cometidos no estado o serão por policiais em ações oficiais. Dizendo de outra forma: se as polícias de Witzel parassem de matar, a quantidade de vítimas letais por ações intencionais cairiam em um terço, pelo menos.
As implicações políticas são drásticas, e não incluo aqui a eventual avaliação popular futura do desempenho do governador. São dramáticas porque tiram do foco as milícias e as investigações, ao colocar no centro das atenções a guerra às drogas e o confronto de tipo militar.
Teremos menos polícia civil, segundo a definição constitucional, que lhe atribui papel investigativo, e menos perícia técnico-científica; em compensação, teremos mais polícia civil armada e organizada à imagem e semelhança das unidades bélicas da PM. Aliás, a constitucionalidade da CORE (Coordenadoria de Recursos Especiais), que viaja pelos céus de Angra com o governador, enquanto batalhão de combate no seio da polícia civil, deve ser arguida.
Lembremo-nos de que os recursos são escassos e seu emprego responde a uma equação de soma zero. Não haverá esforços expressivos na repressão às milícias enquanto as energias do Estado forem despejadas na perempta e irracional guerra às drogas, impossível de vencer e que só tem provocado a criminalização da pobreza, a degradação institucional das polícias e da política, e o encarceramento em massa que destrói vidas jovens e fortalece as fações criminosas.
Por outro lado, sabe-se que, sem eliminar as milícias, não haverá a transformação institucional profunda de que o estado do Rio precisa, nas polícias e na política. A infiltração mafiosa na política fluminense não foi obstada com as prisões do ex-governador Sérgio Cabral, do ex-deputado federal Eduardo Cunha, do ex-deputado estadual Jorge Picciani e seus acólitos. O estímulo à violência policial implica licença para agir, independentemente das restrições legais, o que abre espaço à formação de nichos autônomos, relativamente às linhas de comando das instituições, gerando anarquia, berço do crime organizado que chamamos milícia.
Limites em dissolução
As implicações simbólicas e morais da performance internáutica do governador resumem-se a uma palavra: autorização. Autorização tácita, quando não explícita, para suspender limites morais e psíquicos, além dos legais. Esse passaporte psicológico e moral, abolindo constrangimentos, concorre para a implicação prática já descrita: policiais sentir-se-ão desinibidos para agir com violência ilimitada contra aqueles definidos como alvos do “abate”. Os dados acima mencionados sobre os primeiros três meses de 2019 falam por si.
O governador evidencia que cultiva um entendimento idiossincrático a propósito de sua função. Imiscuindo-se em ações policiais e atuando como orador motivacional, ou fazendo exercícios físicos a seu lado, Witzel confunde o ideal de estadista com o modelo do herói.
Ninguém é eleito para ser herói. Herói é aquele indivíduo que ultrapassa o horizonte de seu dever por motivos altruístas, orientado por sua própria concepção de moralidade e inspirado em impulsos que provém do mundo dos afetos. Ele ou ela dá o que não se lhe pede. Dá mais do que seria sua obrigação. No limite, sacrifica sua vida em benefício do Outro ou da coletividade. Quando o projeto de um governador é ser herói, o que está em risco são os próprios limites de seu dever, que se confundem com determinações constitucionais. Se ele quiser dar mais do que seria sua obrigação institucional, corre-se o risco de que tome da coletividade o que não lhe cabe: direitos e liberdades. No limite, a vida.
O risco de um governador herói é a explosão voluntarista e a expansão egoico-individualista além dos limites legais, em benefício de sua carreira, em detrimento do interesse público. O impulso individualista e voluntarista do pretenso herói, enquanto governador, sacrifica mediações em nome da performance, do ato, do resultado imediato, ou de sua falsa idealização. Sacrificar mediações representa subestimar a complexidade do real, os desafios das políticas públicas e a riqueza do conhecimento. Por isso, o anti-intelectualismo autoritário e o enaltecimento ingênuo, demagógico e populista da prática – em contraposição ao planejado, negociado e refletido – costumam ser o apanágio do político-herói e o fim da democracia.
No Rio, as cúpulas das polícias demandavam a extinção da Secretaria de Segurança. Afirmando-se não-político, Witzel revela-se o mais “político” dos governadores, ao aceitar a pressão e fechar a secretaria. A decisão valoriza cada polícia, do ponto de vista corporativista, em prejuízo da articulação sistemática entre elas.
Não há medida institucional mais irracional, em matéria de segurança pública, de que se tenha notícia, em todo o país. Se o modelo policial é perempto e inepto, como afirmam 70% dos policiais e demais profissionais da segurança pública brasileiros, justamente por dividir o ciclo das tarefas policiais, eliminar a instância de coordenação é absolutamente injustificável. Por outro lado, ao declarar que ele próprio, o governador, fará as vezes de secretário de Segurança, de coordenador das polícias, é demonstrar não ter noção das exigências de um governo e das atribuições de uma Secretaria de Segurança.
O vídeo revela que o governador trata a polícia civil como instituição paramilitar, convocando a CORE para agir e incitando seus comandados a “botar fim na bandidagem”, o que difere de investigar e, quando for o caso, conduzir ao Ministério Público e à Justiça, a qual pode, eventualmente, determinar a prisão. “Botar fim” não é função das polícias, muito menos de um governador.
Isso tudo comprova que o governador confunde a promoção da segurança pública com uma guerra contra inimigos, identificados no varejo de confrontos voluntaristas, a serem eliminados sem julgamento e sem que governo e polícias tenham sequer de prestar contas por seus atos. Por esse motivo, aliás, Witzel apoia a proposta do ministro da Justiça de Bolsonaro, Sérgio Moro, sobre o “excludente de ilicitude”.
O vídeo do sobrevoo veicula uma irresponsabilidade de múltiplas dimensões. O titular de um poder delegado tem o dever de evitar riscos evitáveis contra sua própria vida e sua integridade física para preservar o fiel cumprimento de seu mandato.
Expor-se, sem qualquer motivo, irresponsavelmente, apenas para exibir-se e conclamar a população a participar, virtualmente, da guerra que declara contra “a bandidagem” (e esse convite transborda as fronteiras da internet, convertendo-se em exaltação tóxica da violência), trai os compromissos elementares da autoridade máxima do poder executivo com suas atribuições. E isso, tanto por colocar em risco a própria vida, quanto por colocar em risco as vidas de inocentes (moradores de Angra dos Reis, assim como no Complexo da Maré e das demais localidades submetidas a abordagens inadequadas, com base em plataforma aérea instável) e por envenenar o espírito da sociedade com a ânsia por justiçamento, que é o avesso da Justiça.
Tiros dados de um helicóptero são fonte de riscos para as comunidades e agridem os direitos constitucionais. Alvejar suspeitos desse modo mata inocentes e rasga a Constituição.
* Eduardo Soares é antropólogo, ex-secretário nacional de Segurança Pública, autor de Desmilitarizar; segurança pública e direitos humanos, lançamento da editora Boitempo.
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