Charge: Benett |
Por Luiz Gonzaga Belluzzo, no site da Rede Estação Democracia (RED):
Empolada em seu inglês dos tempos vitorianos, a revista The Economist desfia sabedorias a respeito das eleições brasileiras. A citação é um tanto longa, mas necessária:
“Lula continua sendo o favorito, até porque o senhor Bolsonaro repele muitos eleitores. Ele é um populista trumpiano, que mente tão facilmente quanto respira e imagina conspirações em todos os lugares. Ele não faz nenhum esforço para impedir a destruição da floresta amazônica. Sua manipulação de covid-19 foi vergonhosa. Seu círculo se sobrepõe ao crime organizado. Ele mina as instituições, desde a Suprema Corte até a própria democracia. Ele sugere que a única maneira de perder a eleição é se for fraudado, e que ele não aceitará nenhum resultado, exceto a vitória. Ele incita abertamente a violência. Em uma pesquisa recente, quase 70% dos brasileiros disseram temer danos físicos por causa de suas opiniões políticas.
No entanto, apesar da manifesta incapacidade do sr. Bolsonaro para o alto cargo, Lula está apenas alguns pontos à frente. Muito disso se resume a dois temores razoáveis sobre Lula: que ele pode ser muito mole com a corrupção, e muito de esquerda na economia.”
Se os amigos me permitem, vou arriscar um pitaco: Lula é e sempre foi de centro com uma civilizada inclinação à esquerda. Conversa, dialoga, ouve. Na verdade, o que essa turma do “vai pro centro” deseja é encalacrar o Luiz Inácio nas enxovias do atraso antidemocrático e anti-iluminista.
Peço também licença para retomar as lições de Norbert Bobbio. Lições exaradas no livro Esquerda e Direita. No livro, Bobbio envereda por um caminho de poucos seguidores no debate político. Em sua trajetória Bobbio estabelece uma distinção interessante entre o Centro Excludente do Terceiro Incluído e o Centro Inclusivo do Terceiro Includente. Suas lições poderiam servir para a turma da Terceira Via.
No debate político, diz ele, o Terceiro Includente é geralmente apresentado como a tentativa de uma terceira via, ou seja, de uma posição que, ao contrário do centro, não está no meio entre a direita e da esquerda, mas busca ir além de um e de outro. Na prática, uma política de terceira via é uma política centrista, mas o ideal é que isso não seja representado como uma forma de compromisso entre dois extremos, mas como uma superação contemporânea de um e outro e, portanto, como uma aceitação e supressão simultâneas destes (e não, como na posição do Terceiro incluído, rejeição e separação). O Terceiro Includente sempre pressupõe os outros dois: enquanto o Terceiro incluído descobre sua própria essência expulsando-os, o Terceiro includente se alimenta deles. O Terceiro incluído é apresentado, sobretudo, como práxis sem doutrina, o Terceira includente acima de tudo como doutrina em busca de uma práxis, que no momento em que é colocada em prática, é realizada como uma posição centrista.”
No debate político-eleitoral brasileiro, o Centro Incluído é mobilizado para excluir as visões sociais e econômicas comprometidas com a defesa das condições de vida de todos os cidadãos. O Brasil não está só nessa empreitada do Centro Excludente. Os movimentos neoliberais das economias e das sociedades nos últimos 40 anos não realizam outro propósito senão excluir e maltratar os milhões que lutam para sobreviver aos tormentos de suas engrenagens.
Vou reproduzir trechos de um artigo que ousei escrever tempos atrás.
No ensaio recente Néolibéralisme classique et nouveau néolibéralisme, Pierre Dardot cuida de seu tema preferido, o neoliberalismo, suas origens e evolução. Julguei oportuno revisitar a contraposição entre o liberalismo clássico e os neoliberalismos em um momento delicado da vida brasileira. Muitos brazucas se contorcem entre a adesão aos movimentos em defesa da democracia sem adjetivos e os receios de perder na caminhada os inalienáveis direitos sociais e econômicos duramente conquistados.
Vamos às origens. Ainda antes da Segunda Guerra Mundial, em carta a um amigo, Wilhelm Röpke, um dos corifeus do neoliberalismo, desvelou a incompatibilidade entre seu ideário e a democracia geral e irrestrita. “É possível que minha opinião sobre um ‘Estado forte’(um governo que governa) seja ainda ‘mais fascista’, porque eu realmente gostaria de ver todas as decisões de política econômica concentradas nas mãos de um Estado vigoroso e totalmente independente e não fragilizado pelas forças pluralistas de natureza corporativista… Estou procurando a força do Estado na intensidade e não na abrangência de sua política econômica. (…)Compartilho a opinião de que as velhas fórmulas da democracia parlamentar demonstraram sua futilidade. As pessoas precisam se acostumar com o fato de que há também uma democracia presidencial, autoritária, sim, e até mesmo – horribile dictum – uma democracia ditatorial.”
Michel Foucault discorreu com abrangência e profundidade sobre o significado do neoliberalismo. Foucault dá importância secundária à hipótese mais óbvia que afirma o predomínio dos nexos mercantis sobre o conjunto das relações sociais. Para o filósofo, “a sociedade regulada com base no mercado em que pensam os neoliberais é uma sociedade em que o princípio regulador não é tanto a troca de mercadorias quanto os mecanismos da concorrência… Trata-se de fazer do mercado, da concorrência e, por consequência, da empresa o que poderíamos chamar de ‘poder enformador da sociedade’”.
Contrariamente ao que imaginam detratores e adeptos, diz Foucault, o neoliberalismo é uma “prática de governo” na sociedade contemporânea. O credo neoliberal não pretende suprimir a ação do Estado, mas introduzir a regulação do mercado para preservar a concorrência e impedir as interferências nefastas da proteção social aos “ineficientes”.
Em 1942, Wilhelm Röpke revisitou as categorias Dominium e Imperium. Dominium significa “dominância sobre as coisas”, Imperium significa “dominância sobre os homens”. Ele diz: “Imperium e Dominium estão separados no mundo do liberalismo clássico”. Já o neoliberalismo deve manter a convergência entre essas duas esferas, o que corresponde à visão de um “governo duplo”: haveria um mundo de economia e da propriedade, coexistindo com outro mundo, o dos espaços jurídico-políticos onde vivem e padecem os homens de carne e osso.
Corey Robin, em artigo sobre as afinidades entre Nietzsche e Hayek, afirma que o economista austríaco admite a necessidade das “decisões de uma elite governante” com antidoto às trapalhadas da malta ignara. Nas páginas do famoso livro The Road to Serfdom, Hayek escreve: “O empregador e o indivíduo independente estão empenhados em definir e redefinir seu plano de vida, enquanto os trabalhadores cuidam, em grande medida, de se adaptar a uma situação dada”. Ao trabalhador de Hayek faltam responsabilidade, iniciativa, curiosidade e ambição. É um perdedor.
Por isso, nos escritos político-jurídicos, Hayek não hesita em escolher o liberalismo diante dos riscos da democracia. “Há um conflito irreconciliável entre democracia e capitalismo – não se trata da democracia como tal, mas de determinadas formas de organização democrática… Agora tornou-se indiscutível que os poderes da maioria são ilimitados e que governos com poderes ilimitados devem servir às maiorias e aos interesses especiais de grupos econômicos. Há boas razões para preferir um governo democrático limitado, mas devo confessar que prefiro um governo não democrático, limitado pela lei, a um governo democrático ilimitado (e, portanto, essencialmente sem lei).”
O poeta e crítico literário Anis Shivani reconhece que as leis do Imperium conseguiram submeter os mais frágeis. “Em vez de reivindicarem a proteção social como um direito legítimo, os cidadãos sentem-se culpados, vexados e deprimidos por sua dependência dos programas governamentais.”
Convencidos de sua liberdade, os indivíduos livres entregam seu destino aos grilhões da concorrência e às ilusões da meritocracia. Transtornados por suas culpas, os perdedores acomodam-se aos suplícios da exclusão e da desigualdade.
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