Por Luís Fernando Vitagliano, no site Brasil Debate:
Mais uma vítima fatal do Covid-19 foi confirmada: o mito de Bolsonaro. Não, o governo ainda não morreu; embora sua sustentação se torne cada vez mais crítica daqui em diante. Tampouco e muito menos o próprio presidente tenha morrido. Este, pelo contrário, aparenta desfrutar de boa saúde. O que morreu, de fato, foi a subjetividade construída em torno da figura do presidente. Subjetividade tão cara que o tornou popular nas urnas e nas redes e que o fez sustentar medidas bastante impopulares de governo.
Para alguns, que não observam o reflexo da subjetividade na realidade concreta, isso pode ser pouco. Entretanto, engana-se quem pensa assim. Não há ponto de retorno. A carapaça de que se valia Bolsonaro de algum tipo de veneração e garantia à popularidade da personalidade política era o que dava unicidade à frágil coalizão de governo. A admiração de seus apoiadores era pedra angular da popularidade do presidente e o maior valor eleitoral de que este desfrutava. A referência ao mito era o capital político mais valorado de governo. Não que isso vá se perder completamente, ou que vamos ver aquele bolsonarista raiz totalmente arrependido, mas o poder de convencimento e contágio daqueles fanáticos se perdeu completamente.
Toda a campanha de Bolsonaro girava em torno do arquétipo do pai da nação. As palavras de ordem e orientação casam com a construção da figura do pai. Diferentemente da construção coletiva da mãe, existe na imagem do pai a noção patriarcal representando o rei, soberano, a representação do governo e que tem o cuidado com a família. Mesmo muitas daquelas pessoas que viam com pouco entusiasmo o bolsonarismo, reconheciam ou supunham que ele era preocupado com o povo. Por isso, essa imagem casa-se tão bem com a subjetividade construída nas redes sociais para as campanhas de Bolsonaro.
Porém, quando ele abre mão dos cuidados com a saúde da família, se desconstrói esse arquétipo e nasce uma crise na própria imagem da liderança. Principalmente quando ficar claro (e está cada vez mais claro), que a proposta de voltar da quarentena de Bolsonaro não é uma preocupação com a renda do trabalhador, mas resposta à pressão dos negócios e dos donos de negócios que estão se prejudicando financeiramente com a alternativa de isolamento durante a pandemia – mas que têm condições de se tratar ou evitar o contágio. Não seria, portanto, uma decisão vinda da preocupação legítima de alguém que pensa no cuidado com a nação, mas atitude mesquinha de governante que cede à pressão do grupo de interesse que sustenta o governo.
A subjetividade do arquétipo, ou popularmente o mito em torno de um político funciona como uma camada protetora contra as críticas e ataques dos adversários. Mito é um tipo de teflon (nada gruda), é o escudo protetor da imagem que tudo se justifica; que tudo encontra uma desculpa. Humaniza e redime. Mas, agora, o rei está nu. Sua carapaça de governante sábio, de grande pai da nação, de xerife, de protetor das famílias se foi. Não dá pra justificar tamanha estripulia ou descaso durante uma crise tão forte. Sua imagem se arranhou e as desculpas perderam o sentido.
Bolsonaro sempre foi um representante medíocre do baixo clero político. E, ao contrário do diagnóstico que o subestimou, este demérito foi o grande trunfo da sua escalada à presidência. Ter uma base social na classe média baixa (de 2 a 5 salários mínimos de renda média) revelou sua jornada das insatisfações absorvidas do homem comum até as conquistas heroicas – a figura de Bolsonaro se encaixou na identidade dessa classe média ralé que viu nele uma a oportunidade de eleger alguém que demonstrava fortes tendências ao cuidado com a família e com um discurso de ordem que agrada este segmento social mais que a qualquer outro.
A categoria social mediana que apoia fortemente Bolsonaro é composta por pequenos comerciantes, donos de negócios familiares, pequenos empresários formais ou trabalhadores de renda média que estagnaram. Atualmente, este grupo olha o isolamento como inimigo maior que a pandemia. Protegidos na condição social relativamente estável, eles veem a economia com graves prejuízos com o isolamento e reagem agressivamente contra a ação do Estado regulando suas estruturas domésticas.
O lado negativo desse seguimento que ficou obscurecido e à sombra dos acontecimentos recentes se mostrou forte agora. A tendência egoísta, individualista, competitiva e predatória desta categoria social – que oprime e explora empregados e empregadas domésticas e seus funcionários dos pequenos negócios – aflorou em um salve-se quem puder. Ao revelar tão fortemente sua identidade com esse grupo político, Bolsonaro desnuda não apenas seu pouco apreço à coletividade nacional, como o lado negativo e impopular da origem social que o elegeu. Se antes era possível esconder esses aspectos da personalidade política, agora o rei está nu.
A política tem uma lógica própria. O socialmente impossível se torna possível. A moral subverte. A ótica se transforma. Mentir muitas vezes não é problema e encontra desculpa, o conflito é parte do jogo de aliados, se aceita o intolerável e condena-se o razoável. Aquilo que na esfera doméstica, privada pode ser visto como abusivo, na política é tolerável. É a arte de tornar possível o necessário ou necessário o possível (na subversão das palavras de um ex-presidente). Mas nessa esfera também há delitos. E é o crime capital da política a incoerência. Dizer que fez e não fez, fazer que vai e não ir. Dizer que é e não ser…
O mito morreu. Se dizia o pai da nação, mas perdeu o manto sagrado. Quando o país enfrenta seu maior desafio público, Bolsonaro continua a desorganizar a casa, expor as famílias ao caos e a não cuidar dos mais vulneráveis. Por mais que o governo possa tentar se justificar do ponto de vista econômico, fica evidente que sua preocupação não é com a saúde e a vida das pessoas, é com o sistema financeiro e com os negócios. E, no fundo, fica mais que a decepção dos que acreditaram, aflora o sentimento de desencanto.
Morre o mito. O governo que caminha para a derrocada pode perder a sustentação a partir da queda de popularidade do chefe do Executivo. Não sabemos quanto tempo isso vai demorar, pode depender da emergência da própria pandemia. Mas, já não é mais possível esconder os erros através do argumento de que queria acertar, de que fez na melhor das intenções. E, para um governo que erra tanto, essa proteção era mais que fundamental.
Mais uma vítima fatal do Covid-19 foi confirmada: o mito de Bolsonaro. Não, o governo ainda não morreu; embora sua sustentação se torne cada vez mais crítica daqui em diante. Tampouco e muito menos o próprio presidente tenha morrido. Este, pelo contrário, aparenta desfrutar de boa saúde. O que morreu, de fato, foi a subjetividade construída em torno da figura do presidente. Subjetividade tão cara que o tornou popular nas urnas e nas redes e que o fez sustentar medidas bastante impopulares de governo.
Para alguns, que não observam o reflexo da subjetividade na realidade concreta, isso pode ser pouco. Entretanto, engana-se quem pensa assim. Não há ponto de retorno. A carapaça de que se valia Bolsonaro de algum tipo de veneração e garantia à popularidade da personalidade política era o que dava unicidade à frágil coalizão de governo. A admiração de seus apoiadores era pedra angular da popularidade do presidente e o maior valor eleitoral de que este desfrutava. A referência ao mito era o capital político mais valorado de governo. Não que isso vá se perder completamente, ou que vamos ver aquele bolsonarista raiz totalmente arrependido, mas o poder de convencimento e contágio daqueles fanáticos se perdeu completamente.
Toda a campanha de Bolsonaro girava em torno do arquétipo do pai da nação. As palavras de ordem e orientação casam com a construção da figura do pai. Diferentemente da construção coletiva da mãe, existe na imagem do pai a noção patriarcal representando o rei, soberano, a representação do governo e que tem o cuidado com a família. Mesmo muitas daquelas pessoas que viam com pouco entusiasmo o bolsonarismo, reconheciam ou supunham que ele era preocupado com o povo. Por isso, essa imagem casa-se tão bem com a subjetividade construída nas redes sociais para as campanhas de Bolsonaro.
Porém, quando ele abre mão dos cuidados com a saúde da família, se desconstrói esse arquétipo e nasce uma crise na própria imagem da liderança. Principalmente quando ficar claro (e está cada vez mais claro), que a proposta de voltar da quarentena de Bolsonaro não é uma preocupação com a renda do trabalhador, mas resposta à pressão dos negócios e dos donos de negócios que estão se prejudicando financeiramente com a alternativa de isolamento durante a pandemia – mas que têm condições de se tratar ou evitar o contágio. Não seria, portanto, uma decisão vinda da preocupação legítima de alguém que pensa no cuidado com a nação, mas atitude mesquinha de governante que cede à pressão do grupo de interesse que sustenta o governo.
A subjetividade do arquétipo, ou popularmente o mito em torno de um político funciona como uma camada protetora contra as críticas e ataques dos adversários. Mito é um tipo de teflon (nada gruda), é o escudo protetor da imagem que tudo se justifica; que tudo encontra uma desculpa. Humaniza e redime. Mas, agora, o rei está nu. Sua carapaça de governante sábio, de grande pai da nação, de xerife, de protetor das famílias se foi. Não dá pra justificar tamanha estripulia ou descaso durante uma crise tão forte. Sua imagem se arranhou e as desculpas perderam o sentido.
Bolsonaro sempre foi um representante medíocre do baixo clero político. E, ao contrário do diagnóstico que o subestimou, este demérito foi o grande trunfo da sua escalada à presidência. Ter uma base social na classe média baixa (de 2 a 5 salários mínimos de renda média) revelou sua jornada das insatisfações absorvidas do homem comum até as conquistas heroicas – a figura de Bolsonaro se encaixou na identidade dessa classe média ralé que viu nele uma a oportunidade de eleger alguém que demonstrava fortes tendências ao cuidado com a família e com um discurso de ordem que agrada este segmento social mais que a qualquer outro.
A categoria social mediana que apoia fortemente Bolsonaro é composta por pequenos comerciantes, donos de negócios familiares, pequenos empresários formais ou trabalhadores de renda média que estagnaram. Atualmente, este grupo olha o isolamento como inimigo maior que a pandemia. Protegidos na condição social relativamente estável, eles veem a economia com graves prejuízos com o isolamento e reagem agressivamente contra a ação do Estado regulando suas estruturas domésticas.
O lado negativo desse seguimento que ficou obscurecido e à sombra dos acontecimentos recentes se mostrou forte agora. A tendência egoísta, individualista, competitiva e predatória desta categoria social – que oprime e explora empregados e empregadas domésticas e seus funcionários dos pequenos negócios – aflorou em um salve-se quem puder. Ao revelar tão fortemente sua identidade com esse grupo político, Bolsonaro desnuda não apenas seu pouco apreço à coletividade nacional, como o lado negativo e impopular da origem social que o elegeu. Se antes era possível esconder esses aspectos da personalidade política, agora o rei está nu.
A política tem uma lógica própria. O socialmente impossível se torna possível. A moral subverte. A ótica se transforma. Mentir muitas vezes não é problema e encontra desculpa, o conflito é parte do jogo de aliados, se aceita o intolerável e condena-se o razoável. Aquilo que na esfera doméstica, privada pode ser visto como abusivo, na política é tolerável. É a arte de tornar possível o necessário ou necessário o possível (na subversão das palavras de um ex-presidente). Mas nessa esfera também há delitos. E é o crime capital da política a incoerência. Dizer que fez e não fez, fazer que vai e não ir. Dizer que é e não ser…
O mito morreu. Se dizia o pai da nação, mas perdeu o manto sagrado. Quando o país enfrenta seu maior desafio público, Bolsonaro continua a desorganizar a casa, expor as famílias ao caos e a não cuidar dos mais vulneráveis. Por mais que o governo possa tentar se justificar do ponto de vista econômico, fica evidente que sua preocupação não é com a saúde e a vida das pessoas, é com o sistema financeiro e com os negócios. E, no fundo, fica mais que a decepção dos que acreditaram, aflora o sentimento de desencanto.
Morre o mito. O governo que caminha para a derrocada pode perder a sustentação a partir da queda de popularidade do chefe do Executivo. Não sabemos quanto tempo isso vai demorar, pode depender da emergência da própria pandemia. Mas, já não é mais possível esconder os erros através do argumento de que queria acertar, de que fez na melhor das intenções. E, para um governo que erra tanto, essa proteção era mais que fundamental.
1 comentários:
Primeiro, não me satisfez a afirmação de que "o mito morreu". O bolsonarismo continua mais vivo do que nunca. Sua depuração era previsível até mesmo pelo projeto do próprio bolsonarismo, que dispensa ser apoiado por maiorias de eleitores, pois não pretende disputar novas eleições, mas dar um golpe de estado. A falange de que precisa para o referido golpe mantém-se unida e em posição de combate. Mas,o que me motiva esse comentário é a caracterização social dos Bolsonaristas. Lógico que não se pode opor a uma pesquisa de campo que caracterize, a partir de levantamento estatístico, o perfil de um grupo social qualquer, a intuição que podemos ter de como esse grupo seria constituído antes de o referido levantamento ter sido realizado. Falo de intuição científica, ou seja, de uma hipótese que formulamos quando não dispomos de dados mais refinados sobre um determinado objeto. Não se trata, portanto, de "achismo", que consiste em formular uma ideia sobre algo sem qualquer base crível, racional. Uma hipótese racional é uma ideia, dotada de uma lógica interna, que se candidata à necessidade de demonstração científica. O "achismo" é uma ideia irracional que se candidata à lata do lixo. A minha curiosidade,que tem uma hipótese racional sobre os apoiadores de Bolsonaro, gostaria de conhecer outros dados sobre a base bolsonarista, distintos do corte de renda que, no artigo, foi estabelecido entre 2 e 5 salários mínimos. A primeira pergunta que minha curiosidade formularia é: qual é o peso dos militares, conhecido celeiro de militantes bolsonaristas, dentro desse grupo? A resposta a essa pergunta dimensionaria a influência ideológica das milícias. A segunda indagação (a segunda variável estatística diferente da renda) tentaria determinar a filiação religiosa desse grupo, o que dimensionaria, por sua vez, a influência ideológica dos pastores evangélicos vigaristas sobre o seu rebanho. Desse modo, a explicação clássica das caracteristicas de um grupo social genérico de apoiadores do fascismo (como aquele que constituiu a base social de Mussolini, por exemplo,que tinha grande semelhança em termos de renda com a aqui atribuída ao grupo de apoiadores de Bolsonaro), ou seja, os que, pelo critério de renda (critério não muito apreciado pelos analistas marxistas) se classificam como indivíduos da "classe média baixa", poderia ser substituída por uma outra explicação, pelo menos, em parte. Porque, para aceitarmos o argumento central do texto, teríamos que concluir que o grupo de fascistas potenciais poderá ser sempre encontrado em qualquer sociedade em uma faixa de renda que corresponde à "classe média baixa".Desse modo, o fascismo apenas atenderia a uma tendência espontânea existencial do referido grupo. Para mim, entretanto, o que explica o fascismo dos chamados bolsonaristas é uma dupla doutrinação ideológica sistematicamente exercida sobre dois grupos distintos de homens comuns. A primeira doutrinação, dentro dos quartéis, particularmente entre os policiais militares. A segunda, dentro das Igrejas evangélicas. As condições de vida desse grupo, que se definem apenas parcialmente pela renda de 2 a 5 salários mínimos, os tornam sensíveis a qualquer sistema de idéias, a qualquer ideologia, seja ela fascista ou socialista, que satisfaça o desejo legítimo desse grupo social melhorar de vida, deixar de viver com as dificuldades materiais em que vivem. Se se converteram em apoiadores de Bolsonaro, ou em membros de Igrejas evangélicos, foi porque não tiveram a oportunidade de enxergar mudanças a partir de uma ideologia socialista que jamais conheceram, ou de ingressar em um templo budista, ou em uma Igreja cristã progressista, que também não os procuraram nos locais onde moram e circulam. Trata-se de uma hipótese e não de uma teoria.
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