Por Marcelo Baumann Burgos, no jornal Le Monde Diplomatique-Brasil:
Mesmo para os que já eram críticos da Operação Lava Jato, a leitura dos diálogos entre o então juiz Sérgio Moro e os procuradores federais, notadamente Deltan Dallagnol e Carlos Fernando, choca e gera repulsa. Publicados e editados pelo site Intercept, e logo apelidados de Vaza Jato, os diálogos são, no entanto, bem mais do que um deslize promíscuo de autoridades do sistema judicial brasileiro, pois o que se vê na troca de mensagens é que elas são uma extensão do processo judicial, fora dos autos, e com decisivo efeito sobre seu resultado. Tal troca de mensagens é, por isso mesmo, um documento público. Nesse sentido, sua revelação apenas torna pública conversas de natureza essencialmente pública, afinal, é enquanto autoridades estatais – e não como pessoas físicas – que juiz e promotores estão se relacionando na esfera propiciada pelo aplicativo de comunicação instantânea, o Telegram.
Esse é um ponto que precisa ser valorizado. Não apenas porque desfaz a narrativa do “hackeamento”, com que parte da grande imprensa tenta tratar o assunto, desviando-o de seu foco central. Mas, sobretudo, porque suscita um debate mais profundo a respeito da democratização do sistema judicial. De fato, a Vaza Jato coloca em xeque um dos pilares de nossa ordem democrática, pois da força do sistema judicial depende a defesa dos direitos fundamentais dos cidadãos.
Para prosseguir, importa considerar a reação de alguns juristas experientes consultados pelo Intercept. Indagados sobre como avaliavam os diálogos, dois renomados juristas reconheceram que ainda que se possa considerar imoral e mesmo contrária ao código de ética dos magistrados, esse tipo de conduta seria frequente, sendo normal a proximidade entre procuradores e juízes, e também normais situações de protagonismo de juízes que fazem do Ministério Público seu aliado. Sendo assim, não fora pelo fato da Operação Lava-Jato se apresentar como uma orquestração com claro viés político, sendo indiferente no caso o juízo que cada um faz a respeito dos governos petistas. E não fora pelo fato dela dizer respeito em especial à maior liderança popular do país, talvez a revelação dessas práticas contidas nos diálogos não passasse de chuva no molhado.
Isso sugere que o caso de que trata a Vaza Jato não pode ser encarado como um episódio isolado, de algumas poucas autoridades que traíram a delegação constitucional de suas prerrogativas ao fazerem política fingindo fazer justiça. Não se trata apenas, portanto, de uma articulação entre indivíduos movidos por ambição desmesurada, que se valeram de suas posições no interior do Estado para romper os limites de sua competência. Mais do que isso, talvez estejamos diante da ponta do iceberg de uma lógica sistêmica, o que por si explicaria o enredamento de um grande número de promotores, bem como de juízes de 2º e 3º graus e até mesmo, muito possivelmente, de alguns ministros do Supremo Tribunal Federal.
Está claro que a revelação dos diálogos coloca todo o sistema judicial contra a parede. E a saída de Moro, sem quarentena, da Vara Judicial que era o epicentro do ataque ao sistema político para o ministério de Bolsonaro, já prenunciava esse desfecho. Mas agora o que era suspeita se revela em toda a sua extensão, conformando um quadro sem volta. E o fato da trama envolver centralmente o Ministério Público, que conta com ampla prerrogativa de competências confiada pela Constituição Federal, entre elas a mais fundamental, que é a defesa da ordem jurídica e da democracia, torna tudo muito mais complexo e urgente, não sendo improvável logo vermos sendo duramente questionado esse singular Ministério Público, cujas características não encontram símile no mundo, e que tem crucial importância para a sustentação da democracia de 1988.
Em um primeiro momento, enquanto as evidências de politização do judiciário escancaradas pelo Vaza Jato são lidas com simpatia pelos que tramaram contra o mandato de Dilma Rousseff, patrocinando a chegada ao poder da atual coalização de extrema direita, seus artífices ainda seguem sendo bajulados pelos afagos e aplausos de seus apoiadores. Ato contínuo, no entanto, a fatura da desmoralização virá, e as bases da independência do sistema judicial serão questionadas nas ruas e nas casernas. Por isso, ou ingressamos em uma agenda de defesa do aperfeiçoamento dos mecanismos de democratização do sistema judicial, ou corremos o risco de vê-lo atacado e enfraquecido, e junto com ele as garantias fundamentais dos cidadãos, base de nossas liberdades.
Um sistema judicial forte pressupõe autonomia, autonomia pressupõe confiança, e esta controle social. Mesmo que por meios não desejáveis, a revelação dos diálogos não deixa de ser uma forma inusitada de controle social, na medida em que desnuda práticas que, se eram de algum modo costumeiras, agora podem ser lidas pelo que elas na verdade são, isto é, perversões ao alcance de espíritos mais oportunistas, e para isso o uso e abuso do recurso da delação premiada concorreu significativamente. Mas esse tipo de controle social a posteriori somente ganha relevância porque os outros mecanismos falharam. O que a Vaza Jato revelou deveria, na verdade, ter sido capturado antes, por procedimentos institucionais de um sistema que depende, em última instância, de transparência e rigor técnico, ambos devendo ser materializados nos autos. Será que as corregedorias do Judiciário e do Ministério Público não chegaram a ser advertidas de que havia anormalidades em curso? Mesmo sem saber a resposta, o fato é que essas instâncias de fiscalização dos serviços judiciais precisarão ser fortalecidas e ter seu alcance ampliado. Mas isso não basta. Será que o Conselho Nacional de Justiça e o Conselho Nacional do Ministério Público não foram advertidos para essa situação de abuso de autoridade? Tampouco sabemos a resposta, mas esses órgãos de controle certamente precisarão ser repensados.
Com a revelação dos diálogos chega-se a uma nova fronteira da democratização do sistema judicial no Brasil. Nesse sentido, a perplexidade causada por sua publicação também pode ser aproveitada como uma oportunidade, na medida em que abre novas condições para aprofundarmos a transição democrática de instituições que, em muitos casos, nasceram em outros momentos da história do país, quando o direito não era ainda entre nós a língua dos cidadãos, mas a língua do Estado. A questão que se coloca é se teremos maturidade para enfrentar esse desafio e para aproveitar essa oportunidade sem colocarmos em risco a preciosa memória de liberdade e democracia acumulada desde 1988.
Uma coisa é certa, não existe democracia sem um sistema judicial forte. E a sua força, ao contrário do que podem ser levados a crer aqueles que se embriagam com seu poder, não emana dela mesma, mas da soberania popular que, como vontade perpétua do povo, inscreveu na Constituição de 1988 o princípio da separação dos poderes, o que pressupõe a independência do Judiciário. Ou a força do sistema judicial seguirá emanando dessa fonte ou ela se converterá em mera ficção, e aí “um soldado e um cabo”, para evocar conhecido arroubo de um dos filhos do atual presidente, poderão bastar para dissolvê-la.
Esse é um ponto que precisa ser valorizado. Não apenas porque desfaz a narrativa do “hackeamento”, com que parte da grande imprensa tenta tratar o assunto, desviando-o de seu foco central. Mas, sobretudo, porque suscita um debate mais profundo a respeito da democratização do sistema judicial. De fato, a Vaza Jato coloca em xeque um dos pilares de nossa ordem democrática, pois da força do sistema judicial depende a defesa dos direitos fundamentais dos cidadãos.
Para prosseguir, importa considerar a reação de alguns juristas experientes consultados pelo Intercept. Indagados sobre como avaliavam os diálogos, dois renomados juristas reconheceram que ainda que se possa considerar imoral e mesmo contrária ao código de ética dos magistrados, esse tipo de conduta seria frequente, sendo normal a proximidade entre procuradores e juízes, e também normais situações de protagonismo de juízes que fazem do Ministério Público seu aliado. Sendo assim, não fora pelo fato da Operação Lava-Jato se apresentar como uma orquestração com claro viés político, sendo indiferente no caso o juízo que cada um faz a respeito dos governos petistas. E não fora pelo fato dela dizer respeito em especial à maior liderança popular do país, talvez a revelação dessas práticas contidas nos diálogos não passasse de chuva no molhado.
Isso sugere que o caso de que trata a Vaza Jato não pode ser encarado como um episódio isolado, de algumas poucas autoridades que traíram a delegação constitucional de suas prerrogativas ao fazerem política fingindo fazer justiça. Não se trata apenas, portanto, de uma articulação entre indivíduos movidos por ambição desmesurada, que se valeram de suas posições no interior do Estado para romper os limites de sua competência. Mais do que isso, talvez estejamos diante da ponta do iceberg de uma lógica sistêmica, o que por si explicaria o enredamento de um grande número de promotores, bem como de juízes de 2º e 3º graus e até mesmo, muito possivelmente, de alguns ministros do Supremo Tribunal Federal.
Está claro que a revelação dos diálogos coloca todo o sistema judicial contra a parede. E a saída de Moro, sem quarentena, da Vara Judicial que era o epicentro do ataque ao sistema político para o ministério de Bolsonaro, já prenunciava esse desfecho. Mas agora o que era suspeita se revela em toda a sua extensão, conformando um quadro sem volta. E o fato da trama envolver centralmente o Ministério Público, que conta com ampla prerrogativa de competências confiada pela Constituição Federal, entre elas a mais fundamental, que é a defesa da ordem jurídica e da democracia, torna tudo muito mais complexo e urgente, não sendo improvável logo vermos sendo duramente questionado esse singular Ministério Público, cujas características não encontram símile no mundo, e que tem crucial importância para a sustentação da democracia de 1988.
Em um primeiro momento, enquanto as evidências de politização do judiciário escancaradas pelo Vaza Jato são lidas com simpatia pelos que tramaram contra o mandato de Dilma Rousseff, patrocinando a chegada ao poder da atual coalização de extrema direita, seus artífices ainda seguem sendo bajulados pelos afagos e aplausos de seus apoiadores. Ato contínuo, no entanto, a fatura da desmoralização virá, e as bases da independência do sistema judicial serão questionadas nas ruas e nas casernas. Por isso, ou ingressamos em uma agenda de defesa do aperfeiçoamento dos mecanismos de democratização do sistema judicial, ou corremos o risco de vê-lo atacado e enfraquecido, e junto com ele as garantias fundamentais dos cidadãos, base de nossas liberdades.
Um sistema judicial forte pressupõe autonomia, autonomia pressupõe confiança, e esta controle social. Mesmo que por meios não desejáveis, a revelação dos diálogos não deixa de ser uma forma inusitada de controle social, na medida em que desnuda práticas que, se eram de algum modo costumeiras, agora podem ser lidas pelo que elas na verdade são, isto é, perversões ao alcance de espíritos mais oportunistas, e para isso o uso e abuso do recurso da delação premiada concorreu significativamente. Mas esse tipo de controle social a posteriori somente ganha relevância porque os outros mecanismos falharam. O que a Vaza Jato revelou deveria, na verdade, ter sido capturado antes, por procedimentos institucionais de um sistema que depende, em última instância, de transparência e rigor técnico, ambos devendo ser materializados nos autos. Será que as corregedorias do Judiciário e do Ministério Público não chegaram a ser advertidas de que havia anormalidades em curso? Mesmo sem saber a resposta, o fato é que essas instâncias de fiscalização dos serviços judiciais precisarão ser fortalecidas e ter seu alcance ampliado. Mas isso não basta. Será que o Conselho Nacional de Justiça e o Conselho Nacional do Ministério Público não foram advertidos para essa situação de abuso de autoridade? Tampouco sabemos a resposta, mas esses órgãos de controle certamente precisarão ser repensados.
Com a revelação dos diálogos chega-se a uma nova fronteira da democratização do sistema judicial no Brasil. Nesse sentido, a perplexidade causada por sua publicação também pode ser aproveitada como uma oportunidade, na medida em que abre novas condições para aprofundarmos a transição democrática de instituições que, em muitos casos, nasceram em outros momentos da história do país, quando o direito não era ainda entre nós a língua dos cidadãos, mas a língua do Estado. A questão que se coloca é se teremos maturidade para enfrentar esse desafio e para aproveitar essa oportunidade sem colocarmos em risco a preciosa memória de liberdade e democracia acumulada desde 1988.
Uma coisa é certa, não existe democracia sem um sistema judicial forte. E a sua força, ao contrário do que podem ser levados a crer aqueles que se embriagam com seu poder, não emana dela mesma, mas da soberania popular que, como vontade perpétua do povo, inscreveu na Constituição de 1988 o princípio da separação dos poderes, o que pressupõe a independência do Judiciário. Ou a força do sistema judicial seguirá emanando dessa fonte ou ela se converterá em mera ficção, e aí “um soldado e um cabo”, para evocar conhecido arroubo de um dos filhos do atual presidente, poderão bastar para dissolvê-la.
0 comentários:
Postar um comentário