Seja qual for seu efeito jurídico e político, o relatório final da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Covid-19, apresentado pelo senador Renan Calheiros (MDB-AL) nesta quarta-feira (20), é avassalador para o presidente Jair Bolsonaro. Suas mais de mil páginas descrevem minuciosamente como o suposto combate federal à pandemia do novo coronavírus se tornou um dos maiores crimes de um governo contra o povo brasileiro. Mais do que isso, mostram que essa CPI, a despeito das pressões e dos conflitos de interesse, já marcou época.
Sobre toda e qualquer CPI, é recorrente a máxima de que sabemos como elas começam, mas não como terminam. Daí o empenho dos governos – de qualquer governo – para evitá-las, a fim de não se tornarem vidraças sob ataques permanentes de parlamentares, da mídia e da opinião pública. Não foi diferente com a gestão Bolsonaro. Com tanto descalabro no País, era mais do que razoável e natural investigar um governo que teve atuação decisiva na curva de casos e mortes da pandemia, potencializando criminosamente os riscos e os efeitos da crise sanitária. Mas Bolsonaro e sua vase manobraram o quanto puderam para impedir o início dos trabalhos.
Em 14 de abril, numa decisão memorável, o plenário do STF (Supremo Tribunal Federal) respaldou a decisão do ministro Luís Roberto Barroso de obrigar o Senado a implantar a comissão de inquérito, superando as manobras regimentais de apoiadores do governo para impedir a investigação. Todos os pré-requisitos para um pedido de CPI estavam plenamente contemplados – só faltava o presidente do Senado Rodrigo Pacheco formalizá-la. O posicionamento da Corte já enunciava um consenso crescente pró-investigações – a CPI foi aprovada entre os ministros por dez votos a um. Pacheco ainda insistiu que a CPI era “absolutamente inapropriada”, mas acatou a ordem. O papel do STF, portanto, foi notável.
A escolha dos parlamentares que ficariam na “linha de frente” do colegiado também favoreceu as investigações. Nomeados, respectivamente, presidente, vice-presidente e relator da CPI, Omar Aziz (PSD-AM), Randolfe Rodrigues (Rede-AP) e Renan Calheiros lideraram a comissão com tenacidade e competência. Não foram os únicos: nomes como Otto Alencar (PSD-BA), Simone Tebet (MDB-MS), Fabiano Contarato (Rede-ES) e Alessandro Vieira (Cidadania-SE) também deram contribuições decisivas na tomada de depoimentos dos investigados e das testemunhas, a ponto de alguns desses senadores terem sido alçados à condição de pré-candidatos à Presidência da República.
Assim, transcorridos cerca de seis meses, uma das mais importantes CPIs da história do parlamento brasileiro mostrou a que veio. “Esta CPI consagrou enormes avanços institucionais, políticos e civilizatórios. É uma CPI histórica, com muitos legados para sociedade”, resumiu Renan. “As demais instituições precisam assimilar o contexto e as recomendações emanadas desta CPI. A história não perdoa os omissos e condenará os covardes.”
O relatório pede o indiciamento de duas empresas e de 66 pessoas, entre elas o próprio presidente. Só a Bolsonaro, são atribuídos nove crimes: epidemia com resultado morte; infração de medida sanitária preventiva; charlatanismo; incitação ao crime; falsificação de documento particular; emprego irregular de verbas públicas; prevaricação; crimes contra a humanidade; e crimes de responsabilidade (violação de direito social e incompatibilidade com dignidade, honra e decoro do cargo).
Conforme o relatório, é sobretudo ao presidente negacionista que se deve atribuir a responsabilidade central por boa parte das mais de 600 mil mortes de brasileiros por Covid. Mesmo em caso de eventual impunidade, o texto apresentado pelo relator da CPI é suficiente para condenar Bolsonaro no “tribunal da História”.
“Não há como afastar a responsabilidade do Presidente da República, Jair Messias Bolsonaro, no que diz respeito às ações e omissões relacionadas ao enfrentamento da pandemia”, indica o relatório. “Com efeito, o conjunto probatório revelou que o Chefe do Executivo Federal teve inúmeras condutas que incrementaram as consequências nefastas da Covid-19 em nossa população, o que não pode passar sem a devida fiscalização por parte desta CPI.”
A acusação em especial de “atos de extermínio” e “perseguição” da população indígena pode levar Bolsonaro a ser investigado não apenas no Brasil – mas também no Tribunal Penal Internacional (TPI) – por “crime contra a humanidade”. Ampliam-se, assim, as instâncias onde o presidente será julgado, elevando-se igualmente as possibilidades de condenação.
Entre as autoridades das quais Renan propôs o indiciamento, há ministros – casos de Marcelo Queiroga (Saúde), Onyx Lorenzoni (Trabalho), Wagner Rosário (Controladoria-Geral da União) e Braga Netto (Defesa) –, além dos ex-ministros Eduardo Pazuello (Saúde) e Ernesto Araújo (Relações Exteriores). Já os filhos parlamentares do presidente – o senador Flávio Bolsonaro (Patriota-RJ), o deputado federal Eduardo Bolsonaro (PSL-SP) e o vereador Carlos Bolsonaro (Republicanos-RJ) – são acusados de “incitação ao crime”, assim como os deputados federais Ricardo Barros (PP-PR), Bia Kicis (PSL-DF), Carla Zambelli (PSL-SP), Osmar Terra (MDB-RS) e Carlos Jordy (PSL-RJ).
Ampla, corajosa, eficiente – assim foi a CPI da Covid. O momento é de debates sobre possíveis alterações no texto-base do relator. Mas o fato é que essa comissão no Senado cumpriu, indiretamente, o papel de desgastar Bolsonaro e aumentar sua rejeição a níveis recordes. Os brasileiros aprovaram e endossaram a CPI, que ajudou a demolir o presidente da República.
Tudo isso – vale dizer – ocorreu num momento em que a Campanha Nacional Fora Bolsonaro ajudou a ecoar as denúncias e as indignações da comissão no Senado. Já se foram seis grandes manifestações desde maio, na busca de uma frente ampla capaz de derrotar o presidente pela via do impeachment. A CPI da Covid venceu!
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