O escritor alemão Bertolt Brecht (1898-1956) ficou conhecido como um dos mais importantes dramaturgos do século 20, autor de Vida de Galileu, Mãe Coragem e seus filhos e Círculo de giz caucasiano, entre dezenas de outros trabalhos para o palco. Todos sabem da imensa força política de seu teatro. Sua poesia não fica atrás. O lirismo dos poemas não é menos cortante que os diálogos de suas peças. Para um homem que foi político em todos os momentos, talvez a maior força estivesse exatamente nos versos. Não há palavra mais necessária do que aquela que joga luz sobre a retórica do poder.
Em um poema do fim dos anos 1930, “Dificuldade de governar”, Brecht parece se antecipar ao patético espetáculo da CPI da Covid, descrevendo de forma premonitória a ação do ministro da propaganda e das relações exteriores, entre outras autoridades da República. Sob Bolsonaro, Wajngarten, Araújo e Pazuello parecem executar hoje o que seus colegas do duro ofício de governar tramavam às vésperas da Segunda Guerra, em plena ascensão do nazismo. Não deve ser fácil ser tão equivocado décadas depois, a ponto de merecer comparação tão deslustrosa. Para que se tornem aos olhos de todos os piores ministros de suas áreas em todos os tempos, os servidores brasileiros precisaram se esforçar.
Palavras de Brecht, na primeira parte do poema, na tradução de Paulo César de Souza: “Os ministros não cansam de dizer ao povo / Como é difícil governar. Sem os ministros / O grão de trigo cresceria para baixo, não para cima. / Nenhum pedaço de carvão sairia das minas / Se o Chanceler não fosse tão sábio. Sem o Ministro da Propaganda / Nenhuma mulher ficaria grávida. Sem o Ministro da Guerra jamais haveria uma guerra. Sim, se o sol se levantaria de manhã / Sem a permissão do Führer / é inteiramente discutível, e se o fizesse / Seria no lugar errado.” O terraplanismo, como se vê, tem história. O Galileu de Brecht segue atual.
Pazuello
Mas sigamos os ministros. Pazuello garantiu que o trigo nascesse na direção contrária. Sob sua gestão, os casos de covid se multiplicaram e as mortes seguiram escala vertiginosa. Como ministro da saúde, boicotou o conhecimento, aprovou protocolos inúteis e perigosos, não comprou vacinas, se cercou de militares tão incompetentes como ele em áreas técnicas e exibiu uma covarde lealdade ao presidente contra os interesses dos brasileiros.
Mesmo sabendo que faltava ar, demorou a agir em Manaus. Podendo pedir ajuda a vizinhos, preferiu se aferrar à lógica bélica da inimizade ideológica. Ainda assim, configurada a colaboração, eximiu-se do ato do agradecimento. Mal ministro, insistiu em ser má pessoa.
O general desmoralizou sua corporação, enfraqueceu o mito da eficiência dos militares, exibiu ausência banal de sentimento humano, se aferrando à burocracia para explicar seus atos. Como outro alemão, Eichmann. Ele, no entanto, não era mero cumpridor de ordens: estava no lugar das decisões. Seu depoimento na CPI seguiu a linha brechtiana: se esforçou para convencer que era muito difícil governar e, por isso, errou tanto. Não buscava compreensão, mas anular a crítica, como sempre fez quando era ministro e chamava de coletiva de imprensa suas aparições com declarações evasivas e, no limite, mentirosas e irresponsáveis, sem direito a perguntas.
Ernesto Araújo
Ernesto Araújo não deve nada ao chanceler de Brecht. Também se acha sábio, acredita que é capaz de fazer carvão sair das minas por força de suas convicções isolacionistas e que todos estão errados. Apenas ele é iluminado pela inspiração olavista de seus conceitos esquizofrênicos e isolacionistas em matéria de relações internacionais, comércio e ação concertada e racional das nações.
Ernesto não é honesto na avaliação de suas responsabilidades. Defendeu sua diplomacia, mesmo com as evidências do desastre que representou e ainda representa, deixando o país refém da estupidez do alinhamento trumpista, pernicioso sob Biden, e da oposição insensata ao maior parceiro comercial do país.
Como seu colega da saúde, também é dado a mentiras arrogantes, falso apego às normas e memória seletiva. Desdisse o que disse, negou o que tuitou e tentou rasurar o que escreveu sobre a China.
Iguala-se ao general logístico na bajulação a Bolsonaro e família, mesmo tendo sido escanteado sem dó nem piedade pelo ex-chefe. Também fez questão de virar as costas à Venezuela e reconhecer sua dívida com o país vizinho. Para ele, como para Pazuello, é melhor que brasileiros morram sem ar do que agradecer a um bolivariano por sua ação humanitária.
Deixou parte de sua atribuição em termos de negociação com laboratórios estrangeiros na mão de um arrivista despreparado como Wajngarten, que não entende de saúde, negociação e, sequer, de comunicação. Mas que parece esperto com dinheiro. Sua relação com Organização Mundial de Saúde, a princípio de crítica ideológica (“comunismo internacional”) e sem seguida de negacionismo sanitário, deixou o prejuízo irreparável na conta de vacinas que poderiam já estar sendo aplicadas nos braços de brasileiros. Tratou como problema resumidamente nacional o que é uma questão que afeta todo o planeta. Confundiu bem comum com comunismo.
Wajngarten
Já o Ministro da Propaganda do poeta surgiu redivivo e amedrontado entre senadores brasileiros. Wajngarten fez de tudo para afirmar seu poder em áreas que não lhe diziam respeito. Se o funcionário de Brecht garantia a gravidez das mulheres, o jornalista bolsonarista resolveu intermediar a compra de imunizantes.
Além de atrapalhar as negociações com os laboratórios e deixar a suspeita de interesses espúrios, não fez o que lhe cabia, que era informar a população sobre os cuidados necessários para enfrentar a pandemia. Como profissional de comunicação sempre foi agressivo com colegas e arrogante em relação à opinião pública. Como depoente na comissão de inquérito, miou como um gato doente.
Negou declarações feitas em entrevista à imprensa e passou pelo vexame de ouvir de voz própria – gravada – o que desdizia. Trocou a acusação de incompetência do ministro Pazuello por um afago constrangido, já que precisava blindar o presidente. O ministro da comunicação mostrou que não entende do próprio negócio: comprou briga com a imprensa, não soube equacionar a responsabilidade de sua pasta na escalada de desinformação e, consequentemente, de mortes pela covid-19. Chegou a ser ameaçado de prisão pelas mentiras, o que o deixou visivelmente apavorado.
Quanto mais tentou proteger o presidente, mais expôs o governo. Ao fim, ficou claro que o diagnóstico de Wajngarten estava correto: o governo é incompetente, a começar por ele.
O alerta lírico-político de Brecht se repetiu na CPI como farsa. Por isso é preciso ficar atento a outro momento do poema: “Se governar fosse fácil / Não seriam necessários espíritos iluminados como o Führer”. Cada país e cada época, infelizmente, tem o Hitler que merece.
Em um poema do fim dos anos 1930, “Dificuldade de governar”, Brecht parece se antecipar ao patético espetáculo da CPI da Covid, descrevendo de forma premonitória a ação do ministro da propaganda e das relações exteriores, entre outras autoridades da República. Sob Bolsonaro, Wajngarten, Araújo e Pazuello parecem executar hoje o que seus colegas do duro ofício de governar tramavam às vésperas da Segunda Guerra, em plena ascensão do nazismo. Não deve ser fácil ser tão equivocado décadas depois, a ponto de merecer comparação tão deslustrosa. Para que se tornem aos olhos de todos os piores ministros de suas áreas em todos os tempos, os servidores brasileiros precisaram se esforçar.
Palavras de Brecht, na primeira parte do poema, na tradução de Paulo César de Souza: “Os ministros não cansam de dizer ao povo / Como é difícil governar. Sem os ministros / O grão de trigo cresceria para baixo, não para cima. / Nenhum pedaço de carvão sairia das minas / Se o Chanceler não fosse tão sábio. Sem o Ministro da Propaganda / Nenhuma mulher ficaria grávida. Sem o Ministro da Guerra jamais haveria uma guerra. Sim, se o sol se levantaria de manhã / Sem a permissão do Führer / é inteiramente discutível, e se o fizesse / Seria no lugar errado.” O terraplanismo, como se vê, tem história. O Galileu de Brecht segue atual.
Pazuello
Mas sigamos os ministros. Pazuello garantiu que o trigo nascesse na direção contrária. Sob sua gestão, os casos de covid se multiplicaram e as mortes seguiram escala vertiginosa. Como ministro da saúde, boicotou o conhecimento, aprovou protocolos inúteis e perigosos, não comprou vacinas, se cercou de militares tão incompetentes como ele em áreas técnicas e exibiu uma covarde lealdade ao presidente contra os interesses dos brasileiros.
Mesmo sabendo que faltava ar, demorou a agir em Manaus. Podendo pedir ajuda a vizinhos, preferiu se aferrar à lógica bélica da inimizade ideológica. Ainda assim, configurada a colaboração, eximiu-se do ato do agradecimento. Mal ministro, insistiu em ser má pessoa.
O general desmoralizou sua corporação, enfraqueceu o mito da eficiência dos militares, exibiu ausência banal de sentimento humano, se aferrando à burocracia para explicar seus atos. Como outro alemão, Eichmann. Ele, no entanto, não era mero cumpridor de ordens: estava no lugar das decisões. Seu depoimento na CPI seguiu a linha brechtiana: se esforçou para convencer que era muito difícil governar e, por isso, errou tanto. Não buscava compreensão, mas anular a crítica, como sempre fez quando era ministro e chamava de coletiva de imprensa suas aparições com declarações evasivas e, no limite, mentirosas e irresponsáveis, sem direito a perguntas.
Ernesto Araújo
Ernesto Araújo não deve nada ao chanceler de Brecht. Também se acha sábio, acredita que é capaz de fazer carvão sair das minas por força de suas convicções isolacionistas e que todos estão errados. Apenas ele é iluminado pela inspiração olavista de seus conceitos esquizofrênicos e isolacionistas em matéria de relações internacionais, comércio e ação concertada e racional das nações.
Ernesto não é honesto na avaliação de suas responsabilidades. Defendeu sua diplomacia, mesmo com as evidências do desastre que representou e ainda representa, deixando o país refém da estupidez do alinhamento trumpista, pernicioso sob Biden, e da oposição insensata ao maior parceiro comercial do país.
Como seu colega da saúde, também é dado a mentiras arrogantes, falso apego às normas e memória seletiva. Desdisse o que disse, negou o que tuitou e tentou rasurar o que escreveu sobre a China.
Iguala-se ao general logístico na bajulação a Bolsonaro e família, mesmo tendo sido escanteado sem dó nem piedade pelo ex-chefe. Também fez questão de virar as costas à Venezuela e reconhecer sua dívida com o país vizinho. Para ele, como para Pazuello, é melhor que brasileiros morram sem ar do que agradecer a um bolivariano por sua ação humanitária.
Deixou parte de sua atribuição em termos de negociação com laboratórios estrangeiros na mão de um arrivista despreparado como Wajngarten, que não entende de saúde, negociação e, sequer, de comunicação. Mas que parece esperto com dinheiro. Sua relação com Organização Mundial de Saúde, a princípio de crítica ideológica (“comunismo internacional”) e sem seguida de negacionismo sanitário, deixou o prejuízo irreparável na conta de vacinas que poderiam já estar sendo aplicadas nos braços de brasileiros. Tratou como problema resumidamente nacional o que é uma questão que afeta todo o planeta. Confundiu bem comum com comunismo.
Wajngarten
Já o Ministro da Propaganda do poeta surgiu redivivo e amedrontado entre senadores brasileiros. Wajngarten fez de tudo para afirmar seu poder em áreas que não lhe diziam respeito. Se o funcionário de Brecht garantia a gravidez das mulheres, o jornalista bolsonarista resolveu intermediar a compra de imunizantes.
Além de atrapalhar as negociações com os laboratórios e deixar a suspeita de interesses espúrios, não fez o que lhe cabia, que era informar a população sobre os cuidados necessários para enfrentar a pandemia. Como profissional de comunicação sempre foi agressivo com colegas e arrogante em relação à opinião pública. Como depoente na comissão de inquérito, miou como um gato doente.
Negou declarações feitas em entrevista à imprensa e passou pelo vexame de ouvir de voz própria – gravada – o que desdizia. Trocou a acusação de incompetência do ministro Pazuello por um afago constrangido, já que precisava blindar o presidente. O ministro da comunicação mostrou que não entende do próprio negócio: comprou briga com a imprensa, não soube equacionar a responsabilidade de sua pasta na escalada de desinformação e, consequentemente, de mortes pela covid-19. Chegou a ser ameaçado de prisão pelas mentiras, o que o deixou visivelmente apavorado.
Quanto mais tentou proteger o presidente, mais expôs o governo. Ao fim, ficou claro que o diagnóstico de Wajngarten estava correto: o governo é incompetente, a começar por ele.
O alerta lírico-político de Brecht se repetiu na CPI como farsa. Por isso é preciso ficar atento a outro momento do poema: “Se governar fosse fácil / Não seriam necessários espíritos iluminados como o Führer”. Cada país e cada época, infelizmente, tem o Hitler que merece.
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