Por Sueli Scutti
Refugiar-se em um barril de vinho para evitar contágio pelo coronavírus e ao mesmo tempo aproveitar o isolamento da quarentena para converter em livro suas observações sobre os acontecimentos do cenário pandêmico. Essa foi a decisão do escritor António Paixão quando a epidemia chegou a estas plagas, em 2020. Dessa opção inusitada surgiram crônicas e contos que misturam ficção e realidade, recheados de humor cáustico e pitadas de ironia que permeiam os mais de 30 capítulos de “Annus Horribilis – 2020 – Escritos da Barrica”, lançado em 15 de abril pela editora Observador Legal.
Paixão é o heterônimo antifascista, boêmio, comunista e corintiano do advogado, jornalista e professor Durval de Noronha Goyos Jr., que se vale de pseudônimos no ambiente literário desde os anos 1970. Na mistura de real e imaginário, ele se apropria na obra da máxima “in vino veritas” e, ao se recolher ao grande tonel nas vinícolas de São Roque, interior paulista, observou passo a passo o desencadear do surto virótico enquanto protegia a própria saúde. No deleite dos vinhos, ele tece crítica mordaz à (não) gestão da crise por parte do governo central do Brasil, ao abordar a forma como a pandemia vem sendo (mal) administrada.
Como um tipo de diário, ele vai contando e interligando fatos, verídicos ou fantasiosos, do país e do mundo, bem como relatando a sua própria rotina de confinamento, numa mistura que às vezes confunde e noutras faz o leitor se enxergar no Brasil surreal dos tempos atuais. “Os contos são trabalhos de ficção literária, com breves intercorrências na realidade. Já as crônicas também por vezes têm elementos ficcionais, porque são obras de um escritor fictício”, ele diz.
Com observação política acurada e crítica incisiva ao neofascismo, muitas vezes em forma de escracho, Paixão usa a arma das palavras para o combate à desinteligência que descreve em mais de 300 páginas, desde o início da quarentena até a imbecilidade aventada pela autoridade genocida de que os cidadãos que tomassem vacina contra o vírus se transmutariam em jacarés.
Da embriaguez de seu tonel, o escritor vê tudo, de Jesus na goiabeira ao negacionismo da gripezinha, dos embates sobre aquisição de vacinas e suplementos ao descontrole total da doença, dos pseudo-auxílios aos miseráveis à crua realidade que deixa cidades arrasadas por mortes e pobreza ocasionadas pelos efeitos do coronavírus.
Com prefácio do poeta e jornalista Adalberto Monteiro, integrante do Conselho Curador da Fundação Maurício Grabois, “Annus Horribilis” – à venda pelos sites das editoras Observador Legal e Anita Garibaldi – é um documento literato de questionamento político e contraponto às negações e às certezas de terra plana. É um trabalho que, mesmo com as veias abertas da realidade brasileira, ainda faz rir e, ao rir, questionar – por que eu estou rindo?
“É um livro de combate. E desde Cervantes se soube que o humor é uma arma tão eficaz quanto a espada. António Paixão demonstra que a alegria, a ironia, o escárnio, são, por vezes, punhais mais eficazes que as armas convencionais”, escreve Monteiro no prefácio. Em outro trecho ele diz: “Este livro, ou esta adaga, como se queira, entre tantos aprendizados, apresenta-nos a lição de que o neofascismo não se enfrenta com a polidez de datas vênias ou tapas de luvas de pelica. Para esmagar o fascismo como a um inseto, parafraseando Carlos Drummond de Andrade, é necessário que a resistência tenha no seu arsenal a contundência da verdade e a virulência do escracho”.
Eclético, Durval de Noronha Goyos Jr., o inventor de António Paixão, tem mais de 400 livros em acervos de bibliotecas acadêmicas nos seis continentes, conforme a WorldCat, com temas do universo do direito, relações internacionais, lexicografia, história e economia. Também escreve poesia, romances e biografias. Em 2020, lançou “O Escudeiro de São Jorge – Flavio La Selva e a Gaviões da Fiel”, publicado pela Observador Legal e apresentado em Portugal, na Feira do Livro de Lisboa, na Festa do jornal Avante e na Embaixada de Cuba. O livro é biografia do fundador da torcida organizada do Corinthians e foi escrito em parceria com Wanda La Selva, irmã do biografado.
Antes, Noronha havia lançado “O Crepúsculo do Império e a Aurora da China” (2012); “A Campanha da Força Expedicionária Brasileira pela Libertação da Itália” (2013); “Introdução à Revolução Cultural na República Popular da China: aspectos econômicos, sociais e políticos” (2016); “Os Monges Guerreiros de Goyos e a Ordem do Hospital em Portugal” (2018); e “A Constituição de Cuba de 2019 à luz do direito comparado” (2020).
Na pele de Paixão, em anos recentes ele havia publicado “Shanghai Lilly”(2017); e “A História da Literatura Erótica e Meus Contos Malditos” (2018).
No ambiente político, Durval de Noronha, especialista em direito internacional, é um dos subscritores da “Carta aos Juristas do Mundo”, de 2018. Outro documento que ele assina, como presidente da União Brasileira de Escritores, é “UBE pede a Tribunal Internacional para enquadrar Bolsonaro”, de 2016. Seu escritório jurídico foi o primeiro de origem latina a receber permissão do governo chinês para se estabelecer na cidade de Xangai, em 2001.
* Sueli Scutti é jornalista em São Paulo.
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