Não quero papo com bolsonarista. Pode ser até parente próximo, pai, filho ou mesmo o espírito santo. Sem chance. A expressão “troca de ideias” padece de uma crença na capacidade do outro em trazer algo novo para o horizonte, que mereça até mesmo ponderação ou mudança de ponto de vista. Não é o caso dos minions: não tem como ser um deles sem deixar de ser gente. Pelo menos o que entendo por gente. Tem conversa que não vale a pena.
Por isso é preciso mudar de tática. Nada de tentar convencer os imutáveis 25% de almas sebosas. Que subsistam, e é só. Mas precisam ser derrotados. O fascismo é o território em que adversários são transformados em inimigos. O desafio, por isso, não está em conquistar consenso, hegemonia ou mesmo maioria, mas recuperar a civilização isolando quem não tem estatuto ontológico para participar do clube da democracia. O Brasil, sob Bolsonaro, vive no pântano da pré-política.
Por isso, alguns desafios estão postos. Fazer oposição cerrada às políticas do presidente que vêm capando direitos, manietando as instituições e destruindo o país é o primeiro deles. Para esse trabalho estão convocados desde os partidos de oposição aos movimentos sociais, passando por todos os grupos afetados por decisões no campo das políticas públicas e decisões na arena econômica e dos valores culturais. Enquanto o governo existe, é preciso que seja vigiado em seus equívocos, criticado em seus erros, inviabilizado dentro das regras e constrangido em suas boçalidades.
O segundo desafio está em ocupar todas as frentes possíveis para viabilizar o “Fora, Bolsonaro”, do afastamento judicial ou popular ao impeachment. Vale muita coisa nesse caminho, das CPIs aos movimentos de rua, passando por denúncias em foros internacionais de direitos humanos e cortes de defesa da civilização como a concebemos nos últimos 200 anos. Afastar o presidente é um imperativo democrático, não um ato de exceção. A paralisação do processo no Congresso e a blindagem nos órgãos de controle exige uma atitude de coragem que começa nas ruas.
O terceiro caminho é a construção da vitória nas urnas no ano que vem. Pode parecer a via mais condescendente e fácil, mas nem por isso está garantida. A ser mantida a atmosfera de polarização, atravessada pela incapacidade de união das forças democráticas e do cenário de exploração industrial da desinformação criminosa, não está afastada a possibilidade de reedição da última disputa eleitoral, inclusive em seus resultados. Parte minoritária, mas unida e vitaminada pela rede de ódio, pode de novo se alimentar dos mitos da antipolítica e do antipetismo.
A mudança de postura política exige apenas humildade em aprender com o passado recente. O que significa estabelecer com competência uma frente feita ao mesmo tempo de valores compartilhados e nomes viáveis. Os dois precisam vir juntos. Quem fala que o principal é o programa ou quem defende apenas os favoritos em pesquisa, faz o jogo da divisão que só reforça o ego e enfraquece os resultados. Que já deu no que deu.
Três são as bandeiras capazes de unir o que a divergência política das forças progressistas, de centro-esquerda ou, simplesmente, racionais, separa. Defesa da democracia como valor inegociável, retomada do combate à desigualdade e proteção do meio ambiente. Quem assina embaixo deve vir junto. As outras demandas serão somadas no processo de alianças posterior. Os nomes para levar esse programa adiante devem ser debatidos a partir daí, com pragmatismo e objetivo definido: ganhar a eleição, não uma vaga no tribunal da vitória moral. De boas intenções, o inferno bolsonarista dos nossos dias está cheio.
Baixo clero militar
Além de fazer oposição ao governo, trabalhar pelo impedimento do presidente por crimes cometidos e construir a vitória eleitoral, recentemente mais um fator passou a dominar o cenário e exigir mais um esforço aos defensores da democracia no Brasil: o combate à ditadura militar. Mas a ditadura não acabou em 1985? O que Bolsonaro está conseguindo fazer é algo que parecia impossível: transformar o que era ruim em algo ainda pior, ao naturalizar o que é inaceitável: uma ditadura militar singular, mas expressiva nos marcos da democracia de fachada.
O atual governo tem mais militares em cargos de ministério e presidência de estatais do que qualquer outro do período militar. Nos escalões inferiores, o recrutamento (a palavra nunca foi tão exata) nas forças armadas para cargos de direção e chefia do serviço público extrapola a casa dos milhares. O presidente é um ex-militar afastado por insubordinação, seu vice é general e o aparelhamento da justiça e das polícias tem a marca compósita da caserna e dos templos evangélicos. Bolsonaro recupera a mitologia da competência militar para cumprir missões em todas as áreas onde o problema parece ser excesso de democracia.
Militarizou tudo, do meio ambiente à saúde, não por acaso dois dos mais incompetentes setores da administração pública, que vêm enxovalhando o país em dimensão internacional. Pôs o Exército para produzir cloroquina, dirigir agências de controle de medicamentos, comandar a repressão contra defensores do meio ambiente. Convocou militares da ativa contra as normas disciplinares, insuflou a divisão entre o oficialato, incorporou as polícias em sua visão abrangente de militarização como corpo armado e obediente.
As Forças Armadas nunca foram unidas. A dissenção faz parte de seu DNA, inclusive com revoltas e protestos vindos da caserna. Durante a ditadura militar de 1964-1985, foram pelo menos duas ondas fortes de conspiração, o que mostrava a vida política pulsando nos quartéis. Os protestos, na verdade, não eram contra o endurecimento do regime, pelo contrário, pela cobrança de mais ditadura. Nos dois casos, quem clamava por endurecimento eram representantes das baixas e médias patentes. Como Bolsonaro e sua turma.
Mesmo assim, os militares, ainda que capazes de segurar a bagunça no seu pátio, gostavam do que faziam e se sentiram tirados do jogo antes da hora. Negociaram uma anistia que passou por cima de crimes contra a humanidade, o que permitiu que anos depois nomes de torturadores sejam alvo de homenagens e a defesa da tortura feita aos quatro ventos. Agora, inspirados pelo presidente, parece que os revoltosos do fechamento estão de volta. E se nutrem do tripé oferecido pelo chefe: prestígio, poder e dinheiro.
São três alimentos para a alma de qualquer pessoa menos convicta de seus princípios. Os militares ganharam promessas de investimento em seus brinquedos, estão no comando da máquina administrativa (inclusive no ordenamento de despesas civis) e tiveram aumentos e decisões favoráveis em meio a reformas trabalhistas e previdenciárias que afetaram negativamente todas as outras categorias profissionais. São admirados, poderosos e bem pagos.
Por essa e outras, o ex-capitão insiste em chamar as Forças Armadas de “meu” Exército. No sentido da propriedade individual pode ser um erro, mas no que diz respeito à identificação do grupo mais próximo, parece acertar o alvo. Com isso, a oposição de parte dos oficiais e mesmo o pedido de demissão dos comandantes das três armas não parecem incomodar o presidente. Na verdade, reforça a mudança da origem do domínio estabelecido nos quartéis, a partir do rebaixamento da linha de comando rumo aos setores menos graduados e, até então, menos valorizados pela corporação. Uma espécie de baixo clero da farda.
O recente caso de Eduardo Pazuello, general logístico e ex-ministro da Saúde, foi o coroamento da desmoralização dos militares. Tanto dentro de casa como para a opinião pública. Por um lado, rifou um oficial da ativa que carregou nas costas de forma humilhante os erros propositais da política sanitária defendida pelo presidente. Se um general da ativa em cargo de ministro já era uma forma de desobediência dos códigos militares que afirmam independência de governos para reforçar o papel de Estado de seus membros, sua entrega aos leões foi uma demonstração de desprezo.
Em seguida, sua convocação para um ato político e exposição gratuita em episódio sem maior relevância, como um passeio de motociclistas fantasiados de homem, afrontou novamente as regras profissionais dos militares. Ao entrar em cena encaminhando o arquivamento da denúncia ao general, Bolsonaro remarcou sua posição de comando e plantou mais uma divisão entre os militares. O Exército saiu mais fraco e perdeu no terreno que moralmente sempre se destacou.
O presidente sempre manteve fechados os canais com a democracia. É inimigo da imprensa livre. Foi sempre reticente com partidos. Não confia em empresários, já que não se decidiu se é nacionalista ou liberal. Utilizou-se de todos que davam a ele palanque para sua cruzada antissistema, a começar por Moro, que depois foi descartado sumariamente e vive hoje seu inferno sem horizonte político ou profissional. Merecidamente.
Agora reduz sua interlocução até com a base da qual mais se orgulhava, os militares. Está ficando cercado do que há de pior, na caserna, nos templos, na economia e nas forças de segurança. É com eles que pretende se manter. Na falta de categoria sociológica confiável, esses espécimes atendem pelo nome de bolsonaristas. Eles não merecem papo.
As Forças Armadas nunca foram unidas. A dissenção faz parte de seu DNA, inclusive com revoltas e protestos vindos da caserna. Durante a ditadura militar de 1964-1985, foram pelo menos duas ondas fortes de conspiração, o que mostrava a vida política pulsando nos quartéis. Os protestos, na verdade, não eram contra o endurecimento do regime, pelo contrário, pela cobrança de mais ditadura. Nos dois casos, quem clamava por endurecimento eram representantes das baixas e médias patentes. Como Bolsonaro e sua turma.
Mesmo assim, os militares, ainda que capazes de segurar a bagunça no seu pátio, gostavam do que faziam e se sentiram tirados do jogo antes da hora. Negociaram uma anistia que passou por cima de crimes contra a humanidade, o que permitiu que anos depois nomes de torturadores sejam alvo de homenagens e a defesa da tortura feita aos quatro ventos. Agora, inspirados pelo presidente, parece que os revoltosos do fechamento estão de volta. E se nutrem do tripé oferecido pelo chefe: prestígio, poder e dinheiro.
São três alimentos para a alma de qualquer pessoa menos convicta de seus princípios. Os militares ganharam promessas de investimento em seus brinquedos, estão no comando da máquina administrativa (inclusive no ordenamento de despesas civis) e tiveram aumentos e decisões favoráveis em meio a reformas trabalhistas e previdenciárias que afetaram negativamente todas as outras categorias profissionais. São admirados, poderosos e bem pagos.
Por essa e outras, o ex-capitão insiste em chamar as Forças Armadas de “meu” Exército. No sentido da propriedade individual pode ser um erro, mas no que diz respeito à identificação do grupo mais próximo, parece acertar o alvo. Com isso, a oposição de parte dos oficiais e mesmo o pedido de demissão dos comandantes das três armas não parecem incomodar o presidente. Na verdade, reforça a mudança da origem do domínio estabelecido nos quartéis, a partir do rebaixamento da linha de comando rumo aos setores menos graduados e, até então, menos valorizados pela corporação. Uma espécie de baixo clero da farda.
O recente caso de Eduardo Pazuello, general logístico e ex-ministro da Saúde, foi o coroamento da desmoralização dos militares. Tanto dentro de casa como para a opinião pública. Por um lado, rifou um oficial da ativa que carregou nas costas de forma humilhante os erros propositais da política sanitária defendida pelo presidente. Se um general da ativa em cargo de ministro já era uma forma de desobediência dos códigos militares que afirmam independência de governos para reforçar o papel de Estado de seus membros, sua entrega aos leões foi uma demonstração de desprezo.
Em seguida, sua convocação para um ato político e exposição gratuita em episódio sem maior relevância, como um passeio de motociclistas fantasiados de homem, afrontou novamente as regras profissionais dos militares. Ao entrar em cena encaminhando o arquivamento da denúncia ao general, Bolsonaro remarcou sua posição de comando e plantou mais uma divisão entre os militares. O Exército saiu mais fraco e perdeu no terreno que moralmente sempre se destacou.
O presidente sempre manteve fechados os canais com a democracia. É inimigo da imprensa livre. Foi sempre reticente com partidos. Não confia em empresários, já que não se decidiu se é nacionalista ou liberal. Utilizou-se de todos que davam a ele palanque para sua cruzada antissistema, a começar por Moro, que depois foi descartado sumariamente e vive hoje seu inferno sem horizonte político ou profissional. Merecidamente.
Agora reduz sua interlocução até com a base da qual mais se orgulhava, os militares. Está ficando cercado do que há de pior, na caserna, nos templos, na economia e nas forças de segurança. É com eles que pretende se manter. Na falta de categoria sociológica confiável, esses espécimes atendem pelo nome de bolsonaristas. Eles não merecem papo.
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