sexta-feira, 15 de maio de 2020

Ernesto Araújo e o nazismo no Brasil

Por Ricardo Evandro S. Martins, no jornal Le Monde Diplomatique-Brasil:

Em Bertioga, cidade litorânea de São Paulo, foi encontrado em 1979 o corpo do austríaco Wolfgang Gerhard, com sinais de afogamento. Mas somente em 1985 é que se descobriu que não se tratava de um imigrante austríaco. Sua verdadeira identidade era Josef Mengele, também conhecido como “O Anjo da Morte” [1]. Mengele foi capitão da SS e o médico que realizava no campo de concentração de Auschwitz experimentos, com cirurgias experimentais sem o uso de anestesia. Ele viveu no país por 35 anos, usando diversos nomes falsos [2]. Tinha morado em outra cidade no Brasil, Nova Europa. No final de sua vida foi para um lugar mais afastado, com o medo paranoico de ser capturado pela polícia de Israel, como havia ocorrido com Adolf Eichmann anos antes na Argentina.

Além da participação brasileira na Segunda Guerra Mundial, ao lado dos Aliados, e, antes ainda, além das expedições nazistas na Amazônia brasileira nos anos 1930 em minha cidade, Belém do Pará [3], o nazismo intercruza a história recente do Brasil também nesse episódio, quando um dos mais nefastos cientistas nazistas escondeu-se das possíveis consequências dos seus crimes de guerra no meu país. Recordei desse fato no momento em que terminei de ler o artigo do ministro das Relações Exteriores do Brasil, o chanceler Ernesto Araújo, em seu blog pessoal. 

Intitulado de Chegou o comunavírus, o texto cita dois filósofos contemporâneos importantes para o debate da esquerda, Slavoj Zizek e Giorgio Agamben, que têm se pronunciado sobre as possíveis implicações políticas da atual pandemia. Araújo os citou para fundamentar que acredita que a atual crise poderia ensejar um movimento político contra a democracia liberal, justificando, assim, o uso de medidas excepcionais semelhantes às do Estado nazista.

De fevereiro até o momento em que escrevo este ensaio, Agamben publicou nove artigos sobre a pandemia de Covid-19. Logo no primeiro, denominado de A invenção de uma pandemia, ele causa polêmica na época ao chamar as ações do governo da Itália no início do contágio de “medidas de emergência frenéticas, irracionais e completamente injustificadas”. Ele questionou o motivo pelo qual a mídia e as autoridades estariam “trabalhando para espalhar um clima de pânico, causando um verdadeiro estado de exceção, com sérias limitações de movimentos e uma suspensão do funcionamento normal das condições de vida e de trabalho em regiões inteiras?”. Baseado na posição do Conselho de Pesquisa Italiano (CNR), Agamben viu uma desproporcionalidade no tratamento da “gripe” que, até então, parecia “normal” [4]. Desde então, Agamben foi atacado por diversos filósofos, como Jean-Luc Nancy e Roberto Esposito. Entretanto, em sua penúltima manifestação sobre o tema, ao ser perguntado se “estamos vivendo, com esta reclusão forçada, um novo totalitarismo?”, Agamben insiste que “de muitos lados estamos agora formulando a hipótese de que estamos realmente vivendo o fim de um mundo, o das democracias burguesas, baseadas em direitos, parlamentos e divisão de poderes, que está dando lugar a um novo despotismo [5]”.

Como se vê, Araújo e Agamben parecem estar de acordo com relação à potencialidade do estado de exceção, exercido por medidas emergenciais pelos Estados-nação, no combate à proliferação rápida da Covid-19. Mas, sobre o caso brasileiro problematizado neste ensaio, relacionando a atual pandemia, Agamben e o artigo de Ernesto Araújo, minha hipótese central pode ser resumida do seguinte modo: a aparente preocupação do governo Bolsonaro, expressa no artigo de seu ministro, não pode ser entendida como uma posição político-ideológica contrária ao estado de exceção e ao autoritarismo, como se, por acaso, estivessem mesmo em acordo com as teses de Agamben. É preciso ir mais a fundo na singularidade política e histórica brasileira. Sobre isso, posso iniciar minha argumentação em favor da hipótese de que o que mais se teme com o isolamento social no Brasil é a regressão grave do PIB, além da meta de redução do déficit fiscal, não importando o custo político para tanto [6].

Antes é preciso dizer, contudo, que Agamben não está errado: há sim o risco iminente de que governos eleitos democraticamente assumam medidas excepcionais, abusando de seus poderes de emergência e, o pior, não retrocedendo ao fim da pandemia. Mas o que Agamben talvez não saiba é que, pela nossa experiência republicana, o risco de golpe nada tem de excepcional – para ser justo, o próprio Agamben sabe que o estado de exceção tem se tornado regra, pelo menos desde a Primeira Guerra [7]. E, no Brasil, sabemos muito bem desse risco. Basta lembrar o longo histórico de governos realizados por decretos-lei ou golpes militares [8] com a coincidente justificativa de temor de uma revolução comunista, como em 1937 e 1964.

Assim, é possível perceber como a posição de Agamben talvez não dê conta da singularidade do caso brasileiro e do modo como o governo atual lida com a crise pandêmica. Os discursos autoritários e a política do “deixar morrer” do governo Bolsonaro se disfarçam de ideologia neoliberal, que só aparentemente está interessada na defesa das liberdades individuais dos cidadãos brasileiros nesta crise do coronavírus. As categorias do projeto Homo sacer de Agamben foram usadas por Araújo como um recurso de prestidigitação daquilo que realmente pratica Bolsonaro, seja por suas declarações apologistas à última ditadura civil-militar brasileira (1964-1985), seja pelo seu exercício de soberania de política de morte. Bolsonaro prefere relaxar as medidas de isolamento social, optando pela estratégia de “imunidade de grupo”, deixando que ocorra “contaminação total [9]” dos cidadãos brasileiros, para que haja mais rapidamente o ganho de imunidade em massa, mesmo que isso possa causar milhares de mortes. O discurso é pela liberdade e contra as restrições sociais feitas pelos estados e municípios brasileiros, mas, em verdade, o deixar morrer por Bolsonaro significa deixar à morte velhos, pessoas com comorbidades, e uma população sem acesso à atendimento médico ou mesmo sem acesso à água potável e ao saneamento básico [10].

Para Bolsonaro e Araújo não são a ciência e tampouco a OMS que devem dar as diretrizes da crise pandêmica em que estamos vivendo agora no Brasil, mas sim os clamores do mercado e de sua nova razão governamental, a razão neoliberal, de origem austríaca [11] e norte-americana [12], de se manter o consumo alto e a livre atividade do homo oeconomicus. Assim, o caso brasileiro é muito diferente do que o mais recente texto de Agamben defende. No Brasil, capitalismo e ciência (médica) não andam juntas. Aqui, a “religião médica” [13] e a “religião capitalista” resistem uma à outra, sendo, em verdade, a ciência médica a “religião” que, por enquanto, tem impedido e deflagrado a máquina tanatopolítica do neoliberalismo autoritário latino-americano.

Enquanto Agamben desconfia dos dados de mortes na Itália, bem como desconfia da ciência quando se intromete em assunto éticos e políticos, pois tem tornado-se cada vez mais uma “nova religião” [14], talvez por causa do trauma da experiência europeia com a Shoah, o erudito filósofo italiano parece temer muito mais a ciência, que sempre corre o risco de ser tanatoplítica, como foi a ciência do “O Anjo da Morte”. Enquanto, nós, brasileiros, por nossa condição de ex-colônia, experiência de barbárie, tememos mais o vendaval do progresso, que arrasta o “Anjo da História” [15]. Por fim, diria que, localizados na periferia do capitalismo e da civilização moderna, entre as ruínas que o progresso neoliberal deixa estão os corpos empilhados sem velório na cidade de Manaus, os mortos nos hospitais e nas casas de Belém, todos vítimas do coronavírus, enterrados, talvez, em cima dos corpos indígenas e pretos, vítimas da colonização, da ditadura e, hoje, do neoliberalismo, que também contamina cada vez mais as terras indígenas e quilombolas.

* Ricardo Evandro Santos Martins é professor Adjunto de Teoria do Direito da Faculdade de Direito e do PPGD da Universidade Federal do Pará (UFPA) e membro do grupo de pesquisa CESIP-Margear e do GT Filosofia Hermenêutica da Anpof. E-mail: ricardoevandromartins@gmail.com.

Notas

1 POSNER, Gerald L.; WARE, John. Mengele: A História completa do Anjo da Morte de Auschwitz. São Paulo: Cultrix, 2019, p. 66

2 BERNARDO, André. Josef Mengele: os 40 anos da morte do médico nazista que viveu 17 anos em SP. 02.05.2020. BBC News Brasil. 16.nov.2019. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/brasil-47121871

3 DIETRICH, Ana Maria. Nazismo tropical? O partido nazista no Brasil. Tese de doutorado (Doutorado em História). Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo. São Paulo, p. 272. 2007.

4 AGAMBEN, Giorgio. L’invenzione di un’epidemia, Quodlibet, 22.fev.2020a.

5 AGAMBEN, Giorgio. Nuove riflessioni. Quodlibet, 22.abr.2020a.

6 Sobre isto, por causa do lockdown, o FMI prevê a pior recessão econômica desde a Grande Depressão, de cem anos atrás (BBC, 2020). ALEGRETHI, Laís. PIB do Brasil vai cair cinco vezes mais que média dos emergentes em 2020, prevê FMI. BBC. News Brasil em Londres.

7 AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. São Paulo: Boitempo, 2010, p. 19; 25; 33.

8 GOMES, Ana Suelen Tossige; MATOS, Andityas. O estado de exceção no Brasil republicano. Revista Direito e Práxis, Rio de Janeiro, Vol. 08, N.3, 2017, p. 1760-1787.

9 AMADO, Guilherme. Bolosnaro forçou abraço com Caiado: ‘Cidadão tem que ser contaminação total’. Época. 13.abr.2020. Disponível em: https://epoca.globo.com/guilherme-amado/bolsonaro-forcou-abraco-com-caiado-caiadao-tem-que-ser-contaminacao-total-24367552

10 Segundo dados do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), somente 53,4% da cidade de Belém tem saneamento adequado. IBGE. Indicadores sociais municipais. Disponível em: https://cidades.ibge.gov.br/brasil/pa/belem/pesquisa/23/25124

11 A referência aqui é à Escola Austríaca, representada pelos economistas Ludwig von Mises e Friedrich August von Heyek.

12 Aqui me refiro tanto à escola econômica da Universidade de Chicago, representada por George Stigler e Milton Friedman, quanto pelos conhecidos como Chicago boys, os economistas neoliberais que auxiliaram o plano econômico do ditador chileno, General Augusto Pinochet.

13 AGAMBEN, Giorgio. La medicina come religione, Quodlibet, 2.mai.2020. Disponível em: https://www.quodlibet.it/giorgio-agamben-la-medicina-come-religione

14 AGAMBEN, Giorgio. L’invenzione di un’epidemia, Quodlibet, 22.fev.2020. Disponível em: https://www.quodlibet.it/giorgio-agamben-l-invenzione-di-un-epidemia. Consultado em 30.abr.2020b

15 BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito de História. In: O anjo da história. Belo Horizonte: Autêntica, 2016, p. 14.

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