terça-feira, 7 de julho de 2020

Augusto Aras: O cão de guarda de Bolsonaro

Por André Barrocal, na revista CartaCapital:

Um pastor maremano abruzês, raça de origem italiana, surgiu no mês passado no Palácio da Alvorada e os inquilinos, Jair e Michelle Bolsonaro, resolveram adotá-lo.

O cachorro tinha dono, um frentista de 25 anos, e nome, Zeus, mas o casal não sabia.

Antes de o frentista ir buscá-lo de volta em 30 de junho, após ver umas fotos na internet, o clã presidencial batizou o pet de Augusto.

Curioso.

É o nome do procurador-geral da República escolhido por Bolsonaro.

Augusto Aras é o “PGR de estimação” do presidente, brincam alguns colegas.

Tem fidelidade canina e postura de cão de guarda do padrinho.

“Ele procura cada vez mais defender o livre mercado e o governo federal nessas questões”, disse Bolsonaro em 28 de maio, ao prometer indicá-lo para o Supremo Tribunal Federal um dia.

É longa a lista de serviços de Aras ao presidente.

Fez vista grossa para a atitude criminosa de Bolsonaro na pandemia.

Antes de recuar, chancelou a tese de que o artigo 142 da Constituição de algum modo respalda um golpe militar.

Tentou brecar o inquérito do Supremo sobre milícias digitais bolsonaristas, episódio que provocou uma rebelião de procuradores e culminou em um manifesto em favor de o cargo ser ocupado por alguém da lista tríplice eleita pela categoria, o que não ocorreu com Aras.

“O clima é de guerra” no Ministério Público, diz o ex-ministro da Justiça Eugênio Aragão, subprocurador-geral aposentado.

O “PGR de estimação” tem um lado nada dócil.

Quando se trata dos inimigos do presidente, vira um perdigueiro.

Que o digam Sérgio Moro, ex-ministro da Justiça, e Wilson Witzel, governador do Rio de Janeiro. Sobretudo, o ex-juiz, visto por Bolsonaro como rival na eleição de 2022.

Ao investir contra Moro e declarar guerra à força-tarefa da Operação Lava Jato em Curitiba, Aras agrada de quebra ao Centrão, bloco dos partidos fisiológicos que aderiram ao governo em troca de cargos e prometem proteger Bolsonaro de um impeachment.

Tudo isso ao mesmo tempo em que tenta criar uma poderosa unidade anticorrupção em Brasília.

“Crime do colarinho-branco é sempre usado contra adversário político”, comenta um subprocurador.

Na ofensiva contra Moro e a Lava Jato, Aras quer mexer numa história capaz de acertar a Globo, cuja concessão televisiva vence em 2022 – Bolsonaro ameaça não a renovar, se houver uma vírgula fora do lugar.

Nesse enredo, surge a Mossack & Fonseca, escritório especializado em abrir empresas e contas em paraísos fiscais, protagonista, em abril de 2016, de um escândalo mundial, os “Panamá Papers”.

Em um ofício de 13 de maio a Deltan Dallagnol, chefe da força-tarefa curitibana, Aras pede acesso ao acervo da Lava Jato.

Vários despachos de 2015 de Moro autorizaram dividir o material com tribunais.

Entre os conteúdos genéricos requeridos, há menção específica a “dados de apreensão da empresa Mossak-Fonseca, com as devidas atualizações, até a data de atendimento da presente requisição”.

O escritório foi alvo da polícia, em janeiro de 2016, por ordem de Moro.

A Lava Jato descobrira que no prédio do Guarujá do triplex do Lula que não é do Lula havia um apartamento em nome de uma firma offshore registrada nos Estados Unidos pela Mossack & Fonseca. Bingo.

O imóvel de Lula devia ter por trás paraíso fiscal, lavagem de dinheiro.

Dois funcionários do escritório foram presos, Ricardo Honorio Neto e Renata Pereira Britto, mas seus chefes, a panamenha Maria Mercedez Riano Quijano e o venezuelano Luis Fernando Hernandez Rivero, fugiram do País.

Neto e Renata ficaram pouco tempo na cadeia e foram soltos por Moro, fora do padrão curitibano de trocar cárcere por delação.

Seis meses depois, um relatório do delegado federal Rodrigo Luís Sanfurgo de Carvalho apontava crimes da Mossack & Fonseca, então no centro dos “Panamá Papers”.

Moro, Dallagnol e cia. nunca importunaram o escritório. Por quê?

Como CartaCapital relatou à época, a batida da Lava Jato achara na Mossack & Fonseca papelada sobre uma firma ligada à família Marinho, da Globo.

Era a Vaincre LLC, de Alexandre Chiapetta de Azevedo, ex-genro de João Roberto Marinho, um dos três filhos de Roberto Marinho.

A Vaincre era sócia da Agropecuária Veine, que por sua vez tinha um imóvel em Paraty (RJ) que seria usado pela família global e era alvo de processo por crime ambiental.

A Agropecuária também era dona de um helicóptero utilizado pelos Marinho.

Na papelada sobre a Vaincre, a Lava Jato encontrou o nome de uma empresa, a Glem Participações, da qual Azevedo era sócio e que tinha contratos com o governo do Rio afiançados pela filha de João Roberto, sua ex-mulher Paula.

Explicado o desinteresse de Moro e Dallagnol pela Mossack & Fonseca?

E o interesse de Aras (Bolsonaro)?

O procurador-geral alveja Moro desde que, por desavenças com o presidente sobre o comando da Polícia Federal, o ex-juiz demitiu-se do governo.

Ao pedir ao Supremo um inquérito sobre o divórcio litigioso, apontou uma lista de crimes potenciais que incluía injúria e calúnia.

Estes dois teriam sido cometidos por Moro, em alegações sobre a troca no comando da PF.

Diante do pedido do ex-juiz para a corte divulgar o vídeo de uma reunião ministerial de 22 de abril de Bolsonaro, Aras disse ao tribunal que era contra.

E tascou: “Não compactua com a utilização de investigações para servir, de forma oportunista, como palanque eleitoral precoce das eleições de 2022”.

O procurador-geral retomou conversas sobre uma delação com um sujeito que acusa a Lava Jato de comercializar facilidades com investigados.

Trata-se de um ex-colaborador da Odebrecht, Rodrigo Tacla Duran, refugiado na Espanha, onde tem cidadania, quando sua prisão foi decretada por Moro em 2016.

Preso lá, teve a extradição negada, graças à cidadania.

Em 2017, disse à Folha de S. Paulo que o comércio de facilidades era intermediado por um advogado, Carlos Zucolotto Jr., amigo de Moro e ex-sócio da mulher do ex-juiz, Rosângela.

Diante da retomada do assunto por Aras, Moro declarou “perplexidade e indignação”.

A cobrança de Aras de acesso às informações da Lava Jato foi reforçada nos últimos dias pela subprocuradora designada para tomar conta da operação na Procuradoria-Geral.

Lindora Araújo é “pessoa-chave” na equipe do “xerife”, uma “bolsonarista”, conforme colegas. Concorda com a tese de que a pandemia está mais para “gripezinha”. Ao dirigir-se à sede do Ministério Público Federal no Paraná, em 24 de junho, estava sem máscara e ficou uma fera ao ser forçada a usar uma pela chefe da repartição, a procuradora Paula Cristina Thá.

Lindora havia telefonado na véspera para Paula, avisado que iria a Curitiba e gostaria de falar com ela e Dallagnol.

Na reunião, pediu o acervo completo da operação e comentou ser preciso ver como lidar com dados sigilosos, pois os queria também.

Numa pista de seus propósitos, comentou que a corregedora-geral, Elizeta Maria Paiva Ramos, só não fora a Curitiba por razões de saúde.

À noite, Dallagnol reuniu o time via web e decidiu peitar Lindora: nada sigiloso seria dado.

Em seguida, ligou para Elizeta e soube que não havia sindicância da Corregedoria sobre a força-tarefa.

Agora há, aberta em 29 de junho para apurar os fatos ocorridos na ida de Lindora a Curitiba.

Em 25 de junho, houve uma nova reunião dela com Paula e Dallagnol, da qual participaram integrantes da área de informática do MP.

A auxiliar de Aras estava revoltada com a conferência via web de Dallagnol e o telefonema a Elizete.

Piorou ao ouvir que só teria dados sigilosos mediante justificativa formal.

Cobrou que a recusa fosse colocada em papel e desistiu do papo.

Antes do fim, o delegado federal Marcos Ferreira dos Santos, que tinha viajado com ela na condição de Secretário de Segurança Institucional da Procuradoria-Geral, perguntou aos anfitriões: e aqueles “três equipamentos de gravação de voz” comprados?

Aras parece desconfiar de grampos ilegais e telefonemas de teor idem da força-tarefa paranaense.

Um doleiro preso, Dario Messer, diz ter pago mesada a um integrante da Lava Jato em Curitiba, o procurador Januário Paludo.

A aquisição de equipamento de gravação ocorreu em fevereiro de 2016, com grana da Procuradoria-Geral. Quem vendeu foi a Trendcom Teleinformática. A força-tarefa havia requisitado a compra com a alegação de que seus integrantes sofriam ameaças.

Em ofício a Aras em 26 de junho, Paula Thá contou que três gravadores tinham sido oferecidos, mas só um foi adquirido.

E que as gravações eram solicitadas individualmente pelos usuários de cada ramal.

Um dos solicitantes foi Carlos Fernando dos Santos Lima, estrela da Lava Jato.

Ele deixou a força-tarefa em 2018, mas, segundo Paula, ninguém se lembrou de pedir o fim das gravações do ramal dele.

Quem também se interessou por conteúdos telefônicos foi o escolhido de Aras para chefiar a Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão no lugar de uma subprocuradora progressista, Deborah Duprat.

Quatro servidores que trabalhavam com Deborah devolveram os celulares funcionais logo que Carlos Vilhena tomou posse, em 25 de maio. Os aparelhos estavam vazios, sem agenda de números e mensagens de WhatsApp.

Em 27 de maio, Vilhena pediu ao secretário de Tecnologia e Informação da Procuradoria-Geral, Darlan Dias, a recuperação da agenda de contatos e das mensagens escritas. Em vão. Seria quebra de sigilo, só com ordem judicial. Qual o interesse de Vilhena?

Perseguir Deborah e equipe, como suspeitam colegas? Segundo sua assessoria, seria só para manter o fluxo de trabalho.

E o governador do Rio, seria um perseguido, neste caso por interesse de Bolsonaro?

É graças a investigações de Lindora que Witzel agora responde a um processo de impeachment na Assembleia.

O inquérito sobre fraudes em gastos estaduais contra a Covid-19 foi conduzido pela subprocuradora.

Ela recebera cópias de notícias de jornal levadas por um deputado federal bolsonarista, Otoni de Paula, do PSC.

Nas notícias, segundo advogados de Witzel, inexistia ligação direta do governador com irregularidades, motivo para o inquérito ficar com promotores cariocas.

Lindora escreveu, no entanto, em sua decisão que a “contratação desse valor dificilmente aconteceria sem o aval do governador do estado, ainda que ele não assine os documentos”, ainda mais numa crise sanitária mundial. E abraçou a investigação.

O inquérito foi relâmpago.

Nasceu em 23 de abril, chegou ao Superior Tribunal de Justiça, corte que julga governadores, em 12 de maio e, duas semanas depois, policiais batiam na casa de Witzel atrás de provas.

A Operação Placebo havia reunido um grampo telefônico a sugerir que Witzel revogara uma decisão para liberar negócios de uma certa empresa com o estado.

A Dpad tem contrato com a banca advocatícia da esposa de Witzel, Helena, conforme papelada da Justiça do Rio.

É ligada a um empresário enrolado, Mário Peixoto. Dois ajudantes dele conversaram por e-mail sobre pagamentos a Helena, conforme descobriu a Polícia Federal, que apreendeu na casa de Witzel o celular dele, a pedido de Lindora e com aval do STJ.

Curioso: no divórcio litigioso de Bolsonaro e Moro, Aras disse ao Supremo que era contra confiscar os aparelhos presidenciais.

Lindora não foi a primeira escolha de Aras para cuidar da Lava Jato.

Chegou à função após o pedido de demissão de José Adônis Callou de Araújo Sá, em janeiro.

Sá durou três meses no cargo e zarpou. Seu perfil sinalizava o que Aras tinha em mente para os lavajatistas: ex-integrante do Conselho Nacional do Ministério Público, órgão fiscalizador de procuradores, e do Conselho Nacional de Justiça, o de juízes.

Com Lindora, Aras havia recrutado o primo Vladimir, procurador atuante na Lava Jato no tempo de Rodrigo Janot, e Raquel Branquinho, principal auxiliar criminal de Raquel Dodge, sua antecessora. Era uma tentativa de pacificar a PGR.

Não deu. A dupla rejeitou a convocação.

Sá estará até 2021 no Conselho Superior do Ministério Público Federal, o órgão decisório máximo da corporação convertido, segundo um subprocurador, em arena da “guerrilha” contra Aras.

O conselho tem poderes para frear o “xerife”. Discute hoje a ideia de criar uma poderosa Unidade Nacional de Combate à Corrupção e ao Crime Organizado, a Unac. Esta concentraria todos os casos de corrupção do País. Seria o fim das forças-tarefa.

Para Aras, as forças-tarefa, como a da Lava Jato em Curitiba, resvalam para a “ilegalidade, porque clandestinas”.

Não deixa de ter razão.

Uma nova revelação da Vaza Jato mostrou que, em 2016, Dallagnol tentou pedir diretamente aos EUA, em uma burla ao Ministério da Justiça, como mandam as normas, uma extradição.

“Não é conveniente passar pelo Executivo”, escreveu a Vladimir Aras, então chefe da área internacional da PGR.

Resposta: “A questão não é de conveniência. É de legalidade, Delta”.

Mais? Em uma denúncia de dezembro de 2019 à Justiça por corrupção contra políticos num caso da cervejaria Petrópolis, há uma planilha em que os nomes dos presidentes da Câmara, Rodrigo Maia, e do Senado, Davi Alcolumbre, aparecem disfarçados, com o uso de outros sobrenomes deles (Rodrigo Felinto e David Samuel).

Tentativa de enganar a Justiça e investigar políticos com foro privilegiado? Ou erro, como alega o pessoal da Lava Jato?

A resposta depende da interpretação do perdigueiro Augusto Aras.

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