quinta-feira, 11 de novembro de 2010

Comunicação: uma questão estratégica

Reproduzo artigo de Bia Barbosa, publicado no sítio Carta Maior:

Num processo que envolveu mais de 30 mil pessoas em todo o país, a I Conferência Nacional de Comunicação teve como uma de suas principais resoluções, aprovada por representantes do governo, da sociedade civil e do empresariado, a necessidade da construção de um novo marco regulatório para o país. Ultrapassada – da década de 60 – e pouco democrática, a legislação que hoje rege o setor tem se mostrado um entrave não apenas para o desenvolvimento da própria mídia no país como também um obstáculo considerável para a consolidação da democracia brasileira. A um mês de completar o aniversário de um ano da I Confecom, o governo Lula dá um passo significativo para transformar essa realidade e sinaliza: o governo Dilma deve tratar as mudanças nessa área como prioritárias.

Foi este o tom do discurso, corajoso, do ministro Franklin Martins, da Secretaria de Comunicação da Presidência da República, nesta terça (09) durante a abertura do Seminário Internacional Comunicações Eletrônicas e Convergência de Mídias, em Brasília. Para uma platéia repleta de empresários, organizações da sociedade civil, acadêmicos e convidados estrangeiros, Franklin colocou o dedo numa ferida que, pelo menos publicamente, já tinha sido reconhecida pelo Executivo Federal desde a Confecom, mas que até este momento deixava dúvidas sobre quando e o quanto seria de fato enfrentada. Depois de viajar por diversos países para conhecer como outras democracias estão lidando com o processo de convergência tecnológica, foi hora de trazer especialistas internacionais para Brasília e dar o pontapé público neste debate, “olhando pra frente”, como ele deixou claro.

“Cada vez mais as fronteiras entre radiodifusão e telecomunicação vão se diluindo. Em pouco tempo, para o cidadão será indiferente se o sinal que recebe no celular ou no computador vem da radiodifusão ou das teles. A convergência de mídia é um processo que está em curso e ninguém vai detê-lo. Por isso é bom olhar pra frente, este é o futuro. E regular esta questão será um desafio, porque sem isso não há segurança jurídica nem como a sociedade produzir um ambiente onde o interesse público prevaleça sobre os demais”, afirmou.

O governo reconheceu que, aqui, o desafio se mostra maior do que em outros países, porque, além da legislação atrasada, “acumularam-se problemas imensos, que foram sendo encostado ao longo do tempo”. Para o ministro, a legislação brasileira é um cipoal de gambiarras, que não enfrenta as questões de fundo, e que inclusive não responde aos princípios estabelecidos pela própria Constituição Federal.

“Criou-se, na área de comunicação, uma terra de ninguém. Todos sabemos, por exemplo, que deputados e senadores não podem ter concessões de rádio e TV. Mas todos sabemos que eles tem, através de subterfúgios, e ninguém faz nada. A discussão foi sendo evitada. E a oportunidade é discutir tudo isso agora, legislando de uma forma mais permanente, integradora, cidadã e democrática”, disse Franklin Martins.

Fantasmas no sótão

A pretensão do governo é fazer as mudanças no marco regulatório através de um processo público, aberto e transparente, para que a sociedade brasileira como um todo – e não apenas um grupo ou outro – decida seu caminho. Até o final da gestão Lula, um ante-projeto de lei, que vem sendo elaborado por um grupo de trabalho interministerial, será apresentado à equipe da presidente eleita Dilma Rousseff, que então decidirá quando e como apresentá-lo ao Congresso Nacional. É neste debate público que o grupo de trabalho deve basear suas proposições.

Um dos maiores desafios nessa jornada, no entanto, parece ir além da própria convergência tecnológica e suas inúmeras inovações. Trata-se de, exatamente, criar as condições para que o debate público de fato aconteça, de forma plural e participativa. Foi este o desejo da I Conferência de Comunicação, que agora parece contar com a vontade política do governo Lula para ser colocado em marcha.

“O problema é grande. Os fantasmas passeiam por aí arrastando correntes, impedindo que a gente ouça o que tem que ouvir. Se formos capazes de nos livrar dos fantasmas e não os deixarmos controlar nossa discussão, avançaremos. Isso interessa à sociedade como um todo, não é uma discussão apenas econômica. A comunicação diz respeito à cidadania, à participação política e à produção cultural, e por isso a sociedade deve participar diretamente”, afirmou Franklin Martins. E deu o recado: “convido a todos então a deixar seus fantasmas no sótão, que é onde eles se sentem melhor. Vamos nos desarmar dos preconceitos. Essa agenda está na mesa e será realizada, num clima de entendimento ou de enfrentamento”.

Dentre os fantasmas que precisam ser deixados no porão está a tese – tão difundida pelos grandes meios de comunicação – de que regulação é sinônimo de censura à imprensa. Na abertura do seminário internacional, foi necessário afirmar mais uma vez, para quem já deveria estar convencido disso, que o Brasil goza de absoluta liberdade de imprensa.

“Essa história de que a liberdade de imprensa está ameaça é uma bobagem, um truque, isso não está em jogo. A liberdade de imprensa significa a liberdade de imprimir, divulgar, de publicar. A essa não deve, não pode e não haverá qualquer tipo de restrição. Isso não significa que não pode haver regulação do setor. Vocês verão relatos neste evento de diversas democracias, e verão que em todas elas há regulação, o que não significa nada que haja censura”, repetiu.

Sem explicitar, o governo Lula acabou admitindo que deixou a desejar no campo das comunicações. E para os participantes da sociedade civil que vieram a Brasília conhecer as experiências de outros países, talvez esta tenha sido a mensagem mais alentadora: esta área deve ser tratada com prioridade no governo Dilma.

“Estou convencido de que a área de comunicação terá, no próximo governo, o mesmo tratamento que teve a energia no governo Lula. Algo estratégico para o crescimento. Ou se produz um novo marco regulatório ou vamos perder o bonde. Em 2008, a radiodifusão faturou R$ 11,5 bilhões; e as empresas de telecomunicações, R$ 130 bilhões. Em 2009, os números foram R$ 13 bilhões e R$ 180 bilhões respectivamente. É evidente que, se não houver regulação, a radiodifusão será atropelada por uma jamanta. E se não houver o debate, quem vai regular é o mercado. E quando o mercado regula, quem ganha é o mais forte”, avisou Franklin.

“É necessário regular, criar políticas públicas e gerar um ambiente para que a sociedade se sinta não só usuária dos serviços de comunicação, mas cidadã. Se formos capazes de entender isso, teremos mais vozes falando, mais opiniões se expressando no debate público. É “mais” e não “menos” o que está em jogo neste processo”, concluiu.

Mais interesse público

Também em sintonia com o que apontou a I Confecom e com a linha política manifestada pela Secretaria de Comunicação, uma das primeiras participações internacionais no seminário expôs objetivamente os pontos nevrálgicos da legislação brasileira que precisam avançar para que o setor, de fato, permita a expressão dessa multiplicidade de vozes. O canadense Toby Mendel, diretor executivo do Centro de Direito e Democracia, organização internacional de direitos humanos com foco no conhecimento legal sobre direitos fundamentais para a democracia, incluindo o direito à informação, a liberdade de expressão e o direito de participação, apresentou o resultado de um estudo encomendado pela Unesco sobre o marco regulatório em 10 grandes democracias, incluindo o Brasil. E, a partir de padrões internacionais, fez recomendações para o processo que se inicia em território nacional.

Uma delas é a de ampliar a transparência e garantir o interesse público nos processos de renovação das concessões de rádio e TV. “Em muitos países, este momento é uma oportunidade para avaliar mudanças que precisam ser feitas pelo concessionário, para apontar eventuais regras que não tenham sido respeitadas. No Brasil, esta avaliação não acontece”, disse Toby Mendel.

A prática reforça outros problemas da legislação não enfrentados pelo Estado brasileiro: a regulação da propriedade privada dos meios – com medidas como a proibição da propriedade cruzada – e a garantia da liberdade de expressão.

“A liberdade de expressão vai além do direito do emissor dizer o que pensa. É também o direito do receptor, do telespectador, do leitor, receber uma variedade de informações e de pontos de vista. Se a propriedade dos meios não é regulada, isso pode até ser ok do ponto de vista do emissor, mas o direito do receptor de receber idéias plurais começa a ser reduzido. Ou seja, o Estado não pode simplesmente deixar o mercado agir”, afirmou o consultor da Unesco.

Na mesma linha, Mendel apontou a importância de regras para a difusão de conteúdo na radiodifusão, como a proteção de crianças, o combate a discursos que violem os direitos humanos e a promoção do jornalismo imparcial. É preciso ainda regulamentar o artigo da Constituição que garante percentuais para a difusão de conteúdos regionais e independentes nas emissoras de rádio e TV e garantir o direito de resposta.

“Tudo isso está na Constituição, mas não é cumprido. Também é preciso haver um sistema que receba queixas neste sentido, um órgão regulador independente que pode aplicar sanções diante do descumprimento dessas regras”, explicou Mendel, que defendeu ainda a importância do fortalecimento do sistema público de comunicação e da comunicação comunitária brasileira.

A lista é grande, e foi sendo recheada com outras sugestões vindas dos representantes dos demais países presentes ao seminário – o que apenas reforça e confirma o tamanho do desafio que o Brasil tem pela frente se quiser mesmo mexer neste vespeiro.

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