Por Marcos Rolim, no site Sul-21:
Há livros recentes especialmente importantes para que possamos compreender o fenômeno da ascensão da extrema-direita no Brasil e em vários outros países. “Como Funciona o Fascismo, de Jason Stanley (LPM, 206 p.) e “Como as Democracias Morrem”, de Steven Levitsky e Daniel Ziblatt (Zahar, 272 p.) são referências fundamentais. A obra mais impactante, entretanto, é “O Povo Contra a Democracia: porque nossa liberdade corre perigo e como salvá-la”, de Yascha Mounk (Cia. das Letras, 443 p.).
Mounk sustenta, de forma persuasiva e com muitas evidências, uma síntese a respeito desse período histórico. A democracia liberal, compreendida como o modelo político de governos populares e direitos individuais, se firmou em décadas de estabilidade política, desenvolvimento econômico e produção de bem-estar em grande parte do mundo, notadamente na Europa e na América do Norte. Essa experiência oportunizou a reunião de dois componentes, democracia e liberalismo, que, historicamente, estiveram muitas vezes separados. O atual período estaria efetuando mais um divórcio. Para o autor, assinale-se, “democracia” é o equivalente ao processo pelo qual a cidadania toma as decisões fundantes a respeito da ordem política, enquanto que “liberalismo” é o mesmo que a realidade dos direitos individuais.
O crescente processo de complexificação das sociedades contemporâneas estaria, segundo Mounk, materializando duas tendências: o “liberalismo antidemocrático” e a “democracia iliberal”. Pela primeira, temos sistemas políticos mais ou menos fechados à participação popular, em que as decisões mais importantes nada têm a ver com a opinião da cidadania, mas que consagram direitos em diferentes graus de efetividade. De uma forma mais geral, essa é a realidade da maioria das nações ocidentais já há algumas décadas. A própria globalização econômica e cultural construiu instâncias supranacionais que, em conjunto com os interesses mais poderosos do mercado, instituíram muitos mecanismos de decisão, de natureza técnica, financeira e diplomática, que sequer são conhecidos pelos eleitores e sobre os quais governos e parlamentos possuem pouca ou nenhuma incidência. Mesmo no plano interno, a atuação das agências de regulação e dos órgãos de controle, somados às limitações financeiras impostas aos gestores e ao processo de judicialização da administração pública, têm tornado os espaços de gestão muito mais estreitos, o que concorre para a ideia da inutilidade da política e de suas instituições. Pela segunda alternativa, entretanto, temos algo muito pior: governos populares – no sentido de refletirem uma vontade majoritária expressa em processos eleitorais – que objetivam suprimir direitos fundamentais. Governantes com esse perfil são “outsiders” que precisam desenvolver um discurso antissistema, de forma a se nutrir do desencanto da maioria dos eleitores com a política tradicional e com as instituições da democracia.
Três características estariam na base do processo histórico de descolamento da democracia dos direitos: 1) a crise e a estagnação econômica que impede o aumento da prosperidade geral e impõe pesadas restrições a grupos sociais expressivos, incluindo as camadas médias; 2) o fim da homogeneidade étnica em várias nações com o aumento dos fluxos migratórios e o surgimento de demandas por inclusão e respeito de grupos minoritários e 3) as novas possibilidades abertas pela Internet e pelas redes sociais que quebram o monopólio discursivo dos meios de comunicação, mas privatizam a produção e a circulação de conceitos e narrativas, liberando monstros que, antes, eram contidos pela simples existência de uma esfera pública. O livro discorre sobre muitos outros temas, não se furtando ao desafio de apresentar uma agenda política para derrotar os projetos populistas. Um texto, em síntese, imprescindível.
Parece claro que a chegada ao poder de líderes populistas com características fascistas como Recep Tayyip Erdoğan (Turquia), Viktor Orbán (Hungria), Narendra Modi (Índia), Rodrigo Duterte (Filipinas) e Jarosław Kaczyński (Polônia), além de Trump, Putin e Bolsonaro, evidenciam uma situação histórica marcada pelo descrédito na democracia e nas suas instituições, a começar pelos partidos políticos. Pesquisa do Barômetro das Américas divulgada esta semana, aliás, mostra que 6 em cada 10 brasileiros não estão satisfeitos com a democracia, sendo que o Brasil ocupa a penúltima posição no ranking de respeito pelas instituições políticas entre 26 países da América Latina. O estudo mostra que 35% dos brasileiros apoiaria um golpe militar contra a corrupção; disposição que alcança 43% entre os que se consideram “de direita” e 47% entre os evangélicos. Pela primeira vez no Brasil, desde 2012, os eleitores que se autodeclaram “de direita” (39%) superam os que se dizem “de esquerda” (28%). A diferença, observem, é de 11 pontos percentuais, o que significa uma vantagem de mais de 1/3. O tema da corrupção, como tenho sustentado há muito, ocupa lugar central nessa configuração a ponto de 31% dos que se dizem “de esquerda” afirmarem que apoiariam um golpe militar em resposta à corrupção. As Forças Armadas são a instituição que possui a maior confiança dos brasileiros (70%). O Congresso (31%) e os partidos políticos (13%) são os que geram menos confiança. Quase 40% dos brasileiros acham que presidente pode dissolver o STF e governar sem o Tribunal caso o país enfrente dificuldades. O descontentamento com o Supremo, aliás, embora seja mais pronunciado na direita, é grande em todos os matizes ideológicos.
Em todos os países onde a extrema direita chegou ao poder, se observou o esgotamento do modelo político existente e a incapacidade das forças situadas à esquerda em promover reformas institucionais. Normalmente, aliás, essas mesmas forças reproduziram condutas políticas bastante tradicionais, incluindo uma inclinação especial pelo enriquecimento ilícito e pelo cinismo, e se transformaram em partidos daquela mesma ordem que passava a ser colocada em cheque pela maioria da população.
Populistas precisam enfraquecer as instituições do Estado Democrático de Direito porque são elas que reúnem as condições para limitar seus projetos autoritários e deter a escalada repressiva em direção a uma ditadura que pode se instalar “a frio”, sem ruptura monumental. Pela mesma razão, os projetos de inspiração fascismo precisam desconstituir a pluralidade e fazer calar o senso crítico remanescente. Não por acaso, seus primeiros ataques se dirigem à imprensa e à Educação pública.
É preciso compreender, entretanto, de onde vem a força política desse projeto reacionário. A resposta aponta para a desconfiança generalizada da população no sistema político e em suas instituições. Uma desconfiança que, assinale-se, é legítima e amparada por uma experiência real de ineficiência de muitos serviços públicos, de corrupção generalizada e de tolerância do mundo político com uma e outra.
O desafio para uma perspectiva democrática então é o de propor a reforma das instituições de tal modo que seja possível disputar o apoio da população a uma agenda transformadora, subtraindo legitimidade social do projeto fascista e, ao mesmo tempo, viabilizando mudanças que melhorem o desempenho institucional e reduzam o estado geral de alienação dos gestores e agentes públicos do seu próprio País. Essa agenda de reformas de um Estado que, particularmente no Brasil, se fez às custas dos mais pobres e contra eles deveria ser a principal preocupação de uma esquerda com um elementar senso de justiça e um tanto de lucidez. O que vemos, entretanto, é uma conduta de associação dos partidos da esquerda à velha política, com sucessivas votações conjuntas com o “Centrão” no Congresso, com o reforço de posturas corporativistas no debate da Previdência, acompanhado do já antigo mutismo quanto à necessidade de construção de um Estado orientado por princípios republicanos, avesso aos privilégios e aos assaltantes do Erário e capaz de desenvolver políticas públicas amparadas por evidências que qualifiquem a Educação, a Saúde e a Segurança Pública.
O quadro que enfrentamos será ainda mais difícil se os partidos de esquerda tentarem aparelhar as manifestações populares de resistência aos projetos de desconstrução de direitos. A presidente nacional do PT, Gleisi Hoffmann, sustentou que a consigna “Lula Livre” seja associada aos movimentos populares de resistência, como a luta em defesa da Educação (veja aqui). Pode ter sido apenas outra frase infeliz entre tantas, mas não deixa de expressar a miséria política que se instalou na cúpula da legenda. Então, no momento em que centenas de milhares de estudantes e professores em todo o País vão às ruas em manifestações fundamentais para que se possa sensibilizar a opinião pública contra um governo infame, há quem no PT, desde sua direção, pretenda “colar” nos movimentos autônomos a marca que mais identifica o partido? A mesma em torno da qual nenhuma manifestação popular de vulto foi realizada no Brasil? Haddad sinalizou que essa não pode ser a conduta e o fez como quem se encontra diante da obrigação de lembrar a importância do juízo. Em torno do tema, não obstante, nada mais se ouviu ou foi dito pelos petistas, o que autoriza a dúvida. O que mesmo pretende o PT na hora mais grave da civilização brasileira? Valeria alertar a militância que, quem for às manifestações com a consigna “Lula livre” estará contribuindo para a redução da amplitude dos movimentos e criando enorme facilidade à extrema-direita para carimbar as manifestações como “atos partidários”.
* Marcos Rolim é doutor e mestre em Sociologia e jornalista. Presidente do Instituto Cidade Segura. Autor, entre outros, de “A Formação de Jovens Violentos: estudo sobre a etiologia da violência extrema” (Appris, 2016).
Há livros recentes especialmente importantes para que possamos compreender o fenômeno da ascensão da extrema-direita no Brasil e em vários outros países. “Como Funciona o Fascismo, de Jason Stanley (LPM, 206 p.) e “Como as Democracias Morrem”, de Steven Levitsky e Daniel Ziblatt (Zahar, 272 p.) são referências fundamentais. A obra mais impactante, entretanto, é “O Povo Contra a Democracia: porque nossa liberdade corre perigo e como salvá-la”, de Yascha Mounk (Cia. das Letras, 443 p.).
Mounk sustenta, de forma persuasiva e com muitas evidências, uma síntese a respeito desse período histórico. A democracia liberal, compreendida como o modelo político de governos populares e direitos individuais, se firmou em décadas de estabilidade política, desenvolvimento econômico e produção de bem-estar em grande parte do mundo, notadamente na Europa e na América do Norte. Essa experiência oportunizou a reunião de dois componentes, democracia e liberalismo, que, historicamente, estiveram muitas vezes separados. O atual período estaria efetuando mais um divórcio. Para o autor, assinale-se, “democracia” é o equivalente ao processo pelo qual a cidadania toma as decisões fundantes a respeito da ordem política, enquanto que “liberalismo” é o mesmo que a realidade dos direitos individuais.
O crescente processo de complexificação das sociedades contemporâneas estaria, segundo Mounk, materializando duas tendências: o “liberalismo antidemocrático” e a “democracia iliberal”. Pela primeira, temos sistemas políticos mais ou menos fechados à participação popular, em que as decisões mais importantes nada têm a ver com a opinião da cidadania, mas que consagram direitos em diferentes graus de efetividade. De uma forma mais geral, essa é a realidade da maioria das nações ocidentais já há algumas décadas. A própria globalização econômica e cultural construiu instâncias supranacionais que, em conjunto com os interesses mais poderosos do mercado, instituíram muitos mecanismos de decisão, de natureza técnica, financeira e diplomática, que sequer são conhecidos pelos eleitores e sobre os quais governos e parlamentos possuem pouca ou nenhuma incidência. Mesmo no plano interno, a atuação das agências de regulação e dos órgãos de controle, somados às limitações financeiras impostas aos gestores e ao processo de judicialização da administração pública, têm tornado os espaços de gestão muito mais estreitos, o que concorre para a ideia da inutilidade da política e de suas instituições. Pela segunda alternativa, entretanto, temos algo muito pior: governos populares – no sentido de refletirem uma vontade majoritária expressa em processos eleitorais – que objetivam suprimir direitos fundamentais. Governantes com esse perfil são “outsiders” que precisam desenvolver um discurso antissistema, de forma a se nutrir do desencanto da maioria dos eleitores com a política tradicional e com as instituições da democracia.
Três características estariam na base do processo histórico de descolamento da democracia dos direitos: 1) a crise e a estagnação econômica que impede o aumento da prosperidade geral e impõe pesadas restrições a grupos sociais expressivos, incluindo as camadas médias; 2) o fim da homogeneidade étnica em várias nações com o aumento dos fluxos migratórios e o surgimento de demandas por inclusão e respeito de grupos minoritários e 3) as novas possibilidades abertas pela Internet e pelas redes sociais que quebram o monopólio discursivo dos meios de comunicação, mas privatizam a produção e a circulação de conceitos e narrativas, liberando monstros que, antes, eram contidos pela simples existência de uma esfera pública. O livro discorre sobre muitos outros temas, não se furtando ao desafio de apresentar uma agenda política para derrotar os projetos populistas. Um texto, em síntese, imprescindível.
Parece claro que a chegada ao poder de líderes populistas com características fascistas como Recep Tayyip Erdoğan (Turquia), Viktor Orbán (Hungria), Narendra Modi (Índia), Rodrigo Duterte (Filipinas) e Jarosław Kaczyński (Polônia), além de Trump, Putin e Bolsonaro, evidenciam uma situação histórica marcada pelo descrédito na democracia e nas suas instituições, a começar pelos partidos políticos. Pesquisa do Barômetro das Américas divulgada esta semana, aliás, mostra que 6 em cada 10 brasileiros não estão satisfeitos com a democracia, sendo que o Brasil ocupa a penúltima posição no ranking de respeito pelas instituições políticas entre 26 países da América Latina. O estudo mostra que 35% dos brasileiros apoiaria um golpe militar contra a corrupção; disposição que alcança 43% entre os que se consideram “de direita” e 47% entre os evangélicos. Pela primeira vez no Brasil, desde 2012, os eleitores que se autodeclaram “de direita” (39%) superam os que se dizem “de esquerda” (28%). A diferença, observem, é de 11 pontos percentuais, o que significa uma vantagem de mais de 1/3. O tema da corrupção, como tenho sustentado há muito, ocupa lugar central nessa configuração a ponto de 31% dos que se dizem “de esquerda” afirmarem que apoiariam um golpe militar em resposta à corrupção. As Forças Armadas são a instituição que possui a maior confiança dos brasileiros (70%). O Congresso (31%) e os partidos políticos (13%) são os que geram menos confiança. Quase 40% dos brasileiros acham que presidente pode dissolver o STF e governar sem o Tribunal caso o país enfrente dificuldades. O descontentamento com o Supremo, aliás, embora seja mais pronunciado na direita, é grande em todos os matizes ideológicos.
Em todos os países onde a extrema direita chegou ao poder, se observou o esgotamento do modelo político existente e a incapacidade das forças situadas à esquerda em promover reformas institucionais. Normalmente, aliás, essas mesmas forças reproduziram condutas políticas bastante tradicionais, incluindo uma inclinação especial pelo enriquecimento ilícito e pelo cinismo, e se transformaram em partidos daquela mesma ordem que passava a ser colocada em cheque pela maioria da população.
Populistas precisam enfraquecer as instituições do Estado Democrático de Direito porque são elas que reúnem as condições para limitar seus projetos autoritários e deter a escalada repressiva em direção a uma ditadura que pode se instalar “a frio”, sem ruptura monumental. Pela mesma razão, os projetos de inspiração fascismo precisam desconstituir a pluralidade e fazer calar o senso crítico remanescente. Não por acaso, seus primeiros ataques se dirigem à imprensa e à Educação pública.
É preciso compreender, entretanto, de onde vem a força política desse projeto reacionário. A resposta aponta para a desconfiança generalizada da população no sistema político e em suas instituições. Uma desconfiança que, assinale-se, é legítima e amparada por uma experiência real de ineficiência de muitos serviços públicos, de corrupção generalizada e de tolerância do mundo político com uma e outra.
O desafio para uma perspectiva democrática então é o de propor a reforma das instituições de tal modo que seja possível disputar o apoio da população a uma agenda transformadora, subtraindo legitimidade social do projeto fascista e, ao mesmo tempo, viabilizando mudanças que melhorem o desempenho institucional e reduzam o estado geral de alienação dos gestores e agentes públicos do seu próprio País. Essa agenda de reformas de um Estado que, particularmente no Brasil, se fez às custas dos mais pobres e contra eles deveria ser a principal preocupação de uma esquerda com um elementar senso de justiça e um tanto de lucidez. O que vemos, entretanto, é uma conduta de associação dos partidos da esquerda à velha política, com sucessivas votações conjuntas com o “Centrão” no Congresso, com o reforço de posturas corporativistas no debate da Previdência, acompanhado do já antigo mutismo quanto à necessidade de construção de um Estado orientado por princípios republicanos, avesso aos privilégios e aos assaltantes do Erário e capaz de desenvolver políticas públicas amparadas por evidências que qualifiquem a Educação, a Saúde e a Segurança Pública.
O quadro que enfrentamos será ainda mais difícil se os partidos de esquerda tentarem aparelhar as manifestações populares de resistência aos projetos de desconstrução de direitos. A presidente nacional do PT, Gleisi Hoffmann, sustentou que a consigna “Lula Livre” seja associada aos movimentos populares de resistência, como a luta em defesa da Educação (veja aqui). Pode ter sido apenas outra frase infeliz entre tantas, mas não deixa de expressar a miséria política que se instalou na cúpula da legenda. Então, no momento em que centenas de milhares de estudantes e professores em todo o País vão às ruas em manifestações fundamentais para que se possa sensibilizar a opinião pública contra um governo infame, há quem no PT, desde sua direção, pretenda “colar” nos movimentos autônomos a marca que mais identifica o partido? A mesma em torno da qual nenhuma manifestação popular de vulto foi realizada no Brasil? Haddad sinalizou que essa não pode ser a conduta e o fez como quem se encontra diante da obrigação de lembrar a importância do juízo. Em torno do tema, não obstante, nada mais se ouviu ou foi dito pelos petistas, o que autoriza a dúvida. O que mesmo pretende o PT na hora mais grave da civilização brasileira? Valeria alertar a militância que, quem for às manifestações com a consigna “Lula livre” estará contribuindo para a redução da amplitude dos movimentos e criando enorme facilidade à extrema-direita para carimbar as manifestações como “atos partidários”.
* Marcos Rolim é doutor e mestre em Sociologia e jornalista. Presidente do Instituto Cidade Segura. Autor, entre outros, de “A Formação de Jovens Violentos: estudo sobre a etiologia da violência extrema” (Appris, 2016).
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