Foto: Ricardo Stuckert |
“Destruir toda diversidade, e até mesmo o conflito, em nome da uniformidade significa destruir a própria vida”, disse Isaiah Berlin, um dos mais poderosos filósofos conservadores do século passado. Diversidade, conflitos resolvidos dentro de regras legítimas e o oposto da uniformidade – a pluralidade política cultural – são condições da vida comum que, em determinados momentos da História, cansam os mais excluídos dos festejos que brilham no mercado. E cansam as pessoas que vivem nos limites, entre o desespero da fome e da solidão da pobreza, quando a parte da sociedade mais fragmentada pelas transformações na estrutura de classes e nas relações de poder das últimas décadas, se inclina a querer soluções rápidas e terminantes. Tudo para chegar a uma vida mais leve, mais suave e mais segura. Mas se não podes, todavia, desviar do monstro que rege tudo isso, te transforma nele. Esta transformação tem condutas para todos os gostos e tipos de moralidade, pois pode se expressar pelos novos partidos de aluguel no mercado da política, como pela subversão miliciana, autêntica ou falsificada, no fundamentalismo supostamente religioso.
Aqui nascem saudades da vida mais comunitária e das lutas menos ferozes, das relações de vizinhança mais cordiais, dos convívios familiares nos limites da periferia – entre o campo que começa e a cidade que termina – que estão no imaginário de milhões de famílias, cuja restauração da felicidade comum se acerca essencialmente de uma presumida segurança que está ou nas margens ou no outro lado do rio da democracia. Nestas margens está a resposta em eco romântico: “Deus, Pátria e Família”. Deus, que pode ser esperado através de um milagre, Pátria cujo ritual apenas alcança os excluídos do festim liberal nos desfiles de setembro, Família acuada nas grades que nos separam das ruas, por onde fluem mercadorias, desejos não satisfeitos, trânsito impossível, ameaças em série, que podem destruir até a vida precária que nos liga tenuemente ao mercado. Aqui, então, te dou uma arma: é uma vontade uniformizada para uma ordem nova, uma ficção de pátria excludente, mas compartilhada no imaginário necrófilo dos assassinatos perdoáveis: podes matar em grupo ou isoladamente, em nosso santo nome restaurador.
O surpreendente nos resultados eleitorais do primeiro turno não foi a votação do Presidente Lula, em torno dos 48%, mas o deslocamento imediato de uma votação que ocorreria no segundo turno, por parte de um segmento de eleitores que gostaria de ter uma terceira opção, que excluísse o candidato da esquerda, e que – como conservadores – historicamente preferem a companhia do fascismo e da extrema direita, em detrimento de um candidato “da proteção social” aos entendidos como “descartáveis”. É a primeira vez na nossa história democrática que o contencioso eleitoral vai decidir sobre dois projetos que são radicalmente distintos, mas de um forma diferente daquela que tratamos prioritariamente no primeiro turno: se é verdade que no concreto a crise tem diferenças atenuadas no campo econômico, tem diferenças notáveis quanto à questão democrática, “usos e costumes” e modos de vida.
Ao mesmo tempo que a globalização financeira estreitou as alternativas, no que refere à gestão econômica e à natureza das políticas públicas, tornou mais importantes as questões que estão sob controle da subjetividade individual ou agrupada em “espaços” restritos da coletividade, dentro dos seus diferentes fragmentos de classe. O bolsonarismo penetra nas massas espoliadas por esta via e atendeu, ainda que de forma debilitada, as demandas sociais emergenciais usando as mesmas (importantes) políticas assistencialistas usadas, em regra, por quaisquer governos. O bolsonarismo, de maneira falsificada, superou o conflito distributivo na emergência e, ao mesmo tempo, acelerou os preconceitos históricos contra a democracia e o individualismo iluminista, este relacionado aos modos de vida admitidos nas democracias mais modernas, tão longe e, ao mesmo tempo tão perto de nós, segundo o lugar que cada um ocupa na pirâmide social-liberal, que exclui e desintegra, ao mesmo tempo que inclui precariamente e desintegra, por tornar irrelevante a vida de milhões.
Dentro deste contexto que é enfrentado por todas as formações políticas democráticas do Planeta a votação do nosso campo foi extraordinária e estimulante, comparativamente ao que ocorre em todas as partes do mundo e revela, por parte da maioria da sociedade brasileira, uma surpreendente capacidade de luta, de resistência e de dignidade política, da qual Porto Alegre – juntamente com muitas cidades do nosso Estado – mostraram novamente ser exemplo e promessa, com a votação que nelas obtivemos. O bolsonarismo não é só uma espontaneidade no ventre do sistema do capital, mas ele é sobretudo parte de uma criação das elites nacionais e globais da direita que, ao dominar os grandes meios de comunicação, gestaram esta cultura fascista que ora fugiu do seu controle: uma aversão a tudo que é generoso e solidário, ainda possível dentro do sistema do capital, que já não aceita mais mínimas bondades e precisa de máximas maldades, para continuar acumulando sem trabalho e sem sofrer pela miséria e pela violência que cria no seu rastro. Precisamos e vamos ganhar no segundo turno: o Brasil é a trincheira da América do Sul para bloquear o fascismo, que é o mal absoluto na política e a degeneração histórica do sentido de uma pátria para todos.
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