Por Liszt Vieira, no site Carta Maior:
A aceitação acrítica das fake news é um problema sério da contemporaneidade, que enfrenta cada vez mais o desafio do que se passou a chamar pós-verdade. É cada vez maior o número de pessoas que não estão interessadas em saber se a informação recebida corresponde ou não à realidade. Essas pessoas aferram-se a opiniões baseadas em suas crenças.
A crença tem uma conotação religiosa, espiritual, que se diferencia de conclusões ou previsões baseadas em fatos da realidade. Posso afirmar que, se eu largar um objeto, ele cairá no chão. O mesmo ocorrerá se outra pessoa fizer a mesma experiência. Não preciso conhecer a física newtoniana que explica o fenômeno, muito menos sua inaplicabilidade no mundo infinitesimal onde muda a coisa observada se mudar o observador, segundo demonstrou a física quântica.
Assim, não há crença se eu afirmo que a 100 graus a água ferve. Ou que, girando a maçaneta, a porta abre, se não estiver trancada. Trata-se de uma certeza baseada em dados da realidade. Tampouco haverá crença no caso do dinheiro aceito por todos na sociedade. Estamos aqui diante de um caso de confiança – trust – em que todos aceitam ou têm de aceitar o dinheiro como meio de pagamento por força legal, baseada em costumes tradicionais. Na linguagem de Marx, dinheiro é o “equivalente universal”.
É comum a afirmação de que a crença é uma atitude pré-moderna, pré-científica, embora, na antiguidade grega, Platão já opusesse a opinião – doxa – ao verdadeiro conhecimento – episteme. Na era moderna, tornou-se célebre o conceito do filósofo e sociólogo alemão Max Weber sobre o “desencantamento do mundo”. O homem moderno passou a tomar atitudes em função da razão, em vez de crenças, tradições e magia. O mundo deixa de ser explicado por forças sobrenaturais que podem ser manipuladas magicamente para ser controlado apenas através da ciência e da tecnologia.
É a civilização baseada no iluminismo, na razão, no debate, na argumentação, que está sendo agredida e ameaçada pela aceitação generalizada das fake news. A opinião e a crença são irracionais porque dispensam a verificação baseada em fatos da realidade. Notícia falsa não é uma invenção da modernidade. Mas, com os modernos meios de comunicação de massa, todas as notícias se expandiram e se tornaram instantâneas, as verdadeiras e as falsas.
Toda sociedade tem seus mitos de fundação. Esses mitos têm enorme importância simbólica e garantem a coesão social e a integração cultural de uma nação, cidade, aldeia, tribo ou bando. Mas podem também ser considerados fake news de natureza ideológica, religiosa e cultural. Somente com a revolução científica do século XVI em diante é que as “verdades” passaram a ser construídas a partir de fatos.
Agora, porém, estamos vendo um retrocesso importante: muitos abandonam o fato e se refugiam na opinião. O que é chamado atualmente de “pós-verdade” guarda semelhança com o longo período histórico da “pré-verdade” em que os fatos eram desprezados como fonte de conceitos ou opinião: prevaleciam as lendas, os mitos e os dogmas.
Para compreender isso, surgem várias explicações. Há quem veja a influência da mídia “fazendo a cabeça” das pessoas. Cabe aqui um paralelo com a máquina de propaganda nazista na Alemanha dos anos 30 do século passado. O regime nazista propagou aos quatro ventos que os judeus eram culpados de todos os problemas do país. Os judeus tornaram-se o principal bode expiatório, ao lado de socialistas, comunistas e ciganos, todos dizimados no massacre genocida de 6 milhões de pessoas.
Ressalvadas as grandes diferenças históricas, o método utilizado pela mídia brasileira a partir dos anos 2.000 foi também o de apontar um bode expiatório responsável por tudo. Durante anos, a mídia martelou que o PT era o culpado de todos os males que afligem o país. A elite brasileira, por meio da mídia, massacrou a imagem do PT junto à população, tentando apagar que o Brasil, sob o governo Lula, tornou-se a sétima economia do mundo, o desemprego caiu para 6%, a desigualdade social diminuiu, todos os índices de qualidade de vida melhoraram – educação, saúde, cultura, meio ambiente etc. - e o Brasil tornou-se respeitado internacionalmente.
Outra linha de análise prioriza o interesse de classe. O ódio de segmentos da classe média a Lula se deveria ao fato de tais segmentos terem visto as classes de alta renda se enriquecerem, os pobres melhorarem de vida, enquanto a classe média – que quer ser rica e rejeita os pobres – ficou parada vendo os ricos se afastarem e os pobres se aproximarem. São exemplos característicos reclamações tais como “a empregada doméstica ficou mais cara”, “Congonhas está cheio de pobre, parece uma Rodoviária” etc.
Todo o discurso que associou o PT à corrupção foi usado como manobra instrumental da luta pelo poder. Toda a corrupção anterior e posterior foi ignorada. O ex-presidente Temer, legítimo representante da tradicional corrupção institucional, governou com tranquilidade. A classe média e os ricos não bateram panela nem foram às ruas. O perigo da redistribuição de renda estava afastado com o golpe do impeachment da então presidenta Dilma.
Assim, a informação falsa é aceita porque corresponde a opiniões e sentimentos previamente existentes. Ela vem confirmar o que a pessoa acha, confirma uma opinião que não se preocupa em saber se está ou não ancorada na realidade.
Em suma, o sucesso das fake news se deve ao fato de elas caírem em solo fértil, previamente fecundado para acreditar em qualquer informação que fortaleça uma opinião irracional previamente existente. Em contrapartida, os argumentos racionais nem sempre ou raramente são eficazes. Os bolsominions em geral são tangidos por palavras de ordem e declarações autoritárias, misóginas, homofóbicas, racistas, de um presidente que, no plano pessoal, é um cafajeste repugnante e, no plano político, um candidato a ditador que está corroendo a cada dia as regras e instituições democráticas.
Para isso, conta com o aplauso de sua base de apoio que aceita a tirania, quer acabar com a separação tripartite de poder, fechando o Congresso e o Supremo Tribunal. A separação de poder é vista como complexa e coloca contradições e conflitos que, percebidos como anarquia, obrigariam o indivíduo a refletir. Reflexão e pensamento crítico são qualidades estranhas ao hipnotizado eleitor bolsonarista.
Preocupado com a tirania, o pensador francês Alexis de Tocqueville disse certa vez que a anarquia não é o maior dos males que uma democracia deve temer, mas o menor. Ainda mais quando a pluralidade e a diferença são percebidas como anarquia e, portanto, rejeitadas, o que provoca retrocesso a uma fase absolutista pré-moderna. Afinal, a clássica separação dos poderes em Executivo, Legislativo e Judiciário, tal como formulada por Montesquieu, é constitutiva da modernidade política inspirada na razão iluminista.
O projeto antidemocrático que avança no Brasil tem como meta alcançar uma tirania, um regime ditatorial impregnado de uma moral cristã obscurantista - de predominância neopentecostal - e com apoio do mercado, dos militares, das milícias paramilitares bem como das PMs inimigas da defesa civilizada dos direitos humanos. As fake news disparadas pelos centros de poder dirigem-se não à razão, mas à emoção dos destinatários. Assim foi utilizada pela empresa Cambridge Analytica na campanha do Brexit na Grã Bretanha, na campanha do Trump nos EUA e na campanha de Bolsonaro, todas vitoriosas com base no uso sistemático de fake news.
A civilização construída a partir dos princípios iluministas da razão e da lógica vive um dilema e um impasse. Primeiro, porque não foi capaz de promover a emancipação dos povos, em sua maioria ainda submetidos a regimes opressivos. E também porque enfrenta grande dificuldade de dar combate à mentira irracional que elege candidatos e se constitui depois em instrumento de governo.
No Brasil, os bárbaros chegaram ao poder e começaram a suprimir os espaços de liberdade da democracia. Cabe a todos os que se reconhecem nos valores da civilização se unirem para derrotar a barbárie que, a partir do Governo, está destruindo a educação, saúde, cultura, pesquisa científica, meio ambiente, direitos humanos, política externa independente etc., além de desmontar os serviços públicos e cortar recursos transferindo renda dos pobres para os ricos.
Entre as inúmeras batalhas que o campo democrático tem pela frente, uma das mais importantes é a tarefa permanente de denunciar as fake news com o objetivo de torpedear e enfraquecer a base de apoio do fascismo no Brasil.
A aceitação acrítica das fake news é um problema sério da contemporaneidade, que enfrenta cada vez mais o desafio do que se passou a chamar pós-verdade. É cada vez maior o número de pessoas que não estão interessadas em saber se a informação recebida corresponde ou não à realidade. Essas pessoas aferram-se a opiniões baseadas em suas crenças.
A crença tem uma conotação religiosa, espiritual, que se diferencia de conclusões ou previsões baseadas em fatos da realidade. Posso afirmar que, se eu largar um objeto, ele cairá no chão. O mesmo ocorrerá se outra pessoa fizer a mesma experiência. Não preciso conhecer a física newtoniana que explica o fenômeno, muito menos sua inaplicabilidade no mundo infinitesimal onde muda a coisa observada se mudar o observador, segundo demonstrou a física quântica.
Assim, não há crença se eu afirmo que a 100 graus a água ferve. Ou que, girando a maçaneta, a porta abre, se não estiver trancada. Trata-se de uma certeza baseada em dados da realidade. Tampouco haverá crença no caso do dinheiro aceito por todos na sociedade. Estamos aqui diante de um caso de confiança – trust – em que todos aceitam ou têm de aceitar o dinheiro como meio de pagamento por força legal, baseada em costumes tradicionais. Na linguagem de Marx, dinheiro é o “equivalente universal”.
É comum a afirmação de que a crença é uma atitude pré-moderna, pré-científica, embora, na antiguidade grega, Platão já opusesse a opinião – doxa – ao verdadeiro conhecimento – episteme. Na era moderna, tornou-se célebre o conceito do filósofo e sociólogo alemão Max Weber sobre o “desencantamento do mundo”. O homem moderno passou a tomar atitudes em função da razão, em vez de crenças, tradições e magia. O mundo deixa de ser explicado por forças sobrenaturais que podem ser manipuladas magicamente para ser controlado apenas através da ciência e da tecnologia.
É a civilização baseada no iluminismo, na razão, no debate, na argumentação, que está sendo agredida e ameaçada pela aceitação generalizada das fake news. A opinião e a crença são irracionais porque dispensam a verificação baseada em fatos da realidade. Notícia falsa não é uma invenção da modernidade. Mas, com os modernos meios de comunicação de massa, todas as notícias se expandiram e se tornaram instantâneas, as verdadeiras e as falsas.
Toda sociedade tem seus mitos de fundação. Esses mitos têm enorme importância simbólica e garantem a coesão social e a integração cultural de uma nação, cidade, aldeia, tribo ou bando. Mas podem também ser considerados fake news de natureza ideológica, religiosa e cultural. Somente com a revolução científica do século XVI em diante é que as “verdades” passaram a ser construídas a partir de fatos.
Agora, porém, estamos vendo um retrocesso importante: muitos abandonam o fato e se refugiam na opinião. O que é chamado atualmente de “pós-verdade” guarda semelhança com o longo período histórico da “pré-verdade” em que os fatos eram desprezados como fonte de conceitos ou opinião: prevaleciam as lendas, os mitos e os dogmas.
Para compreender isso, surgem várias explicações. Há quem veja a influência da mídia “fazendo a cabeça” das pessoas. Cabe aqui um paralelo com a máquina de propaganda nazista na Alemanha dos anos 30 do século passado. O regime nazista propagou aos quatro ventos que os judeus eram culpados de todos os problemas do país. Os judeus tornaram-se o principal bode expiatório, ao lado de socialistas, comunistas e ciganos, todos dizimados no massacre genocida de 6 milhões de pessoas.
Ressalvadas as grandes diferenças históricas, o método utilizado pela mídia brasileira a partir dos anos 2.000 foi também o de apontar um bode expiatório responsável por tudo. Durante anos, a mídia martelou que o PT era o culpado de todos os males que afligem o país. A elite brasileira, por meio da mídia, massacrou a imagem do PT junto à população, tentando apagar que o Brasil, sob o governo Lula, tornou-se a sétima economia do mundo, o desemprego caiu para 6%, a desigualdade social diminuiu, todos os índices de qualidade de vida melhoraram – educação, saúde, cultura, meio ambiente etc. - e o Brasil tornou-se respeitado internacionalmente.
Outra linha de análise prioriza o interesse de classe. O ódio de segmentos da classe média a Lula se deveria ao fato de tais segmentos terem visto as classes de alta renda se enriquecerem, os pobres melhorarem de vida, enquanto a classe média – que quer ser rica e rejeita os pobres – ficou parada vendo os ricos se afastarem e os pobres se aproximarem. São exemplos característicos reclamações tais como “a empregada doméstica ficou mais cara”, “Congonhas está cheio de pobre, parece uma Rodoviária” etc.
Todo o discurso que associou o PT à corrupção foi usado como manobra instrumental da luta pelo poder. Toda a corrupção anterior e posterior foi ignorada. O ex-presidente Temer, legítimo representante da tradicional corrupção institucional, governou com tranquilidade. A classe média e os ricos não bateram panela nem foram às ruas. O perigo da redistribuição de renda estava afastado com o golpe do impeachment da então presidenta Dilma.
Assim, a informação falsa é aceita porque corresponde a opiniões e sentimentos previamente existentes. Ela vem confirmar o que a pessoa acha, confirma uma opinião que não se preocupa em saber se está ou não ancorada na realidade.
Em suma, o sucesso das fake news se deve ao fato de elas caírem em solo fértil, previamente fecundado para acreditar em qualquer informação que fortaleça uma opinião irracional previamente existente. Em contrapartida, os argumentos racionais nem sempre ou raramente são eficazes. Os bolsominions em geral são tangidos por palavras de ordem e declarações autoritárias, misóginas, homofóbicas, racistas, de um presidente que, no plano pessoal, é um cafajeste repugnante e, no plano político, um candidato a ditador que está corroendo a cada dia as regras e instituições democráticas.
Para isso, conta com o aplauso de sua base de apoio que aceita a tirania, quer acabar com a separação tripartite de poder, fechando o Congresso e o Supremo Tribunal. A separação de poder é vista como complexa e coloca contradições e conflitos que, percebidos como anarquia, obrigariam o indivíduo a refletir. Reflexão e pensamento crítico são qualidades estranhas ao hipnotizado eleitor bolsonarista.
Preocupado com a tirania, o pensador francês Alexis de Tocqueville disse certa vez que a anarquia não é o maior dos males que uma democracia deve temer, mas o menor. Ainda mais quando a pluralidade e a diferença são percebidas como anarquia e, portanto, rejeitadas, o que provoca retrocesso a uma fase absolutista pré-moderna. Afinal, a clássica separação dos poderes em Executivo, Legislativo e Judiciário, tal como formulada por Montesquieu, é constitutiva da modernidade política inspirada na razão iluminista.
O projeto antidemocrático que avança no Brasil tem como meta alcançar uma tirania, um regime ditatorial impregnado de uma moral cristã obscurantista - de predominância neopentecostal - e com apoio do mercado, dos militares, das milícias paramilitares bem como das PMs inimigas da defesa civilizada dos direitos humanos. As fake news disparadas pelos centros de poder dirigem-se não à razão, mas à emoção dos destinatários. Assim foi utilizada pela empresa Cambridge Analytica na campanha do Brexit na Grã Bretanha, na campanha do Trump nos EUA e na campanha de Bolsonaro, todas vitoriosas com base no uso sistemático de fake news.
A civilização construída a partir dos princípios iluministas da razão e da lógica vive um dilema e um impasse. Primeiro, porque não foi capaz de promover a emancipação dos povos, em sua maioria ainda submetidos a regimes opressivos. E também porque enfrenta grande dificuldade de dar combate à mentira irracional que elege candidatos e se constitui depois em instrumento de governo.
No Brasil, os bárbaros chegaram ao poder e começaram a suprimir os espaços de liberdade da democracia. Cabe a todos os que se reconhecem nos valores da civilização se unirem para derrotar a barbárie que, a partir do Governo, está destruindo a educação, saúde, cultura, pesquisa científica, meio ambiente, direitos humanos, política externa independente etc., além de desmontar os serviços públicos e cortar recursos transferindo renda dos pobres para os ricos.
Entre as inúmeras batalhas que o campo democrático tem pela frente, uma das mais importantes é a tarefa permanente de denunciar as fake news com o objetivo de torpedear e enfraquecer a base de apoio do fascismo no Brasil.
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