O anúncio de que o Exército brasileiro absolveu o general Eduardo Pazuello acendeu o sinal amarelo de muitos analistas políticos. Ao dizer que acataria os argumentos do general, o Exército assumiu a constrangedora posição de considerar o ato político de 24 de maio no Rio de Janeiro como apenas um “passeio de motocicleta”, e não um evento partidário, porque Bolsonaro, apesar de todo o discurso fortemente eleitoral, não é filiado a nenhum partido. A absolvição, ainda mais com base em justificativas tão esdrúxulas, tem como consequência abrir as portas para a quebra da hierarquia militar, dando aos militares da ativa – das mais distintas patentes – a possibilidade de se posicionar e, mais do que isso, se articular politicamente, de forma explícita.
A interpretação de alguns atores políticos de que o ato da cúpula do Exército em ceder ao presidente no caso Pazuello seria um recuo estratégico, ainda que menos pessimista, não tira a nossa perplexidade diante do fato. Nessa leitura, a não punição seria um cálculo visando a permanência do atual comandante da Defesa, o general Paulo Sérgio, considerado mais legalista. Isso porque, caso decidisse punir Pazuello, ele poderia ser desautorizado pelo presidente e teria que renunciar ao posto, abrindo espaço para um general mais alinhado a Bolsonaro em seu lugar – possivelmente, Marco Freire Gomes, homem de confiança do ministro da Casa Civil, o também general, Luis Eduardo Ramos. Como é possível concluir, mesmo a opção menos pessimista traz o quadro de um Exército fortemente politizado. Mas, então, cabe perguntar: qual é o plano do presidente?
Apesar de ter três décadas vivendo da política institucional, Bolsonaro não é um democrata. Segundo suas próprias palavras, seu livro de cabeceira é a biografia do torturador Brilhante Ustra. Ele mesmo já disse que não seria possível mudar nada no Brasil a partir do voto, e que o regime ditatorial que governou o brasil de 1964 a 1985 é um modelo de sucesso – exceto pelo fato de “ter torturado e não matado, e de ter matado pouco”. Se pudesse, Bolsonaro daria um golpe de Estado e governaria como ditador no Brasil. Porém, como promover um golpe militar não é simples nos dias atuais, o que o presidente faz é um esforço contínuo de desmantelamento das instituições democráticas, seja mudando as regras (como faz com as normas ambientais), seja ocupando os postos institucionais com aliados (como faz nos órgãos de controle e no Judiciário), seja retirando o financiamento das áreas a ponto de inviabilizá-las (como faz com instituições científicas e de fiscalização).
Como venho analisando desde o início do mandato de Bolsonaro, as ações do presidente são tomadas a partir de uma lógica de guerra de movimento, articulada em várias frentes e sempre acompanhada de um discurso que retrata o presidente como um líder anti-sistema, o único capaz de atacar a “grande conspiração” esquerdista. Por isso, ele seria perseguido o tempo todo, restando-lhe, unicamente, o apoio dos verdadeiros patriotas – seus seguidores. A partir dessa narrativa, Bolsonaro conseguiu fidelizar uma base de apoiadores muito mobilizada e atenta às ordens do capitão, e, além disso, povoada por muitos militares e policiais, principalmente das baixas patentes.
Com a evolução da pandemia e a degradação econômica, ambos os fenômenos facilmente atribuíveis às escolhas e apostas equivocadas de Bolsonaro, a tolerância do restante da população, ou seja, a parcela que não constitui sua base fiel de sustentação, se arrefeceu. Nas últimas pesquisas de opinião, vemos os índices de rejeição ao presidente chegarem a níveis altíssimos, que, se mantidos, inviabilizam qualquer possibilidade de reeleição em 2022. Mais do que isso, os dados mostram que seu principal opositor, o ex-presidente Lula, assumiu com folga a liderança ao posto presidencial. Frente a essa situação, Bolsonaro encontrou uma saída à moda de Donald Trump: pretende tumultuar as eleições do próximo ano.
O Plano 2022
Desde 2018, mesmo tendo sido o ganhador da eleição, Bolsonaro diz que é prejudicado por urnas fraudadas. Nos últimos meses, esse discurso se intensificou, e o presidente vem dizendo que não aceitará o resultado das eleições se o sistema de votação não mudar para o voto impresso. O atual presidente do TSE, o ministro Luís Roberto Barroso, nega a possibilidade de qualquer mudança no sistema atual, pois, segundo os testes existentes até o momento, o processo eleitoral é sim seguro e auditável. Frente à desconfiança propagada pela campanha de desinformação bolsonarista, há inclusive setores da esquerda e acadêmicos que têm se manifestado pela possibilidade de mudança, ainda que em uma pequena amostra das urnas, para facilitar a auditoria em caso de quaisquer suspeitas e contestações. Evidentemente, o que Bolsonaro quer não é um possível acordo, mas sim a narrativa de que a votação será fraudada. E, mais do que convencer seus seguidores, ele quer inviabilizar uma troca no poder.
Para o plano ter alguma chance de sucesso, ao contrário do que houve nos Estados Unidos, Bolsonaro sabe que precisa de resguardo institucional e militar. Por isso, angariar quadros do Judiciário e do aparato militar para o seu lado é fundamental. É a partir daí que devem ser analisadas as ações do presidente. Se nada for feito, podemos esperar, além de vídeos amadores falsos “provando” as fraudes eleitorais circulando no Whatsapp; além de pastores amigos denunciando o “roubo nas eleições” em púlpitos e vídeos do Youtube; além de reportagens de jornais, portais e documentários de produtoras bolsonaristas defendendo a tese; haverá também discursos de policiais e oficiais do Exército convocando o povo em apoio ao capitão, pressionando os comandos e, quiçá, atacando opositores do governo. Não se pode duvidar, inclusive, que a narrativa seja defendida até mesmo por algum ministro do STF, indicado presidencial. E, nesse cenário de caos, o presidente quer o Exército à disposição para “restaurar a ordem”.
Um processo nesses moldes não precisa instaurar uma ditadura militar para que Bolsonaro tenha êxito. Bastaria que o presidente ocupasse instituições ainda não alinhadas e acumulasse poderes. Assim, Bolsonaro pode ter o Judiciário, acuado e vigiado pelos militares, nas mãos, o Legislativo subordinado e os aparatos de repressão do Estado, com seus homens devidamente politizados para combater a “conspiração esquerdista”, atuando para perseguir opositores políticos. Seguindo por esses caminhos, o próximo passo seria sufocar os setores que tradicionalmente se insurgem contra o autoritarismo: a imprensa livre, os artistas, as universidades e os cientistas, os sindicatos e os movimentos sociais. Se analisarmos bem, veremos que esse plano já começou.
As saídas
Boa parte dos setores e políticos democratas ainda custa a entender que o jogo político não está sendo jogado em termos normais. A eleição de 2022 não será “mais uma eleição”. Não sabemos sequer se ela acontecerá. Pois bem, acontecendo, há riscos de violência social, do resultado ser contestado e até mesmo não ser validado. Nesse cenário, a política não pode ser reduzida a construções de candidatos ou frentes eleitorais, seja em torno do nome que for, em aliança com quem quer que seja. É preciso senso de urgência para lutar e impedir a escalada autoritária.
O país vive uma situação social e econômica dramática. A CPI da pandemia vem quebrando a narrativa bolsonarista e isolando cada vez mais seus seguidores, enquanto mostra a responsabilidade do governo federal no alastramento do vírus e no aumento exponencial do número de mortes. A insatisfação com o governo já tomou as ruas em manifestações massivas e voltou a produzir barulho nas janelas, com panelaços ao redor de todo o país. Mas é preciso mais. Bolsonaro só tem chances porque encontra uma sustentação mínima nas instituições e, principalmente, na sociedade. Por isso é preciso intensificar as ações sociais contra o governo, em um esforço coletivo de todo o arco político democrático, para isolar o bolsonarismo e impulsionar um processo de impeachment – ou, no mínimo, inviabilizar as ações bolsonaristas mostrando-as como amplamente minoritárias. Mesmo que a saída de Bolsonaro seja só a partir das eleições de 2022, para que ela se dê é preciso mobilização para já.
* Vinicius do Valle é doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo e autor de “Entre a religião e o lulismo” (Ed. Recriar).
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