Ilustração: Grant Jurius |
O ex-chanceler alemão Gerhard Schroeder confirmou, em entrevista recente ao jornal Die Zeitung, que um acordo para acabar com a guerra na Ucrânia esteve bem perto de ser alcançado, quando os negociadores se reuniram em Istambul, na primavera passada.
Este acordo previa o fim da “longa marcha” da Otan para o Leste, a neutralidade ucraniana, garantias de segurança internacional para ambas as partes do conflito e arranjos internos para reintegrar os territórios separatistas no Donbass.
No entanto, o acordo foi abandonado na última hora, por pressão direta dos EUA e Reino Unido sobre o governo ucraniano.
À época, o jornal ucraniano Ukrainskaya Pravda – insuspeito de qualquer apoio à Rússia – chegou a informar que um acordo de paz havia sido obtido, mas que fora abandonado, no último minuto, após a intervenção do então primeiro-ministro britânico Boris Johnson.
Perdeu-se uma oportunidade de ouro para se colocar um fim à guerra, logo em seu início.
Terminar a guerra rapidamente teria feito uma grande diferença, principalmente em vidas.
Embora os principais dados permaneçam obscuros e as estimativas sejam contestadas, é certo que o maior conflito da Europa desde a Segunda Guerra Mundial já resultou em várias centenas de milhares de baixas militares.
Algumas fontes falam em 500 mil mortos. Os números oficiais sobre vítimas civis são muito mais baixos (9.614 mortes), mas a ONU adverte que devem ser subestimados.
Além disso, há mais de 6,2 milhões de refugiados ucranianos oficialmente registrados em todo o mundo e 5,1 milhões de pessoas deslocadas internamente.
De acordo com o Banco Mundial, o PIB da Ucrânia caiu quase um terço em 2022, empurrando um quarto da população do país para abaixo da linha da pobreza.
A Ucrânia vive de ajuda internacional. Serão necessários ao menos US$ 420 bilhões para reconstruir o país.
Todo esse sacrifício está sendo basicamente feito em razão da obsessão dos EUA e a Otan de derrotar militarmente a Rússia e “derrubar” Putin.
É evidente que a Rússia nunca pretendeu e nem tem condições de fazer uma guerra de ocupação da Ucrânia, muito menos de voltar a “conquistar” o Leste europeu, como afirma o discurso paranoico e falacioso reproduzido acriticamente em muitos meios de comunicação ocidentais.
Uma coisa é o que possam pensar Dugin e assemelhados. Outra coisa é a realidade.
Assim, a possibilidade de um cessar-fogo e de um acordo de paz sempre existiu. Mas continua a ser ignorada por um unilateralismo belicoso.
Um unilateralismo que vê a ordem mundial como um jogo de soma zero, na qual eventuais “ganhos” dos EUA só podem resultar de “perdas” de países que não se alinham com sua geopolítica, como China e Rússia.
Uma ordem assentada em “regras” que excluem multilateralismo e multipolaridade. Assentada numa ONU totalmente enfraquecida. Assentada no desregramento.
Saliente-se que o mal denominado “plano de paz” de Zelensky é apenas uma proposta inviável de rendição incondicional da Rússia.
O mundo também acabou de perder outra oportunidade para salvar vidas, com o veto dos EUA à Resolução apresentada pelo Brasil no Conselho de Segurança da ONU, com o intuito de evitar mais mortes em Gaza, e mesmo em Israel.
O resultado lamentável das votações mais recentes no Conselho de Segurança da ONU demonstra que a Resolução apresentada pelo Brasil era a solução possível e correta, apresentada na hora apropriada.
Os EUA, que depois reconheceram explicitamente que a nossa Resolução era muito boa, a vetaram por motivos políticos menores, de protagonismo geopolítico do governo Biden, em busca de sua reeleição.
Quem paga o preço dessa inoperância do sistema multilateral de segurança coletiva é a população civil indefesa de Gaza, submetida a bombardeios implacáveis e ao bloqueio do acesso à água, aos alimentos, à energia, ao atendimento médico. Até a comunicação já foi também bloqueada.
Essa população, que vive cercada, não tem, ao contrário do que acontece com a população ucraniana, como escapar daquilo que o Secretário-Geral da ONU bem definiu como “punição coletiva”. Não tem para onde ir, onde se refugiar. Os 32 brasileiros continuam lá, implorando para não morrer.
Na realidade, ninguém a quer. Muito menos os que apoiam a guerra, como os EUA e países europeus.
Agora, com o início da incursão terrestre a Gaza, o governo de Israel, secundado pelos EUA, não vai mais recuar e permitir qualquer “pausa humanitária”. Ao contrário, a violência vai se intensificar e se expandir.
A campanha seguirá, sistemática e implacável, por terra, ar e mar. Não haverá Norte e Sul, em Gaza. Todos os pontos cardeais serão pontos de encontro com a morte.
A tendência inexorável é a ampliação da carnificina insana. Em Gaza, morre uma criança a cada nove minutos. Quantas mais passarão a morrer agora, com a guerra total?
Operações militares em áreas urbanas densamente povoadas resultam em morticínio, como os que aconteceram em Faluja e Mosul. Israelenses e os reféns do Hamas também morrerão.
Tudo em nome da autodefesa. Porém, autodefesa não é carta-branca para barbárie.
Com efeito, o direito à autodefesa, assegurado na Carta da Nações Unidas, não pode resultar no atropelamento do direito humanitário internacional, normatizado nas Convenções de Genebra, e das disposições do Estatuto de Roma.
A continuidade do conflito deverá resultar numa catástrofe humanitária sem precedentes e na elevação das tensões geopolíticas mundiais, de consequências imprevisíveis. O alastramento geográfico da guerra é outra possibilidade que causa justificado alarme.
António Guterres foi crucificado simplesmente porque contextualizou historicamente o conflito atual, afirmando que ele não surgiu num vácuo.
De fato, nenhum conflito dessas dimensões surge num vácuo. Nem em Gaza, nem na Ucrânia.
O que está no vácuo, tanto na Ucrânia quanto em Gaza, é a paz, esperando por racionalidade e humanidade.
* Marcelo Zero é sociólogo e especialista em Relações Internacionais.
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