Por Liszt Vieira, no site Carta Maior:
Para enfrentar a crise da pandemia, a intervenção estatal, antes demonizada, está agora sendo solicitada e elogiada pelos comentaristas conservadores que anteriormente a criticavam. O capitalismo de Estado está sendo visto como solução. A crise econômica do coronavirus pressiona mudanças nessa direção. Mas isso não significa necessariamente um sistema econômico mais progressista e justo, como poderia ser o caso de uma social democracia radical ou de um socialismo. Não significa necessariamente redução da desigualdade social e desenvolvimento sustentável com justiça social.
A relação entre poder e propriedade não é geralmente tocada num regime de capitalismo de Estado. Não se vislumbra um novo horizonte igualitário, uma ideologia da propriedade social e da educação. Em sua obra, principalmente em seu último livro Capital e Ideologia, o economista francês Thomas Piketty mostra que os regimes baseados na desigualdade não são irreversíveis, são construídos a partir de uma narrativa “proprietarista, empresarial e meritocrática”, de uma “sacralização quase religiosa da propriedade” que anima nossas sociedades e bloqueia a visão de uma nova utopia socialista.
Pelo discurso neoliberal, as desigualdades antes eram despóticas e arbitrárias, mas hoje vivemos em democracia e as desigualdades são justificadas, porque todos teriam acesso ao mercado e à propriedade. Esse discurso da “ideologia da desigualdade” alimentou o aumento das desigualdades em todo o mundo a partir dos anos 80 do século passado. Entretanto, algumas experiências de desenvolvimento no pós guerra mostraram que foi pela igualdade e investimento em educação que se obteve a prosperidade coletiva, e não pela sacralização da propriedade e da desigualdade, que, no dizer de Piketty, impede a resolução de graves problemas como o aquecimento global e se constitui em grande perigo para as sociedades humanas.
À medida em que a economia global sucumbe ao Covid-19, surge no horizonte o espectro do capitalismo de Estado. Nos EUA, os despejos de inquilinos estão sendo adiados, a folha de pagamento de algumas empresas vai ser garantida pelo Estado, e o governo Trump, entre outras medidas, obrigou a General Motors a fabricar respiradores. A reconversão industrial surge como alternativa! E no Reino Unido, já estão discutindo renacionalizar companhias aéreas em dificuldades e outras empresas.
Desde a eleição de Donald Trump nos EUA e a votação do Brexit no Reino Unido, os arautos do livre mercado foram deslocados do poder ou forçados a aceitar uma doutrina diferente, em geral a de uma forma autoritária e nacionalista de neoliberalismo. O capital nacional passou a preponderar. O símbolo foi o America First de Trump. O caso brasileiro é exceção, escapa a essa lógica nacionalista e se curva às empresas multinacionais e, no plano político, aos interesses dos EUA.
Na realidade, o Estado sempre está a serviço do capital privado. O capitalismo nunca fica sem o Estado, destinado a exercer funções não lucrativas de interesse público. Com a atual crise, porém, o Estado vai assumir funções econômicas antes lucrativas que, depois da pandemia, podem voltar a sê-lo. Em muitos lugares, esse capitalismo de Estado persistirá, apesar da pressão do setor privado.
Um bom exemplo é o caso de Singapura, considerado agora como modelo econômico pós-Brexit para o Reino Unido. O governo de Singapura continua a ser um dos principais acionistas da indústria e comércio, possui empresas de sucesso e competitivas. Em vários outros lugares, empresas estatais são bem administradas e competitivas, contrariando a imagem tradicional de paquidermes burocráticos. Empresas estatais e agências de investimento controladas pelo Estado, como fundos soberanos, estão se multiplicando e crescendo em todo o mundo.
A acumulação global de capital é impulsionada cada vez mais pelo capital centralizado nas mãos do Estado. A batalha do governo Trump com a China não é motivada por algum desejo de proteger a ordem internacional baseada em regras liberais. Pelo contrário, é uma batalha do capital nacional. A China deixou de apenas montar mercadorias e passou a projetar e produzir de forma competitiva, abalando o antigo equilíbrio da economia mundial. A grande propriedade estatal chinesa é necessária para garantir o domínio político no plano doméstico e para expandir a integração de empresas chinesas no comércio internacional.
Nos EUA, isso é alcançado hoje por uma forma de nacionalismo econômico na política comercial, industrial e de investimentos, visando ao controle exclusivo das inovações científico-tecnológicas. Com exceção dos países “colonizados”, as burguesias nacionais no Ocidente estão percebendo a necessidade do Estado para competir na economia global. O Brasil – repita-se – é caso único de uma extrema direita que rejeita o nacionalismo e se coloca à disposição dos interesses norteamericanos. O patriotismo e a soberania dos militares brasileiros são de caráter exclusivamente territorial, sem nenhum conteúdo econômico.
Os países estão fechando fronteiras, mas isso não impede a entrada do coronavirus, que dispensa passaporte. A solidariedade e cooperação internacional são imprescindíveis para sair da crise. O nacionalismo econômico vai ter vida curta. O mundo é um sistema interdependente. A globalização interligou as pessoas em toda parte. Não apenas no plano econômico-financeiro, dominado hoje pelo mercado financeiro. Isso é visível na comunicação eletrônica, cultural, turística e nos impactos ambientais e sociais da produção econômica. Alguns instrumentos e instituições internacionais já foram construídas em âmbito transnacional, como a ONU, a União Europeia etc. Embora não exista uma governança global efetiva, essas instituições têm peso político e às vezes força jurídica em suas recomendações, mas a soberania nacional tem se revelado um obstáculo para assumir medidas de proteção de direitos, da saúde, do meio ambiente, entre outras, que afetam toda a humanidade. Por outro lado, os interesses imperialistas frequentemente ignoram tais recomendações internacionais.
No Brasil, o presidente e seus filhos perceberam que a crise econômica pode derrubar o Governo e resolveram seguir a orientação do seu guru astrólogo que mora nos EUA: a pandemia não existe. O Governo dobrou a aposta e ficou isolado, contra a Ciência, o Congresso, os Governadores, a sociedade civil e a maioria da opinião pública. Provavelmente, vai manter o apoio de seu público irracional, que deve girar hoje em torno de 25% do eleitorado.
Os Governadores ensaiaram uma desobediência civil com cuidado, porque dependem de verba federal. O Governador de Goiás, porém, aliado de primeira hora de Bolsonaro, talvez por ser médico, pegou pesado e disse que não valem os decretos federais em Goiás, onde quem manda é ele, Ronaldo Caiado, governador. Foi até agora o caso mais ostensivo de desobediência civil no plano institucional, mas o presidente da Câmara dos Deputados, do Senado e o STF já colocaram diversas vezes limites ao desvario presidencial.
A crise do Covid-19 mudou o discurso de vários economistas liberais que defendiam ou flertavam com o Estado mínimo e o mercado máximo. Antes apoiavam o corte de recursos orçamentários para a área social – saúde, educação, pesquisa científica, meio ambiente etc. – em nome do equilíbrio nas contas públicas. Hoje, abandonaram o dogma liberal da “mão invisível do mercado”, de repente tornaram-se keynesianos e passaram a apoiar o aumento dos gastos sociais do Estado. Alguns neoliberais até se autodenominaram de “esquerda” para se distanciarem do sectário governo de extrema direita.
No momento, os neoliberais estão engolindo calados. Mas, quando a pandemia for controlada e o mercado voltar a funcionar normalmente, os profetas do sacrossanto livre mercado retornarão vingativos, e os defensores do capitalismo de Estado e da social democracia serão golpeados com fúria.
O retrocesso social imposto pelo atual Governo - principalmente o teto de gastos públicos, a injusta reforma da Previdência, a perda de direitos trabalhistas, a redução no poder aquisitivo do salário mínimo e Bolsa Família - diminuiu a renda e o consumo da população ao mesmo tempo em que aumentou o lucro dos bancos e dos rentistas. Tudo isso começa a ser questionado e abalado em tempos de pandemia.
Assim, como em toda a parte, o Brasil está sendo levado a aumentar gastos sociais e a enfraquecer o neoliberalismo. As medidas ainda são tímidas, mas a realidade vai se incumbir de forçar o Governo a assumir uma atitude mais pró ativa. O Estado tende cada vez mais a ocupar a função de principal agente econômico, já que o mercado não investe em atividades produtivas que criam riqueza e emprego, investe principalmente no mercado financeiro. O golpe sofrido pelo neoliberalismo pode não ser mortal, ele pode retornar depois da pandemia, mas voltará enfraquecido e provavelmente não poderá mais cortar os investimentos do Estado por 20 anos, como ocorreu no Brasil, caso único no mundo.
Imposto sobre grandes fortunas, elevação do ridículo imposto sobre herança, implantação da renda básica ou universal de cidadania, taxação dos lucros e dividendos, são propostas urgentes para reduzir a desigualdade e promover um desenvolvimento socialmente mais justo. Estavam esquecidas, reprimidas pelas classes dominantes e sua mídia. Retornam agora como espectro do capitalismo de Estado, assombrando o neoliberalismo do livre mercado.
Para enfrentar a crise da pandemia, a intervenção estatal, antes demonizada, está agora sendo solicitada e elogiada pelos comentaristas conservadores que anteriormente a criticavam. O capitalismo de Estado está sendo visto como solução. A crise econômica do coronavirus pressiona mudanças nessa direção. Mas isso não significa necessariamente um sistema econômico mais progressista e justo, como poderia ser o caso de uma social democracia radical ou de um socialismo. Não significa necessariamente redução da desigualdade social e desenvolvimento sustentável com justiça social.
A relação entre poder e propriedade não é geralmente tocada num regime de capitalismo de Estado. Não se vislumbra um novo horizonte igualitário, uma ideologia da propriedade social e da educação. Em sua obra, principalmente em seu último livro Capital e Ideologia, o economista francês Thomas Piketty mostra que os regimes baseados na desigualdade não são irreversíveis, são construídos a partir de uma narrativa “proprietarista, empresarial e meritocrática”, de uma “sacralização quase religiosa da propriedade” que anima nossas sociedades e bloqueia a visão de uma nova utopia socialista.
Pelo discurso neoliberal, as desigualdades antes eram despóticas e arbitrárias, mas hoje vivemos em democracia e as desigualdades são justificadas, porque todos teriam acesso ao mercado e à propriedade. Esse discurso da “ideologia da desigualdade” alimentou o aumento das desigualdades em todo o mundo a partir dos anos 80 do século passado. Entretanto, algumas experiências de desenvolvimento no pós guerra mostraram que foi pela igualdade e investimento em educação que se obteve a prosperidade coletiva, e não pela sacralização da propriedade e da desigualdade, que, no dizer de Piketty, impede a resolução de graves problemas como o aquecimento global e se constitui em grande perigo para as sociedades humanas.
À medida em que a economia global sucumbe ao Covid-19, surge no horizonte o espectro do capitalismo de Estado. Nos EUA, os despejos de inquilinos estão sendo adiados, a folha de pagamento de algumas empresas vai ser garantida pelo Estado, e o governo Trump, entre outras medidas, obrigou a General Motors a fabricar respiradores. A reconversão industrial surge como alternativa! E no Reino Unido, já estão discutindo renacionalizar companhias aéreas em dificuldades e outras empresas.
Desde a eleição de Donald Trump nos EUA e a votação do Brexit no Reino Unido, os arautos do livre mercado foram deslocados do poder ou forçados a aceitar uma doutrina diferente, em geral a de uma forma autoritária e nacionalista de neoliberalismo. O capital nacional passou a preponderar. O símbolo foi o America First de Trump. O caso brasileiro é exceção, escapa a essa lógica nacionalista e se curva às empresas multinacionais e, no plano político, aos interesses dos EUA.
Na realidade, o Estado sempre está a serviço do capital privado. O capitalismo nunca fica sem o Estado, destinado a exercer funções não lucrativas de interesse público. Com a atual crise, porém, o Estado vai assumir funções econômicas antes lucrativas que, depois da pandemia, podem voltar a sê-lo. Em muitos lugares, esse capitalismo de Estado persistirá, apesar da pressão do setor privado.
Um bom exemplo é o caso de Singapura, considerado agora como modelo econômico pós-Brexit para o Reino Unido. O governo de Singapura continua a ser um dos principais acionistas da indústria e comércio, possui empresas de sucesso e competitivas. Em vários outros lugares, empresas estatais são bem administradas e competitivas, contrariando a imagem tradicional de paquidermes burocráticos. Empresas estatais e agências de investimento controladas pelo Estado, como fundos soberanos, estão se multiplicando e crescendo em todo o mundo.
A acumulação global de capital é impulsionada cada vez mais pelo capital centralizado nas mãos do Estado. A batalha do governo Trump com a China não é motivada por algum desejo de proteger a ordem internacional baseada em regras liberais. Pelo contrário, é uma batalha do capital nacional. A China deixou de apenas montar mercadorias e passou a projetar e produzir de forma competitiva, abalando o antigo equilíbrio da economia mundial. A grande propriedade estatal chinesa é necessária para garantir o domínio político no plano doméstico e para expandir a integração de empresas chinesas no comércio internacional.
Nos EUA, isso é alcançado hoje por uma forma de nacionalismo econômico na política comercial, industrial e de investimentos, visando ao controle exclusivo das inovações científico-tecnológicas. Com exceção dos países “colonizados”, as burguesias nacionais no Ocidente estão percebendo a necessidade do Estado para competir na economia global. O Brasil – repita-se – é caso único de uma extrema direita que rejeita o nacionalismo e se coloca à disposição dos interesses norteamericanos. O patriotismo e a soberania dos militares brasileiros são de caráter exclusivamente territorial, sem nenhum conteúdo econômico.
Os países estão fechando fronteiras, mas isso não impede a entrada do coronavirus, que dispensa passaporte. A solidariedade e cooperação internacional são imprescindíveis para sair da crise. O nacionalismo econômico vai ter vida curta. O mundo é um sistema interdependente. A globalização interligou as pessoas em toda parte. Não apenas no plano econômico-financeiro, dominado hoje pelo mercado financeiro. Isso é visível na comunicação eletrônica, cultural, turística e nos impactos ambientais e sociais da produção econômica. Alguns instrumentos e instituições internacionais já foram construídas em âmbito transnacional, como a ONU, a União Europeia etc. Embora não exista uma governança global efetiva, essas instituições têm peso político e às vezes força jurídica em suas recomendações, mas a soberania nacional tem se revelado um obstáculo para assumir medidas de proteção de direitos, da saúde, do meio ambiente, entre outras, que afetam toda a humanidade. Por outro lado, os interesses imperialistas frequentemente ignoram tais recomendações internacionais.
No Brasil, o presidente e seus filhos perceberam que a crise econômica pode derrubar o Governo e resolveram seguir a orientação do seu guru astrólogo que mora nos EUA: a pandemia não existe. O Governo dobrou a aposta e ficou isolado, contra a Ciência, o Congresso, os Governadores, a sociedade civil e a maioria da opinião pública. Provavelmente, vai manter o apoio de seu público irracional, que deve girar hoje em torno de 25% do eleitorado.
Os Governadores ensaiaram uma desobediência civil com cuidado, porque dependem de verba federal. O Governador de Goiás, porém, aliado de primeira hora de Bolsonaro, talvez por ser médico, pegou pesado e disse que não valem os decretos federais em Goiás, onde quem manda é ele, Ronaldo Caiado, governador. Foi até agora o caso mais ostensivo de desobediência civil no plano institucional, mas o presidente da Câmara dos Deputados, do Senado e o STF já colocaram diversas vezes limites ao desvario presidencial.
A crise do Covid-19 mudou o discurso de vários economistas liberais que defendiam ou flertavam com o Estado mínimo e o mercado máximo. Antes apoiavam o corte de recursos orçamentários para a área social – saúde, educação, pesquisa científica, meio ambiente etc. – em nome do equilíbrio nas contas públicas. Hoje, abandonaram o dogma liberal da “mão invisível do mercado”, de repente tornaram-se keynesianos e passaram a apoiar o aumento dos gastos sociais do Estado. Alguns neoliberais até se autodenominaram de “esquerda” para se distanciarem do sectário governo de extrema direita.
No momento, os neoliberais estão engolindo calados. Mas, quando a pandemia for controlada e o mercado voltar a funcionar normalmente, os profetas do sacrossanto livre mercado retornarão vingativos, e os defensores do capitalismo de Estado e da social democracia serão golpeados com fúria.
O retrocesso social imposto pelo atual Governo - principalmente o teto de gastos públicos, a injusta reforma da Previdência, a perda de direitos trabalhistas, a redução no poder aquisitivo do salário mínimo e Bolsa Família - diminuiu a renda e o consumo da população ao mesmo tempo em que aumentou o lucro dos bancos e dos rentistas. Tudo isso começa a ser questionado e abalado em tempos de pandemia.
Assim, como em toda a parte, o Brasil está sendo levado a aumentar gastos sociais e a enfraquecer o neoliberalismo. As medidas ainda são tímidas, mas a realidade vai se incumbir de forçar o Governo a assumir uma atitude mais pró ativa. O Estado tende cada vez mais a ocupar a função de principal agente econômico, já que o mercado não investe em atividades produtivas que criam riqueza e emprego, investe principalmente no mercado financeiro. O golpe sofrido pelo neoliberalismo pode não ser mortal, ele pode retornar depois da pandemia, mas voltará enfraquecido e provavelmente não poderá mais cortar os investimentos do Estado por 20 anos, como ocorreu no Brasil, caso único no mundo.
Imposto sobre grandes fortunas, elevação do ridículo imposto sobre herança, implantação da renda básica ou universal de cidadania, taxação dos lucros e dividendos, são propostas urgentes para reduzir a desigualdade e promover um desenvolvimento socialmente mais justo. Estavam esquecidas, reprimidas pelas classes dominantes e sua mídia. Retornam agora como espectro do capitalismo de Estado, assombrando o neoliberalismo do livre mercado.
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