Foto: Ricardo Stuckert |
Uma entrevista do ex-presidente Lula ao jornal El País, divulgada por esses dias, produziu uma sequência de ruídos.
Primeiro foi divulgado um trecho recortado, no qual Lula comparava a extensão do mandato de Ortega ao de Angela Merkel ou Felipe Sanchez, e tomava um “sabão” da jornalista.
O presidenciável Sergio Moro (Podemos) rapidamente explorou o episódio, publicando um retuíte comentado com uma crítica: “É o PT com a “democracia” de Ortega que queremos para o Brasil?”
As críticas a Lula não vieram apenas de seus adversários. Muitos “neutros” e apoiadores do ex-presidente protestaram contra sua fala.
Alguns minutos depois, todavia, internautas postaram o trecho completo, onde se vê o início e o fim da fala do ex-presidente, que alteram expressivamente todo o sentido de sua opinião.
Ao ser confrontado com a situação da Nicarágua, Lula inicia sua resposta com uma crítica contundente à figura do “pequeno ditador” que se acha “insubstituível”, e menciona a necessidade de “alternância de poder”. Em seguida, pondera: “posso ser contra, mas não posso ficar interferindo”.
Ao final da resposta, após a justa observação da jornalista, de que Angela Merkel não mandou prender opositores, Lula acrescenta uma crítica mais direta a Ortega, presidente da Nicarágua: “se ele prendeu a oposição para ganhar a eleição, ele está totalmente errado”.
Diante do trecho completo, as críticas a Lula amainaram, mas não cessaram. Muitos queriam que Lula tivesse sido mais enfático e mais claro em sua crítica a Ortega. Os jornalões publicaram editoriais furibundos. Do lado progressista, além da crítica propriamente política à fala de Lula, também vieram comentários sobre a suposta falta de malícia do ex-presidente, que teria jogado uma casca de banana para si mesmo.
Por fim, a coisa degringolou num debate confuso, com quatro posições dominantes:
1 – De um lado, vimos aqueles que não viram nada demais na fala de Lula. O ex-presidente inicia a resposta com uma crítica conceitual à figura do “pequeno ditador” latino-americano que se acha insubstituível, e a termina com uma crítica direta, embora condicional à uma confirmação das denúncias, ao presidente da Nicarágua. Nesse grupo, imagino eu, ficou a maior parte da esquerda. Os críticos a Ortega ficaram satisfeitos com as críticas de Lula. Os que não são críticos a Ortega gostaram de seu tom diplomático, ao estilo defensor da “autodeterminação dos povos”.
2 – De outro, vimos aqueles que não gostaram da resposta de Lula, pois queriam uma crítica feroz e explícita ao presidente da Nicarágua. Entre esses tivemos a maior parte da direita, como os apoiadores de Moro e Bolsonaro. Editorialistas da mídia viram a fala do petista como uma oportunidade para levar adiante a estratégia de debilitar, desde já, a imagem do ideário progressista, associando-o a defesa de regimes autoritários. Se for necessário engolir novamente Lula em 2022, parecem pensar, que seja um Lula submetido aos ditames do discurso hegemônico da mídia corporativa.
3 – Tivemos ainda o grupo razoável, de ideário progressista, que viu a fala de Lula como um erro de estratégia política, não tanto pela fala em si, que não diz muita coisa, mas no contexto de outros episódios que produziram ruídos semelhantes. Esses episódios foram as recentes defesas, por Lula, de uma regulamentação tanto da mídia como das redes sociais, e a publicação no site do PT, embora desautorizada logo depois pela presidenta nacional do partido, de uma saudação a Ortega por sua vitória eleitoral.
4 – Há também aqueles que se apressaram em rotular qualquer tentativa de esclarecimento ou contextualização da fala de Lula como “passar pano” para o petista. Entre esses, vimos principalmente apoiadores de Ciro Gomes, que espreitam as redes dia e noite à cata de oportunidades para constranger ou criticar o ex-presidente, com ou sem razão.
Filio-me ao primeiro grupo. Com todo o respeito aos grupos três e quatro (mas não aos oportunistas do grupo dois), acho sinceramente que a fala de Lula foi objetiva, diplomática e, sobretudo, atenta ao princípio de autodeterminação dos povos.
Lula não é um militante político qualquer. Ele já foi presidente duas vezes, e pode vir a ser novamente uma terceira, a partir de 2022, e tem experiência suficiente para saber que a maneira mais inteligente de se manter influente no cenário internacional é evitar fazer críticas agressivas a um presidente ou governo de outro país. Isso não ajudaria nem o Brasil nem a Nicarágua. O governo Ortega pode ser uma ditadura execrável, mas há maneiras mais inteligentes e objetivas de ajudar o povo nicaraguense a reencontrar o caminho democrático do que agressões via imprensa. Como presidente, Lula terá que dialogar com Ortega, presidente eleito do país, e não com a oposição. Ah, mas a Nicarágua é uma economia insignificante, e o Brasil não perderia nada se rompesse relações com o país. Não se deve jamais pensar assim, ainda mais o Brasil, que vai precisar de todo mundo. Todo país é importante.
Se Lula fizer uma crítica direta a Ortega, por prender opositores, será cobrado para fazer o mesmo tipo de crítica à China, que também prende opositores, à Arábia Saudita, à Turquia, à Rússia. Isso sem falar nos Estados Unidos, que tem seus milhares de presos políticos, além de possuir um serviço de inteligência acusado de patrocinar golpes e assassinatos políticos mundo à fora .
Diplomacia não é para amadores. Há regimes autoritários em toda a parte. Alguns não costumam ser criticados pelas mídias corporativas, nem candidatos a presidência de países em desenvolvimento são cobrados a criticá-los em entrevistas. O Catar, por exemplo. Quando Lula participa de entrevistas, jamais se vê os repórteres cobrando de Lula uma condenação à ausência de processo democrático nas monarquias árabes.
O El País, a despeito de ser um jornal progressista em diversos aspectos, tem um histórico complicado quando se trata de lidar com os problemas políticos da América Latina. O jornal apoiou em editorial, por exemplo, a tentativa ridícula de Juan Guaidó de se autoproclamar presidente da Venezuela.
Aliás, tanto o El País como o atual primeiro primeiro ministro espanhol, Pedro Sanchez, apoiaram Guaidó, o que reflete, na minha concepção, a cegueira política do jornal e do establishment progressista espanhol, sobre a dinâmica política latino-americana, além de pouco respeito pelo princípio da autodeterminação dos povos.
Igualmente não me consta que o El País tenha feito editoriais contra o golpe de 2016 no Brasil, que derrubou a presidenta Dilma com acusações ilegais, tampouco em defesa da liberdade do ex-presidente Lula. Os jornalistas do El País não cobravam, de governantes de outros países, que fizessem críticas ao governo Temer, que permitiu a prisão do principal opositor de Jair Bolsonaro, abrindo caminho para sua vitória.
Por tudo isso, vemos que há muita hipocrisia, oportunismo, exageros retóricos e ignorância sobre o princípio de autodeterminação dos povos, nessas cobranças que se faz a Lula de condenar governos latino-americanos, por mais autoritários que estes sejam.
Há um outro trecho da entrevista de Lula ao El País, que é muito mais interessante. Perguntado sobre um suposto declínio do espírito democrático no continente americano, detectado em pesquisa recente do Barômetro, Lula dá uma resposta instigante para quem se interessa por ciência política, especialmente quem estuda democracia.
“O populismo, o radicalismo de direita, o fascismo, não estão em fase descendente. Eles estão cada vez mais agressivos. Estão crescendo em vários lugares. Os democratas precisam aprender que democracia é uma coisa séria. O povo não quer democracia para gritar que está desempregado. Ele quer emprego. O povo não quer democracia para gritar que ele está com fome. Ele quer comer. Nós precisamos cumprir o que nos comprometemos com o povo, senão o povo não tem porque acreditar em democracia”.
Não há dúvidas de que Lula é um democrata, porque ele já governou o país por dois mandatos, e jamais se viu qualquer tipo de excesso autoritário em sua gestão. Caso seja eleito, é se esperar que ponha a diplomacia brasileira para lutar por mais direitos humanos e mais democracia em todo mundo, mas com respeito absoluto ao princípio de autodeterminação dos povos, sem dois pesos e duas medidas, e entendendo a democracia não apenas como um conceito abstrato, uma concepção vazia, puramente acadêmica, e sim como um princípio vital, uma prática política, uma disposição física de lutar contra a desigualdade, a fome e o desemprego.
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