Caricatura: Marcos Guilherme |
A leitura das principais publicações do País, a audiência de podcasts jornalísticos e dos programas de análise política do rádio e da TV deixam a impressão de que o presidente da República não se incomoda nem um pouco com as críticas, mesmo aquelas feitas em tom de deboche e de alta agressividade. É como se ele não apenas tolerasse, mas parece receber tais agressões com enorme prazer, como parte do preço a pagar por um projeto inconfessável.
A outra alternativa para entender esse comportamento seria considerar que Bolsonaro enlouqueceu.
Sim, de fato o presidente dá sinais de que transita num terreno muito próximo da insanidade. Mas não por esse comportamento. Bolsonaro age aparentemente como louco porque tem em mente um projeto que extrapola o campo do razoável. Bolsonaro e seus milicianos estão investindo num velho fetiche da extrema direita militar: a amputação do pensamento progressista da cena pública brasileira.
O desejo inconfessável
Em agosto de 1975, quando ainda estudante, participei de uma entrevista com o então comandante do II Exército, general Ednardo D’Ávila Mello, para um jornal-laboratório da FAAP, em São Paulo. Foi a primeira vez que ouvi, de um representante das Forças Armadas, uma referência direta ao fetiche que alimentava a extrema direita militar, um conjunto de crenças e desejos que explicam em boa parte a mentalidade que dominou o período da ditadura e sobrevive, ainda hoje, nas fileiras do bolsonarismo.
D’Ávila Mello era integrante da chamada “linha dura”, que se opunha ao projeto de distensão “lenta, segura e gradual” então conduzido pelo presidente, general Ernesto Geisel. Sob a liderança do general Sylvio Frota, oficiais de alto escalão conspiravam abertamente contra as medidas que sinalizavam o caminho para o fim do regime de exceção.
D’Ávila Mello era integrante da chamada “linha dura”, que se opunha ao projeto de distensão “lenta, segura e gradual” então conduzido pelo presidente, general Ernesto Geisel. Sob a liderança do general Sylvio Frota, oficiais de alto escalão conspiravam abertamente contra as medidas que sinalizavam o caminho para o fim do regime de exceção.
Em determinado momento daquela entrevista, o comandante, irritado com uma pergunta de uma das duas colegas que estavam comigo na sala, disse claramente: “É por isso que vamos levar adiante a operação Jacarta. O comunismo está envenenando os jovens, precisamos conter isso”.
O que o havia irritado era a insistência dessa colega em discutir com ele se o Brasil vivia ou não sob uma ditadura. “O Brasil é um país democrático”, ele havia dito. “Todos têm o direito de ir e vir – eu mesmo acabo de viajar para Fortaleza e ninguém me impediu”. A estudante de jornalismo riu de sua platitude e argumentou com referências a prisões, censura, e foi interrompida pela citação emblemática sobre Jacarta.
Para ser muito claro, o general Ednardo d’Ávila Mello declarou, sem sutileza: “Vamos neutralizar dois mil comunistas aqui em São Paulo, que estão na imprensa, na televisão e nas universidades doutrinando os jovens”.
Uma morte no caminho
Dois meses depois dessa entrevista, que nunca foi publicada, o Doi-CODI de São Paulo, sob ordens diretas do general Ednardo, começou a prender jornalistas, professores, sindicalistas, quase todos ligados de alguma forma ao Partido Comunista Brasileiro. A operação só foi interrompida pela morte do jornalista Vladimir Herzog, então diretor de jornalismo da TV Cultura, que havia se apresentado espontaneamente para o depoimento e foi barbaramente torturado.
A reação que se seguiu ao assassinato, com manifestações de protesto de muitas entidades, inclusive de governos estrangeiros, suspendeu as prisões. Mas o projeto foi retomado logo em janeiro do ano seguinte, quando também foi morto sob tortura o operário Manuel Fiel Filho, que não era ligado ao PCB mas militava nas Comunidades Eclesiais de Base da igreja Católica.
Geisel trocou o comando do II Exército, mas o núcleo ligado à linha dura seguiu conspirando, até 1981, quando um grupo de militares organizou um atentado que poderia matar centenas de pessoas num show comemorativo do Dia do Trabalho, no centro de convenções Riocentro. Um erro do sargento encarregado de armar uma bomba no local onde se juntavam milhares de espectadores causou a explosão antecipada do artefato.
A intenção dos terroristas era causar uma tragédia e, com a ajuda de jornalistas favoráveis à ditadura, lançar a culpa em grupos de oposição, para justificar a reversão do processo de abertura democrática e colocar em andamento a tal “operação Jacarta”.
Por que essa lembrança agora?
O jornalista americano Vincent Bevins foi correspondente do Los Angeles Times no Brasil entre 2011 e 2016, tendo trabalhado antes para o Financial Times em Londres. Em 2017, assumiu a cobertura do Sudeste asiático para o Washington Post, com sede em Jacarta, Indonésia. No ano seguinte, ele começou a escrever a reportagem que, hoje, é uma fonte essencial para entender o Brasil sob o fascismo de Jair Bolsonaro.
Sua investigação rendeu o livro, ainda não publicado em português, intitulado “The Jakarta Method: Washington's Anticommunist Crusade and the Mass Murder Program that Shaped Our World”. Foi considerado por várias fontes o livro do ano de 2020. A obra relata como a CIA atuou na Indonésia, entre os anos de 1965 e 1966, criando condições para os assassinatos em massa de cerca de um milhão de pessoas, entre militantes do Partido Comunista, estudantes, professores, ativistas sociais e jornalistas que defendiam reformas no regime de governo e a modernização da sociedade.
A Indonésia passou a receber massivos investimentos estrangeiros e se transformou numa sociedade amorfa, dominada por uma casta militar, incapaz de produzir um pensamento original sobre si mesma. A inteligência foi eliminada.
O livro se estende a outros países, entre os quais o Chile, Argentina, Peru e Brasil, onde operações semelhantes foram executadas ou planejadas nos anos seguintes. Esse era o projeto do general Ednardo d’Ávila em 1975, ressuscitado em 1981 no Rio de Janeiro e ainda animando o núcleo fascista do atual governo brasileiro. Até 1987, por exemplo, o Doi-CODI seguia atuando, ainda que dissimuladamente, espionando os parlamentares constituintes, jornalistas e intelectuais, ainda na alimentação do fetiche.
Essa lembrança é relevante porque Jair Bolsonaro e os militares que servem ao seu governo, quase sem exceção, representam o que resta do núcleo do Exército que tem saudades da ditadura. O general Augusto Heleno Ribeiro Pereira, que, quando capitão, foi ajudante de ordens de Sylvio Frota, é o chefe do Gabinete de Segurança Institucional do atual governo. Em muitas posições estratégicas há militares com semelhante perfil antidemocrático.
Essa lembrança é relevante porque Jair Bolsonaro e os militares que servem ao seu governo, quase sem exceção, representam o que resta do núcleo do Exército que tem saudades da ditadura. O general Augusto Heleno Ribeiro Pereira, que, quando capitão, foi ajudante de ordens de Sylvio Frota, é o chefe do Gabinete de Segurança Institucional do atual governo. Em muitas posições estratégicas há militares com semelhante perfil antidemocrático.
Desejo de matar
Nas entrelinhas das ameaças que o presidente continua a proferir semanalmente rosna o fetiche ensandecido: nas milícias bolsonaristas, acalanta-se o desejo de cortar as cabeças da oposição progressista e de esquerda, eliminar o pensamento crítico, reduzir à insignificância a massa crítica da sociedade.
Mas a matemática da insanidade também é inflacionada: em 1975, o então comandante do II Exército calculava que a eliminação de 2 mil comunistas tornaria mais fácil a vida da ditadura. Em 2019, o deputado Eduardo Bolsonaro disse em uma rede social que é preciso “neutralizar com morbidade” 30 mil brasileiros que lideram essa oposição ou se destacam na disputa que rola nas mídias sociais.
Recentemente, os jornalistas Jamil Chade e Lucas Valença, da Folha de S. Paulo, revelaram que o “gabinete do ódio”, núcleo estratégico do atual governo, está tentando adquirir em Israel um programa de hackeamento, supostamente para ser usado na espionagem de candidatos oposicionistas durante a próxima campanha eleitoral.
Recentemente, os jornalistas Jamil Chade e Lucas Valença, da Folha de S. Paulo, revelaram que o “gabinete do ódio”, núcleo estratégico do atual governo, está tentando adquirir em Israel um programa de hackeamento, supostamente para ser usado na espionagem de candidatos oposicionistas durante a próxima campanha eleitoral.
Os dois jornalistas, principalmente Chade, passaram a ser ameaçados por milicianos digitais.
A agressiva reação da milícia indica que o objetivo não é apenas espionar candidatos: trata-se de nova tentativa de colocar em movimento a “operação Jacarta”, na ocasião em que, tendo perdido a eleição presidencial, Bolsonaro decidir detonar o caos no Brasil.
A agressiva reação da milícia indica que o objetivo não é apenas espionar candidatos: trata-se de nova tentativa de colocar em movimento a “operação Jacarta”, na ocasião em que, tendo perdido a eleição presidencial, Bolsonaro decidir detonar o caos no Brasil.
Os indivíduos que, neste momento, ocupam postos relevantes nas instituições da República, não podem continuar se omitindo diante da loucura anunciada. Não é aconselhável depreciar o potencial destruidor do bolsonarismo.
Qual seria, afinal, o significado de “neutralizar com morbidade”?
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