Por Marcelo Zero
É certo que a pandemia do Covid-19 passará, como toda pandemia. Não se sabe ao certo, contudo, qual sua intensidade e extensão e que consequências trará para o mundo, especialmente sobre sua economia.
A última grande pandemia mundial, a da mal chamada gripe espanhola, ocorrida há pouco mais de um século, matou, de acordo com as estimativas mais conservadoras, cerca de 17,3 milhões de pessoas em todo o planeta. Na época, a população mundial era de 1,8 bilhão. Portanto, essa pandemia teria ceifado ao redor de 1% dos habitantes da Terra.
Como a população mundial é hoje de cerca de 7,7 bilhões de pessoas, a pandemia do Covid-19 teria de matar ao redor de 77 milhões de seres humanos para chegar ao nível de letalidade da gripe espanhola.
Pelo andar da carruagem, e apesar do terraplanismo sanitário de gente como Trump e Bolsonaro, parece pouco provável que isso aconteça, até mesmo porque hoje a ciência dispõe de armas muito mais poderosas para enfrentar esse tipo de pandemia. Além disso, atualmente muitos países dispõem de sistemas públicos de saúde, coisa que não existia na época da gripe espanhola. Na realidade, esses sistemas universais e públicos de saúde começaram a surgir, de forma embrionária, justamente após a pandemia da gripe espanhola.
Na China, país que já conseguiu controlar a sua epidemia, o Covid-19 matou, até agora, 3.338 pessoas. Com uma população de 1,386 bilhão, isso representa a morte de uma fração ínfima dos habitantes daquele país. Mesmo que ocorra um segundo surto, parece pouco provável que número total de mortes ultrapasse 0,001% da população da China (13.860 habitantes), até mesmo porque novas ondas de coronavírus encontrarão autoridades e população mais prevenidas e com um conhecimento bem maior do comportamento do vírus.
Na Itália, país que não soube controlar a epidemia, a situação é muito pior. Já tinham morrido, até o início abril, 15.362 pessoas, o que representa 0,026% da população total daquele país (60.480.000). No entanto, as extensas medidas de isolamento horizontal já apresentam resultados: a curva de ascensão de novos casos caiu para 3,5% e o número de mortos diminuiu em cerca de 20%. Supondo que o número de mortos vá duplicar até o controle efetivo da epidemia, isso significará a morte de 0,05% da população da Itália. Assim, mesmo nesse cenário mais sombrio, o impacto do Covid-19 na taxa de mortalidade seria cerca de 20 vezes menor do que o impacto médio da gripe espanhola, que ceifou, como afirmamos, ao redor de 1% da população mundial. Teriam de morrer cerca de 600 mil italianos para que chegássemos ao nível de letalidade da gripe espanhola.
Claro está que esse quadro poderá agravar-se, caso a epidemia atinja com força os países em desenvolvimento, especialmente os da África Subsaariana, que não têm serviços de saúde de mínima qualidade e cobertura, e convivem com condições socioeconômicas bem mais precárias.
A humanidade, porém, sobreviverá. Não é gripezinha, como falou o helminto descerebrado, mas não é o apocalipse. Não é sequer (ainda) a gripe espanhola.
E a o mundo pós-pandemia, como será?
O desafio maior será sem dúvida, sobreviver bem no complexo e difícil cenário pós-pandemia.
No calor dos acontecimentos, surgem especulações das mais variadas. Depressão prolongada, colapso do neoliberalismo, quebra definitiva das cadeias produtivas globais, fim da globalização, crise final do capitalismo, etc.
No entanto, como ensinava Hegel, a coruja, pássaro que simboliza a sabedoria, só levanta voo ao anoitecer, passado o calor dos acontecimentos do dia.
Em 2008, logo no início da crise dos títulos podres, o então primeiro-ministro britânico, Gordon Brown, afirmou, na reunião do G20 em Londres, que o Consenso de Washington (a essência do neoliberalismo) estava morto. Na época, parecia uma afirmação bastante óbvia. Os Estados estavam intervindo ativamente na economia e no sistema financeiro e se falava o tempo todo na necessidade de instituir regras rígidas para se controlar as finanças globais.
Passado, entretanto, o período crítico da crise, tudo ficou como dantes no quartel de Abrantes. O dinheiro das políticas anticíclicas ficou retido no sistema financeiro, que começou a criar novas bolhas especulativas. As velhas políticas austericidas voltaram a predominar, especialmente na Europa. A Grécia e outros países foram imolados no altar da responsabilidade fiscal instituído pela Troika. O Estado do Bem Estar continuou a ser sucateado, inclusive na área da saúde, e a desigualdade e a precariedade laboral continuaram a aumentar.
Voltando a Hegel, ele costumava dizer que a História ensina que os homens não aprendem nada com ela. Fato.
Não há, portanto, certeza alguma de que, desta vez, a crise vá provocar mudanças significativas de longo prazo no sistema capitalista global, embora seja evidente que, momentaneamente, todo o mundo virou keynesiano desde criancinha, especialmente os empresários neoliberais que estão precisando de ajuda.
Há, contudo, alguns cenários de alta probabilidade.
I. Haverá profunda recessão global
No início da crise, especulou-se que a recessão poderia ficar circunscrita geograficamente à Ásia e temporalmente ao primeiro semestre deste ano.
Esse cenário panglossiano esfumou-se nos ares virulentos da pandemia.
Todas as economias estão sendo gravemente afetadas.
Prevê-se que os EUA de Trump, que menosprezou os efeitos sanitários e econômicos da “gripezinha”, terão uma redução do PIB de até 34%, neste segundo trimestre.
Na China, a contração da produção industrial foi de 13%, no primeiro bimestre do ano.
Não há como evitar a recessão, uma vez que as atividades estão paralisadas ou parcialmente paralisadas.
Não se sabe, ao certo, qual será a extensão dessa recessão. Ao contrário da crise de 2008, que começou no sistema financeiro e depois se expandiu para a economia real, esta crise presente está começando na economia real e deverá se expandir para o sistema financeiro, o que deverá torná-la sistêmica.
Também não se sabe qual será a duração temporal dessa nova crise. Mesmo que as coisas comecem a voltar ao normal a partir do segundo semestre, supondo o controle do Covid-19 em níveis aceitáveis, os efeitos recessivos deverão se propagar também em 2021, pelo menos. Mas poderá ser por um prazo bem maior.
No caso da gripe espanhola, houve recessão aguda durante a epidemia, mas a recuperação também foi rápida. Com efeito, os anos 1920 foram, com exceções pontuais, como a da Alemanha, um período de crescimento acelerado. A crise verdadeira só veio em 1929, por razões que não tinham, obviamente, nenhuma relação com a pandemia que tinha ocorrido havia 10 anos. A economia mundial e as circunstâncias eram, porém, bastante diferentes das de hoje.
O que se sabe, contudo, é que os Estados terão de promover robustas políticas anticíclicas para que não haja um apocalipse liberal.
II. Os países terão de adotar medidas drásticas durante e, sobretudo, após a pandemia.
Todos os países estão sendo forçados a adotar políticas anticíclicas de peso.
A União Europeia abandonou seus carcomidos manuais de controle fiscal e liberou seus membros de cumprirem as suas ridículas metas macroeconômicas.
A Espanha, por exemplo, vai comprometer 20% de seu PIB com políticas e medidas que permitam manter a atividade econômica e o nível de emprego em níveis toleráveis.
Os EUA também soltaram um pacote histórico de US$ 2 trilhões, para tentar conter os efeitos mais perversos da crise.
Porém, essas medidas emergenciais são apenas a ponta do iceberg do que terá de ser feito. Passada a pandemia, quer pela obtenção natural da “imunidade de rebanho”, quer por uma vacina, as economias, em maior ou menor grau, estarão desorganizadas e exangues, com alto nível de endividamento e com taxas de desemprego muito elevadas, tal como as economias de países que passaram por uma grande guerra em seus territórios.
Assim, a economia mundial, com suas cadeias produtivas fraturadas, terá de sofrer rearranjos e ser reconstruída.
Tal como aconteceu ao final da Segunda Guerra Mundial, quando os EUA reconstruíram a devastada Europa com o Plano Marshall, necessitaremos de novos planos desse tipo, no cenário pós-pandemia.
Nesse sentido, a presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, já afirmou que o próximo orçamento plurianual da UE deverá assumir a forma de um novo "Plano Marshall", para fomentar a recuperação da Europa frente à crise do coronavírus. Serão anos de estímulos contracíclicos.
Contudo, muitos países terão dificuldades para enfrentar esse desafio de reconstrução. Além disso, será necessário que alguém lidere, em nível mundial, uma política concatenada de reconstrução e de estímulos.
Parece pouco provável que os EUA, concentrados no America First, cumpram o mesmo papel que tiveram no cenário pós Segunda Guerra Mundial.
Com isso, passamos ao terceiro ponto.
III. A crise terá efeitos geopolíticos profundos
A China entrou primeiro na crise e deverá de ela sair primeiro. Esse país demonstrou muita resiliência e competência e conseguiu conter a sua epidemia com um custo humano e econômico comparativamente baixo e em tempo bastante curto. Agora, prepara-se para voltar gradativamente à normalidade. Da mesma forma, alguns outros países asiáticos, como Coreia do Sul e Vietnã, por exemplo, vêm enfrentando bem as suas crises sanitárias.
Em contraste, os Estados Unidos e outros países ocidentais, como Itália e Espanha, não enfrentam bem as suas crises.
Os EUA se converteram no principal foco do coronavírus no mundo e arcarão com um custo humano e econômico muito mais alto que o assumido pela China. Esse último país teve, como assinalamos pouco mais de 3 mil mortos numa população de 1,386 bilhão. Os EUA, de acordo com suas próprias estimativas, terão entre 100 mil a 240 mil mortos, com uma população muito menor (330 milhões). O mesmo ocorre na Europa, que vai arcar também com custos humanos e econômicos bem superiores ao do gigante asiático.
Assim, a China, país que demonstrou muita resiliência e competência no enfrentamento da epidemia, sairá dela consideravelmente fortalecida, ao passo que os EUA e a Europa dela sairão mais enfraquecidos, economicamente e politicamente.
Desse modo, a China deverá ampliar seu protagonismo internacional, posicionando-se em melhores condições para enfrentar a guerra econômica e comercial imposta pelos EUA de Trump.
A China deverá se converter no único país capaz de financiar e promover Planos Marshall em países em desenvolvimento, coisa que os EUA do America First e instituições multilaterais, como FMI e Banco Mundial, não terão condições ou interesse em fazer.
O gigante asiático deverá aumentar fortemente sua presença no mundo, ao passo que os EUA, mais enfraquecido e subsumido pelo protecionismo, deverá ver a sua influência econômica e política minguar.
A influência política, em particular, deverá cair muito. Os EUA demonstraram grande incompetência em lidar com a crise e não souberam liderar o mundo na direção correta. Ao contrário, a administração Trump não apenas demonstrou incúria, como se negou a fazer quaisquer gestos de solidariedade, em relação a outros países. No mais puro espírito de corpo e de porco do America First, tentaram obter exclusividade de uma vacina alemã e agora capturam e se se apropriam de exportações de equipamentos médicos destinados a outras nações.
No estilo comum a Bolsonaro, Trump agora coloca a culpa de sua incompetência na OMS. Típico.
Nesse quadro de relativo enfraquecimento econômico e político dos EUA e aliados, a China poderá se converter na locomotiva de um novo processo de globalização, mais centrado em sinergias das economias reais do que nos movimentos especulativos das finanças internacionais, rearticulando as cadeias produtivas a seu favor e colocando em xeque a hegemonia do dólar.
Claro está que a desconstrução da antiga complementariedade econômica entre EUA e China não ocorrerá imediatamente. Assim como Trump não poderá exigir por decreto que todos eletroeletrônicos e demais produtos importados da China voltem a ser fabricados nos EUA, a China ainda necessitará do mercado de consumo dos EUA.
Mas a China já superou a sua dependência tecnológica, em relação aos EUA e demais países desenvolvidos. Hoje, é o país que mais desenvolve inovação e poderá expandir seu consumo interno e as exportações, tanto de bens quanto de serviços, para outros países, num cenário de reconstrução das economias pós-pandemia.
Para a China, essa necessária reconstrução será uma grande oportunidade histórica para consolidar, de forma definitiva, sua hegemonia econômica no mundo.
IV. O Brasil de Bolsonaro poderá produzir um apocalipse multidimensional (sanitário, econômico e democrático)
Se a China se converterá, provavelmente, num grande “vencedor” da crise, o Brasil de Bolsonaro tende a ser um dos maiores perdedores.
O drama do Covid-19 pegou o Brasil no contrapé de uma crise endógena muito grave provocada pelo austericídio engendrado pelo golpe de Estado de 2016.
Esse Brasil muito enfraquecido pelo ultraneoliberalismo e pelo austericídio só não foi ainda definitivamente à falência graças às reservas cambiais deixadas pelos governos do PT. Porém, tais reservas são finitas.
Conduzido por terraplanistas sanitários (Bolsonaro), econômicos (Guedes) e geopolíticos (Araújo), o atual Brasil fraco e neocolonial caminha celeremente para um apocalipse sanitário e econômico.
Mais preocupado em promover conflitos com governadores e com seu próprio ministro da saúde, por motivos eleitoreiros, Bolsonaro parece apostar no caos, como forma de promover um apocalipse democrático que lhe beneficie, em detrimento da vida de milhares de brasileiros.
Ademais, seu ministro pinochetista, movido por ideais ultrapassados da década de 1980, reluta em tomar as medidas necessárias para manter a economia funcionando, sufoca financeiramente os Estados, não distribui os equipamentos médicos necessários e até demora a pagar os R$ 600,00 para os mais necessitados.
Não há dúvida, portanto, que o difícil e complexo cenário pós-pandemia encontrará um Brasil ainda mais enfraquecido e com grandes dificuldades para se reerguer.
Sobreviveremos ao vírus, mas precisaremos sobreviver também ao caos bolsonarista.
No Brasil, a tarefa hercúlea de reconstrução da economia exigiria o fortalecimento dos mecanismos estatais de intervenção na economia e de promoção do investimento público. BNDES, Petrobras, Eletrobras, Banco do Brasil, etc. teriam de ser reconstruídos, fortalecidos e voltar a um efetivo controle público. Ao mesmo tempo, todos os mecanismos legais, políticos e administrativos que dão suporte ao austericídio, como a Emenda Constitucional nº 95, por exemplo, teriam de ser prontamente extintos.
Ademais, a reconstrução exigiria um novo posicionamento geopolítico do Brasil.
Com efeito, o esforço de reconstrução pós-pandemia implicaria também o abandono expedito da política externa de aliança incondicional e ideológica à administração Trump e o fortalecimento da parceria estratégica Brasil/China, ameaçada pelo bolsonarismo, bem como a volta da centralidade da cooperação Sul/Sul e da integração regional em nossa política externa.
Para salvar vidas, empregos e a democracia, e evitar o apocalipse bolsonarista, o Brasil terá de criar maiorias políticas em torno de uma ampla e ambiciosa agenda contracíclica de reconstrução nacional, de defesa das instituições democráticas e de recuperação da soberania.
Vírus não fazem história. A fazem os homens. Ainda é tempo. Mas o tempo é curto.
É certo que a pandemia do Covid-19 passará, como toda pandemia. Não se sabe ao certo, contudo, qual sua intensidade e extensão e que consequências trará para o mundo, especialmente sobre sua economia.
A última grande pandemia mundial, a da mal chamada gripe espanhola, ocorrida há pouco mais de um século, matou, de acordo com as estimativas mais conservadoras, cerca de 17,3 milhões de pessoas em todo o planeta. Na época, a população mundial era de 1,8 bilhão. Portanto, essa pandemia teria ceifado ao redor de 1% dos habitantes da Terra.
Como a população mundial é hoje de cerca de 7,7 bilhões de pessoas, a pandemia do Covid-19 teria de matar ao redor de 77 milhões de seres humanos para chegar ao nível de letalidade da gripe espanhola.
Pelo andar da carruagem, e apesar do terraplanismo sanitário de gente como Trump e Bolsonaro, parece pouco provável que isso aconteça, até mesmo porque hoje a ciência dispõe de armas muito mais poderosas para enfrentar esse tipo de pandemia. Além disso, atualmente muitos países dispõem de sistemas públicos de saúde, coisa que não existia na época da gripe espanhola. Na realidade, esses sistemas universais e públicos de saúde começaram a surgir, de forma embrionária, justamente após a pandemia da gripe espanhola.
Na China, país que já conseguiu controlar a sua epidemia, o Covid-19 matou, até agora, 3.338 pessoas. Com uma população de 1,386 bilhão, isso representa a morte de uma fração ínfima dos habitantes daquele país. Mesmo que ocorra um segundo surto, parece pouco provável que número total de mortes ultrapasse 0,001% da população da China (13.860 habitantes), até mesmo porque novas ondas de coronavírus encontrarão autoridades e população mais prevenidas e com um conhecimento bem maior do comportamento do vírus.
Na Itália, país que não soube controlar a epidemia, a situação é muito pior. Já tinham morrido, até o início abril, 15.362 pessoas, o que representa 0,026% da população total daquele país (60.480.000). No entanto, as extensas medidas de isolamento horizontal já apresentam resultados: a curva de ascensão de novos casos caiu para 3,5% e o número de mortos diminuiu em cerca de 20%. Supondo que o número de mortos vá duplicar até o controle efetivo da epidemia, isso significará a morte de 0,05% da população da Itália. Assim, mesmo nesse cenário mais sombrio, o impacto do Covid-19 na taxa de mortalidade seria cerca de 20 vezes menor do que o impacto médio da gripe espanhola, que ceifou, como afirmamos, ao redor de 1% da população mundial. Teriam de morrer cerca de 600 mil italianos para que chegássemos ao nível de letalidade da gripe espanhola.
Claro está que esse quadro poderá agravar-se, caso a epidemia atinja com força os países em desenvolvimento, especialmente os da África Subsaariana, que não têm serviços de saúde de mínima qualidade e cobertura, e convivem com condições socioeconômicas bem mais precárias.
A humanidade, porém, sobreviverá. Não é gripezinha, como falou o helminto descerebrado, mas não é o apocalipse. Não é sequer (ainda) a gripe espanhola.
E a o mundo pós-pandemia, como será?
O desafio maior será sem dúvida, sobreviver bem no complexo e difícil cenário pós-pandemia.
No calor dos acontecimentos, surgem especulações das mais variadas. Depressão prolongada, colapso do neoliberalismo, quebra definitiva das cadeias produtivas globais, fim da globalização, crise final do capitalismo, etc.
No entanto, como ensinava Hegel, a coruja, pássaro que simboliza a sabedoria, só levanta voo ao anoitecer, passado o calor dos acontecimentos do dia.
Em 2008, logo no início da crise dos títulos podres, o então primeiro-ministro britânico, Gordon Brown, afirmou, na reunião do G20 em Londres, que o Consenso de Washington (a essência do neoliberalismo) estava morto. Na época, parecia uma afirmação bastante óbvia. Os Estados estavam intervindo ativamente na economia e no sistema financeiro e se falava o tempo todo na necessidade de instituir regras rígidas para se controlar as finanças globais.
Passado, entretanto, o período crítico da crise, tudo ficou como dantes no quartel de Abrantes. O dinheiro das políticas anticíclicas ficou retido no sistema financeiro, que começou a criar novas bolhas especulativas. As velhas políticas austericidas voltaram a predominar, especialmente na Europa. A Grécia e outros países foram imolados no altar da responsabilidade fiscal instituído pela Troika. O Estado do Bem Estar continuou a ser sucateado, inclusive na área da saúde, e a desigualdade e a precariedade laboral continuaram a aumentar.
Voltando a Hegel, ele costumava dizer que a História ensina que os homens não aprendem nada com ela. Fato.
Não há, portanto, certeza alguma de que, desta vez, a crise vá provocar mudanças significativas de longo prazo no sistema capitalista global, embora seja evidente que, momentaneamente, todo o mundo virou keynesiano desde criancinha, especialmente os empresários neoliberais que estão precisando de ajuda.
Há, contudo, alguns cenários de alta probabilidade.
I. Haverá profunda recessão global
No início da crise, especulou-se que a recessão poderia ficar circunscrita geograficamente à Ásia e temporalmente ao primeiro semestre deste ano.
Esse cenário panglossiano esfumou-se nos ares virulentos da pandemia.
Todas as economias estão sendo gravemente afetadas.
Prevê-se que os EUA de Trump, que menosprezou os efeitos sanitários e econômicos da “gripezinha”, terão uma redução do PIB de até 34%, neste segundo trimestre.
Na China, a contração da produção industrial foi de 13%, no primeiro bimestre do ano.
Não há como evitar a recessão, uma vez que as atividades estão paralisadas ou parcialmente paralisadas.
Não se sabe, ao certo, qual será a extensão dessa recessão. Ao contrário da crise de 2008, que começou no sistema financeiro e depois se expandiu para a economia real, esta crise presente está começando na economia real e deverá se expandir para o sistema financeiro, o que deverá torná-la sistêmica.
Também não se sabe qual será a duração temporal dessa nova crise. Mesmo que as coisas comecem a voltar ao normal a partir do segundo semestre, supondo o controle do Covid-19 em níveis aceitáveis, os efeitos recessivos deverão se propagar também em 2021, pelo menos. Mas poderá ser por um prazo bem maior.
No caso da gripe espanhola, houve recessão aguda durante a epidemia, mas a recuperação também foi rápida. Com efeito, os anos 1920 foram, com exceções pontuais, como a da Alemanha, um período de crescimento acelerado. A crise verdadeira só veio em 1929, por razões que não tinham, obviamente, nenhuma relação com a pandemia que tinha ocorrido havia 10 anos. A economia mundial e as circunstâncias eram, porém, bastante diferentes das de hoje.
O que se sabe, contudo, é que os Estados terão de promover robustas políticas anticíclicas para que não haja um apocalipse liberal.
II. Os países terão de adotar medidas drásticas durante e, sobretudo, após a pandemia.
Todos os países estão sendo forçados a adotar políticas anticíclicas de peso.
A União Europeia abandonou seus carcomidos manuais de controle fiscal e liberou seus membros de cumprirem as suas ridículas metas macroeconômicas.
A Espanha, por exemplo, vai comprometer 20% de seu PIB com políticas e medidas que permitam manter a atividade econômica e o nível de emprego em níveis toleráveis.
Os EUA também soltaram um pacote histórico de US$ 2 trilhões, para tentar conter os efeitos mais perversos da crise.
Porém, essas medidas emergenciais são apenas a ponta do iceberg do que terá de ser feito. Passada a pandemia, quer pela obtenção natural da “imunidade de rebanho”, quer por uma vacina, as economias, em maior ou menor grau, estarão desorganizadas e exangues, com alto nível de endividamento e com taxas de desemprego muito elevadas, tal como as economias de países que passaram por uma grande guerra em seus territórios.
Assim, a economia mundial, com suas cadeias produtivas fraturadas, terá de sofrer rearranjos e ser reconstruída.
Tal como aconteceu ao final da Segunda Guerra Mundial, quando os EUA reconstruíram a devastada Europa com o Plano Marshall, necessitaremos de novos planos desse tipo, no cenário pós-pandemia.
Nesse sentido, a presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, já afirmou que o próximo orçamento plurianual da UE deverá assumir a forma de um novo "Plano Marshall", para fomentar a recuperação da Europa frente à crise do coronavírus. Serão anos de estímulos contracíclicos.
Contudo, muitos países terão dificuldades para enfrentar esse desafio de reconstrução. Além disso, será necessário que alguém lidere, em nível mundial, uma política concatenada de reconstrução e de estímulos.
Parece pouco provável que os EUA, concentrados no America First, cumpram o mesmo papel que tiveram no cenário pós Segunda Guerra Mundial.
Com isso, passamos ao terceiro ponto.
III. A crise terá efeitos geopolíticos profundos
A China entrou primeiro na crise e deverá de ela sair primeiro. Esse país demonstrou muita resiliência e competência e conseguiu conter a sua epidemia com um custo humano e econômico comparativamente baixo e em tempo bastante curto. Agora, prepara-se para voltar gradativamente à normalidade. Da mesma forma, alguns outros países asiáticos, como Coreia do Sul e Vietnã, por exemplo, vêm enfrentando bem as suas crises sanitárias.
Em contraste, os Estados Unidos e outros países ocidentais, como Itália e Espanha, não enfrentam bem as suas crises.
Os EUA se converteram no principal foco do coronavírus no mundo e arcarão com um custo humano e econômico muito mais alto que o assumido pela China. Esse último país teve, como assinalamos pouco mais de 3 mil mortos numa população de 1,386 bilhão. Os EUA, de acordo com suas próprias estimativas, terão entre 100 mil a 240 mil mortos, com uma população muito menor (330 milhões). O mesmo ocorre na Europa, que vai arcar também com custos humanos e econômicos bem superiores ao do gigante asiático.
Assim, a China, país que demonstrou muita resiliência e competência no enfrentamento da epidemia, sairá dela consideravelmente fortalecida, ao passo que os EUA e a Europa dela sairão mais enfraquecidos, economicamente e politicamente.
Desse modo, a China deverá ampliar seu protagonismo internacional, posicionando-se em melhores condições para enfrentar a guerra econômica e comercial imposta pelos EUA de Trump.
A China deverá se converter no único país capaz de financiar e promover Planos Marshall em países em desenvolvimento, coisa que os EUA do America First e instituições multilaterais, como FMI e Banco Mundial, não terão condições ou interesse em fazer.
O gigante asiático deverá aumentar fortemente sua presença no mundo, ao passo que os EUA, mais enfraquecido e subsumido pelo protecionismo, deverá ver a sua influência econômica e política minguar.
A influência política, em particular, deverá cair muito. Os EUA demonstraram grande incompetência em lidar com a crise e não souberam liderar o mundo na direção correta. Ao contrário, a administração Trump não apenas demonstrou incúria, como se negou a fazer quaisquer gestos de solidariedade, em relação a outros países. No mais puro espírito de corpo e de porco do America First, tentaram obter exclusividade de uma vacina alemã e agora capturam e se se apropriam de exportações de equipamentos médicos destinados a outras nações.
No estilo comum a Bolsonaro, Trump agora coloca a culpa de sua incompetência na OMS. Típico.
Nesse quadro de relativo enfraquecimento econômico e político dos EUA e aliados, a China poderá se converter na locomotiva de um novo processo de globalização, mais centrado em sinergias das economias reais do que nos movimentos especulativos das finanças internacionais, rearticulando as cadeias produtivas a seu favor e colocando em xeque a hegemonia do dólar.
Claro está que a desconstrução da antiga complementariedade econômica entre EUA e China não ocorrerá imediatamente. Assim como Trump não poderá exigir por decreto que todos eletroeletrônicos e demais produtos importados da China voltem a ser fabricados nos EUA, a China ainda necessitará do mercado de consumo dos EUA.
Mas a China já superou a sua dependência tecnológica, em relação aos EUA e demais países desenvolvidos. Hoje, é o país que mais desenvolve inovação e poderá expandir seu consumo interno e as exportações, tanto de bens quanto de serviços, para outros países, num cenário de reconstrução das economias pós-pandemia.
Para a China, essa necessária reconstrução será uma grande oportunidade histórica para consolidar, de forma definitiva, sua hegemonia econômica no mundo.
IV. O Brasil de Bolsonaro poderá produzir um apocalipse multidimensional (sanitário, econômico e democrático)
Se a China se converterá, provavelmente, num grande “vencedor” da crise, o Brasil de Bolsonaro tende a ser um dos maiores perdedores.
O drama do Covid-19 pegou o Brasil no contrapé de uma crise endógena muito grave provocada pelo austericídio engendrado pelo golpe de Estado de 2016.
Esse Brasil muito enfraquecido pelo ultraneoliberalismo e pelo austericídio só não foi ainda definitivamente à falência graças às reservas cambiais deixadas pelos governos do PT. Porém, tais reservas são finitas.
Conduzido por terraplanistas sanitários (Bolsonaro), econômicos (Guedes) e geopolíticos (Araújo), o atual Brasil fraco e neocolonial caminha celeremente para um apocalipse sanitário e econômico.
Mais preocupado em promover conflitos com governadores e com seu próprio ministro da saúde, por motivos eleitoreiros, Bolsonaro parece apostar no caos, como forma de promover um apocalipse democrático que lhe beneficie, em detrimento da vida de milhares de brasileiros.
Ademais, seu ministro pinochetista, movido por ideais ultrapassados da década de 1980, reluta em tomar as medidas necessárias para manter a economia funcionando, sufoca financeiramente os Estados, não distribui os equipamentos médicos necessários e até demora a pagar os R$ 600,00 para os mais necessitados.
Não há dúvida, portanto, que o difícil e complexo cenário pós-pandemia encontrará um Brasil ainda mais enfraquecido e com grandes dificuldades para se reerguer.
Sobreviveremos ao vírus, mas precisaremos sobreviver também ao caos bolsonarista.
No Brasil, a tarefa hercúlea de reconstrução da economia exigiria o fortalecimento dos mecanismos estatais de intervenção na economia e de promoção do investimento público. BNDES, Petrobras, Eletrobras, Banco do Brasil, etc. teriam de ser reconstruídos, fortalecidos e voltar a um efetivo controle público. Ao mesmo tempo, todos os mecanismos legais, políticos e administrativos que dão suporte ao austericídio, como a Emenda Constitucional nº 95, por exemplo, teriam de ser prontamente extintos.
Ademais, a reconstrução exigiria um novo posicionamento geopolítico do Brasil.
Com efeito, o esforço de reconstrução pós-pandemia implicaria também o abandono expedito da política externa de aliança incondicional e ideológica à administração Trump e o fortalecimento da parceria estratégica Brasil/China, ameaçada pelo bolsonarismo, bem como a volta da centralidade da cooperação Sul/Sul e da integração regional em nossa política externa.
Para salvar vidas, empregos e a democracia, e evitar o apocalipse bolsonarista, o Brasil terá de criar maiorias políticas em torno de uma ampla e ambiciosa agenda contracíclica de reconstrução nacional, de defesa das instituições democráticas e de recuperação da soberania.
Vírus não fazem história. A fazem os homens. Ainda é tempo. Mas o tempo é curto.
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