Por Esther Solano, na revista CartaCapital:
Cena-1
Há dez anos moro no Brasil. Uma das coisas que mais me impressionaram quando aqui cheguei foi o elevador de serviço. Nunca havia visto um. São os objetos cotidianos os que carregam mais crueldade, porque a crueldade deles é aquela que se repete todo dia, a todo instante, sem descanso, um ciclo infinito e ao mesmo tempo tão costumeiro que ninguém lhe presta atenção.
Na época, quando vi o primeiro, não entendia sua utilidade, pensei que era um elevador exclusivo para quando o prédio ou algum apartamento individual passasse por reforma. Pensei ser estupidez e um desperdício sem sentido ter um elevador só para isso, até que certo dia entendi o seu real significado. Vários amigos haviam me falado que por esse elevador subia e descia “o serviço”, mas acho que eu não tinha realmente captado a magnitude do significado que expressava essa palavra.
Ainda não conhecia bem o Brasil e tampouco suas desumanidades cotidianas. Como muitas vezes ao longo da biografia a gente vai aprendendo por socos no estômago. Eu, no Brasil, aprendi muito por socos no estômago. Lembro perfeitamente do golpe sofrido pelo elevador de serviço dez anos atrás. Lembro-me do momento, do rosto dela, uma senhora de uns 60 anos, que trabalhava como doméstica, e que nunca tinha ido à Disney.
Eu entrei no prédio com ela, abri o elevador social (o de serviço estava no sétimo ou oitavo andar) e ofereci a ela entrar junto. Um gesto automático que devo ter repetido milhões de vezes na minha vida. Ela recusou. “Não, não quero incomodar.” Nesse instante, eu me perguntei interiormente da forma mais ingênua possível: “Como uma pessoa incomodaria outra por subir junto no elevador?” Respondi que não ia me sentir incomodada e ai ela soltou o soco no estômago: “É que tem muito morador que não gosta que empregada vá junto no elevador, por isso sempre pego o de serviço”. Insisti e, finalmente, ela concordou em subir comigo, mas meu cérebro estava em curto-circuito, como quando você entende sem entender.
Cheguei em casa, sentei no sofá e estive um longo tempo pensando no que acabava de escutar. Queria dizer que havia gente que não gostava de dividir um espaço físico por alguns segundos com “o serviço”. Queria dizer que havia gente que pensava que o serviço, ou seja, o pobre, deveria respirar outro oxigênio, transitar por outros espaços, viver outros mundos. Até então, nunca havia refletido com cuidado sobre o que a expressão “ódio a pobre” significava. Aquela senhora me fez entender com toda a dureza da simplicidade de uma cena do cotidiano. Era meu batismo de fogo no Brasil.
Cena-2
Meses depois, aconteceu a cena 2. Ainda estava entendendo o Brasil. Peguei um avião de São Paulo ao Rio de Janeiro. Outro desses momentos pequenos, triviais, nada grandiloquentes nem pomposos para mim, mas que se transformaria num dos maiores socos no estômago que já levei no Brasil. Chego à porta de embarque, embarco, sento na minha cadeira. Ao meu lado estava um casal VuittonGucci. Bolsa de Vuitton, ela; camisa Gucci, ele. Nem sei como reparei nesses detalhes, talvez a cena posterior me fez reparar neles com total nitidez.
Já estava sentada quando uma família, o pai, a mãe e não lembro se dois ou três filhos, passaram pelo corredor procurando seus assentos. Eles não sabiam ler o cartão de embarque, perguntaram à aeromoça e explicaram que era a primeira vez que subiam num avião. Os meninos estavam tão felizes que dava vontade de chorar compartilhando sua felicidade. Aquela não era uma família Vuitton, não era uma família branca. Era uma família de elevador de serviço.
Quando passaram pelo nosso lado, a senhora Vuitton disse para o marido Gucci: “Ultimamente tem um monte de pobre no avião, sinto o cheiro de longe, nem viajar a gente pode mais tranquilo”. Fiquei tão perplexa que passei os 45 minutos de voo para o Rio sem conseguir responder a essa brutalidade que acabava de ouvir. Hoje eu teria respondido na hora, mas naquele momento meu cérebro entrou em curto-circuito novamente. Estava no elevador de serviço outra vez. Era meu segundo batismo de fogo.
Só então entendi de verdade, e nunca mais isso saiu da minha mente nem das minhas vísceras, que é onde se entendem as coisas importantes. Era ódio, era asco. Um Brasil que odeia e que sente asco dos pobres. O Brasil do elevador de serviço, do avião, da Disney. O Brasil de Guedes e da senhora Vuitton que não suportam o pobre e que sempre farão de tudo para eliminá-lo.
Há dez anos moro no Brasil. Uma das coisas que mais me impressionaram quando aqui cheguei foi o elevador de serviço. Nunca havia visto um. São os objetos cotidianos os que carregam mais crueldade, porque a crueldade deles é aquela que se repete todo dia, a todo instante, sem descanso, um ciclo infinito e ao mesmo tempo tão costumeiro que ninguém lhe presta atenção.
Na época, quando vi o primeiro, não entendia sua utilidade, pensei que era um elevador exclusivo para quando o prédio ou algum apartamento individual passasse por reforma. Pensei ser estupidez e um desperdício sem sentido ter um elevador só para isso, até que certo dia entendi o seu real significado. Vários amigos haviam me falado que por esse elevador subia e descia “o serviço”, mas acho que eu não tinha realmente captado a magnitude do significado que expressava essa palavra.
Ainda não conhecia bem o Brasil e tampouco suas desumanidades cotidianas. Como muitas vezes ao longo da biografia a gente vai aprendendo por socos no estômago. Eu, no Brasil, aprendi muito por socos no estômago. Lembro perfeitamente do golpe sofrido pelo elevador de serviço dez anos atrás. Lembro-me do momento, do rosto dela, uma senhora de uns 60 anos, que trabalhava como doméstica, e que nunca tinha ido à Disney.
Eu entrei no prédio com ela, abri o elevador social (o de serviço estava no sétimo ou oitavo andar) e ofereci a ela entrar junto. Um gesto automático que devo ter repetido milhões de vezes na minha vida. Ela recusou. “Não, não quero incomodar.” Nesse instante, eu me perguntei interiormente da forma mais ingênua possível: “Como uma pessoa incomodaria outra por subir junto no elevador?” Respondi que não ia me sentir incomodada e ai ela soltou o soco no estômago: “É que tem muito morador que não gosta que empregada vá junto no elevador, por isso sempre pego o de serviço”. Insisti e, finalmente, ela concordou em subir comigo, mas meu cérebro estava em curto-circuito, como quando você entende sem entender.
Cheguei em casa, sentei no sofá e estive um longo tempo pensando no que acabava de escutar. Queria dizer que havia gente que não gostava de dividir um espaço físico por alguns segundos com “o serviço”. Queria dizer que havia gente que pensava que o serviço, ou seja, o pobre, deveria respirar outro oxigênio, transitar por outros espaços, viver outros mundos. Até então, nunca havia refletido com cuidado sobre o que a expressão “ódio a pobre” significava. Aquela senhora me fez entender com toda a dureza da simplicidade de uma cena do cotidiano. Era meu batismo de fogo no Brasil.
Cena-2
Meses depois, aconteceu a cena 2. Ainda estava entendendo o Brasil. Peguei um avião de São Paulo ao Rio de Janeiro. Outro desses momentos pequenos, triviais, nada grandiloquentes nem pomposos para mim, mas que se transformaria num dos maiores socos no estômago que já levei no Brasil. Chego à porta de embarque, embarco, sento na minha cadeira. Ao meu lado estava um casal VuittonGucci. Bolsa de Vuitton, ela; camisa Gucci, ele. Nem sei como reparei nesses detalhes, talvez a cena posterior me fez reparar neles com total nitidez.
Já estava sentada quando uma família, o pai, a mãe e não lembro se dois ou três filhos, passaram pelo corredor procurando seus assentos. Eles não sabiam ler o cartão de embarque, perguntaram à aeromoça e explicaram que era a primeira vez que subiam num avião. Os meninos estavam tão felizes que dava vontade de chorar compartilhando sua felicidade. Aquela não era uma família Vuitton, não era uma família branca. Era uma família de elevador de serviço.
Quando passaram pelo nosso lado, a senhora Vuitton disse para o marido Gucci: “Ultimamente tem um monte de pobre no avião, sinto o cheiro de longe, nem viajar a gente pode mais tranquilo”. Fiquei tão perplexa que passei os 45 minutos de voo para o Rio sem conseguir responder a essa brutalidade que acabava de ouvir. Hoje eu teria respondido na hora, mas naquele momento meu cérebro entrou em curto-circuito novamente. Estava no elevador de serviço outra vez. Era meu segundo batismo de fogo.
Só então entendi de verdade, e nunca mais isso saiu da minha mente nem das minhas vísceras, que é onde se entendem as coisas importantes. Era ódio, era asco. Um Brasil que odeia e que sente asco dos pobres. O Brasil do elevador de serviço, do avião, da Disney. O Brasil de Guedes e da senhora Vuitton que não suportam o pobre e que sempre farão de tudo para eliminá-lo.
1 comentários:
Entre 1988 e 2011, como um trabalhador contratado por uma empresa, então de porte respeitável, e com sede em São Paulo, fiz inúmeras viagens de avião.
Testemunhei em primeira mão a grande mudança do setor, com o afluxo de pessoas menos favorecidas que puderam usar aquele meio de transpornte, antes exclusivo de pessoas ricas ou de pessoas a trabalho, funcionárias de empresas ricas.
Um dia, num voo de São Paulo para Belo Horizonte, em meados da décadas de 2000 a 2010, um senhor, usando terno de grife, sentado ao meu lado, se mostrou revoltado com a variedade de passageiras e passageiros. "Bom mesmo eram os tempos da Varig, quando as passagens eram caras e esta gentinha não podia viajar de avião. Agora, isto aqui virou um inferno, e Congonhas (o aeroporto) é a porta deste inferno", declarou ele para mim. Eu engoli em seco e concluí que não devia responder. Na realidade, não troquei palavra alguma com este senhor após aquela declaração. Mas era alguém com cargo público importante.
Hoje tenho dúvidas sobre se deveria ter contestado aquela pessoa. Provavelmente deveria.
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