Reproduzo artigo de Antonio Luiz M. C. Costa, publicado na revista CartaCapital:
O plano A, repressão policial e militar pura e simples, não funcionou. O povo não se intimidou com jatos d’água, cassetetes, balas de borracha e gás lacrimogêneo. Segundo jornalistas do Wall Street Journal, Hosni Mubarak ordenou ao ministro do Interior, general Habib al-Adly, atirar nos manifestantes para matar, mas o assistente militar deste, o general Ahmed Ramzy, recusou a ordem.
Ante o impasse, o presidente ordenou ao Exército ocupar as ruas e o ministro do Interior, furioso, ordenou à polícia abandonar seus postos e “deixar os manifestantes experimentar a anarquia” – o que piorou o caos e aparentemente fez Al-Adly cair em desgraça. Foi destituído, teve os bens congelados, foi proibido deixar o país e, segundo a rede Al-Arabiya, está sendo investigado por envolvimento no atentado do réveillon contra a igreja copta, que ele tinha atribuído a fundamentalistas palestinos.
O plano B, convocar contramanifestações – que aparentemente partiu do “baixo clero” do governista Partido Nacional Democrático (PND) – também deu em nada. Ao contrário do que aconteceu no Irã de 2009, quando Mahmoud Ahmadinejad se mostrou capaz de mobilizar massas pelo menos equivalentes às da oposição de Mir-Hossein Mousavi, no Egito o pequeno número e a brutalidade dos supostos partidários de Hosni Mubarak, juntamente com as identificações de muitos dos capturados pelos oposicionistas, serviram para demonstrar que suas bases não vão além de policiais à paisana, integrantes (literalmente) de carteirinha do partido governista e provocadores pagos.
O plano C pareceu ser a estratégia de Tancredi em O Leopardo, o romance de Giuseppe Tomasi di Lampedusa. Seu tio, dom Fabrizio, tem seu feudo siciliano ameaçado quando Garibaldi invade o velho reino das Duas Sicílias para uni-lo ao norte em uma Itália unificada. O sobrinho decide se unir às forças invasoras e explica: “Se nós não estivermos lá, eles fazem uma República. Se quisermos que tudo fique como está, é preciso que tudo mude”. Com a promessa de negociar emendas na Constituição nos próximos meses e de realizar eleições presidenciais em setembro sem a participação do velho ditador ou de seu filho Gamal, o governo esperou desmobilizar os manifestantes enquanto assegurava uma transição sob seu controle e a manutenção do regime sem grandes mudanças além de uma superficial troca de guarda.
Mas se cabe a comparação de Mubarak com dom Fabrizio, seu recém-oficializado vice-presidente Omar Suleiman se mostrou longe da maquiavélica ousadia de Tancredi. As concessões que anunciou ficaram muito aquém das exigências dos Estados Unidos e dos seus aliados europeus – nem se fale das massas egípcias – e foram acompanhadas de uma reverência quase religiosa, descabida a essa altura dos acontecimentos, para com “nosso pai Mubarak”, já descartado pelas potências e odiado pelos manifestantes. Foi dizer de maneira demasiado explícita que não se pretendiam mudanças reais.
A proposta de uma “abertura lenta e gradual” ao estilo dos generais Geisel e Golbery só teria esperança de funcionar se fosse oferecida antes que as massas estejam de fato nas ruas exigindo cabeças – como aconteceu no Brasil, Chile e Uruguai, mas não, por exemplo, na Argentina. Em vez de desmobilizar os protestos, a oferta soou como insulto e os acirrou. Muitas das principais forças de oposição recusaram-se a dialogar dentro desses limites e as manifestações tomaram novo ímpeto em 8 de janeiro, voltando a encher a Meydan Tahrir (Praça da Libertação) e transbordando para as ruas vizinhas.
Figuras conhecidas da mídia egípcia juntaram-se às manifestações, inclusive atores e atrizes e as âncoras da tevê estatal Shahira Amin e Soha Ennakkash. Tão conhecidas no Egito quanto, digamos, Fátima Bernardes e Ana Paula Padrão no Brasil, demitiram-se para não ter de mentir em nome de Mubarak. O próprio jornal do governo, Al-Ahram, passou a fazer uma cobertura favorável às manifestações.
No dia seguinte, Suleiman insistiu em que Mubarak é um “herói de guerra” e que “insultá-lo é insultar o Egito”, declarou que não toleraria a continuação da ocupação da praça, afastou a possibilidade de entregar o poder a um governo de transição e disse que “a única alternativa para o diálogo é um golpe” – uma aparente ameaça de reverter ao plano A.
O chanceler egípcio Ahmed Aboul Gheit se disse “estarrecido” com a “imposição” dos EUA transmitida pelo vice-presidente Joe Biden – que pediu suspensão imediata do estado de emergência em vigor desde o início do governo Mubarak, que permite prisão sem acusação prévia – alegando falta de “condições de segurança”. “Deem-me tempo para controlar e estabilizar o país, para estabilizar o Estado, e então pensaremos no assunto.” Ou não assimilou a derrota, ou assumiu uma postura de “ou nós ou o dilúvio”.
Gheit também reforçou a advertência de Suleiman de que o Exército poderia agir se “aventureiros” tentassem tomar o poder. Mas a oposição não pareceu muito impressionada: o Exército tem mantido uma postura neutra e muitos soldados e oficiais têm se confraternizado com a oposição. Na pior das hipóteses, o povo não vê razões para acreditar que um novo ditador militar venha a ser pior que o atual.
Os manifestantes voltaram a atacar instalações do governo em várias partes do país e bloquearam a sede do Legislativo, impedindo a entrada de deputados governistas e reafirmando, com faixas e palavras de ordem, que querem a queda de todo o regime e não só de Mubarak. Enquanto as negociações entre governo e oposição chegavam à beira do colapso, greves ameaçaram parar meios de comunicação, indústrias, serviços públicos e transportes, inclusive o Canal de Suez, reivindicando a demissão do presidente, a dissolução do Parlamento, a remoção do PND do governo, o aumento do salário mínimo e a abolição da lei de emergência.
Como notou o New York Times, pode ser um ponto de inflexão: o movimento operário organizado (não apenas trabalhadores participando de protestos) costuma ser o último a aderir a uma revolução e um de seus fatores mais decisivos. No Irã e na Tunísia, os regimes desabaram de vez quando os trabalhadores entraram na luta com greves em massa.
A tensão aumentou no dia 10. Declarações de militares e políticos indicaram que Mubarak renunciaria e o Conselho Militar se reuniu pela primeira vez desde a guerra de 1973, sem sua presença. Mas o discurso do presidente frustrou terrivelmente a enorme multidão da Meydan Tahrir, limitando-se a confirmar as magras concessões da semana anterior e delegar funções não especificadas a Suleiman. Para a BBC, “foi escrito por alguém que vive numa bolha”. A massa agitou sapatos e gritou: “Fora! Fora!”, em fúria. Parece haver sérias divergências na cúpula militar e partidária do regime.
Enquanto alguns no governo egípcio alimentam ilusões (nem todos: o ministro da Cultura, Gaber Asfour, renunciou dias depois de nomeado, alegando razões de saúde), o Ocidente conduz uma operação de controle de danos. Sem entusiasmo, busca as melhores relações possíveis com uma oposição que, a seu ver, mais cedo ou (não muito) mais tarde, estará no poder. De preferência com um líder laico como El-Baradei, mas com a participação inevitável da Fraternidade Islâmica. A Casa Branca e seus aliados mais próximos não param de dizer a Mubarak e Suleiman que a mudança tem de ser “imediata”, “significativa” e dentro de um cronograma com que “o povo se sinta confortável”.
O problema é que também é preciso tranquilizar os aliados que temem ser desamparados. Israel, Arábia Saudita, Jordânia e União dos Emirados Árabes protestaram, pedindo aos EUA para não abandonar Mubarak. Hillary Clinton parece tê-los atendido parcialmente ao pedir uma “transição ordeira” e dizer que a renúncia imediata de Mubarak poderia complicar o “caminho do Egito para a democracia”. Mas só até certo ponto. Enquanto o cenário piorava nas ruas do Cairo, em 9 de janeiro, o porta-voz do Departamento de Estado, Robert Gibbs, dizia, mais ou menos, “bem-feito”. Ou, para ser mais exato, “não é uma surpresa, dada a falta de passos do governo para ir ao encontro das preocupações do povo. Achamos que mais tem de ser feito e, mais importante, o povo do Egito também acha que mais tem de ser feito”.
O chanceler britânico William Hague, por sua vez, pediu a Israel que baixasse o tom de sua “linguagem beligerante” sobre os protestos árabes, depois que Benjamin Netanyahu falou a seu Parlamento dizendo que o Egito podia “tornar-se outra Gaza, governadas por forças radicais” e que Israel precisa preparar-se para “qualquer possibilidade”. Enquanto isso, a central sindical israelense Histadrut cogita de iniciar sua própria versão dos protestos árabes, discutindo uma greve geral contra os aumentos de preços de alimentos, água e combustíveis.
Como apontou Immanuel Wallerstein, a teimosia do regime Mubarak e a hesitação dos EUA – aflitos para ficar do lado dos vencedores, mas sem saber exatamente quais serão e sem querer perder o apoio dos ditadores e monarcas absolutos de que ainda julgam precisar – fazem do Irã e da Turquia os dois maiores ganhadores com o processo revolucionário que agita os países árabes.
O Irã, que os EUA já favoreceram involuntariamente derrubando seu inimigo Saddam Hussein e abrindo caminho a um governo xiita, simpático aos aiatolás, em Bagdá, ganha outro presente dos deuses (ou melhor, de Alá) com o desmoronamento do governo árabe mais importante para a estratégia ocidental e israelense no Oriente Médio e a ameaça aos regimes da Arábia Saudita e Jordânia. Mesmo que o governo que vier a emergir no Cairo não seja tão fundamentalista e anti-Israel quanto o aiatolá Khamenei e o presidente Ahmadinejad poderiam desejar, o Pentágono e as Forças Armadas israelenses terão mais com que se preocupar do que o programa nuclear de Teerã.
A Turquia, que também não nega apoio aos manifestantes no Egito, tem uma nova oportunidade de se apresentar como defensora da causa árabe, muçulmana e democrática ao mesmo tempo. Se há algumas décadas Ancara era malvista pelos povos árabes, tanto pela lembrança da opressão do antigo Império Otomano quanto por sua aliança com os EUA e Israel, hoje seu governo é o mais popular da região (exceto, é claro, entre os israelenses).
O risco de o Egito se tornar outro Irã, alegado por Israel e pela direita estadunidense, parece pequeno. Mas a melhor hipótese desses pontos de vista, é ver o país- se tornar uma nova Turquia – um país com instituições democráticas e certa liberdade de expressão, mas com um partido islâmico moderado no poder, que busca relações amigáveis tanto com o Irã quanto com o Ocidente e mantém com Israel relações pacíficas, mas muito frias.
Já seria uma mudança drástica no cenário do Oriente Médio, mesmo que não se espalhe para outros países hoje pró-ocidentais. Israel terá de ampliar seus gastos militares, reforçando a fronteira com o Sinai e deixará de ter a cooperação do Egito para sufocar o Hamas em Gaza. A Organização de Libertação da Palestina, que dirige a Autoridade Palestina na Cisjordânia, perderá seu sustentáculo no mundo árabe e sua razão de existir. Não é à toa que Mahmoud Abbas reprime as manifestações de apoio à revolução egípcia em Ramallah, mas provavelmente será em vão. Israel deixará de acreditar na coexistência com um Estado palestino, por frágil e submisso que seja, e seu comportamento tenderá a se tornar mais paranoide e autoritário.
O plano A, repressão policial e militar pura e simples, não funcionou. O povo não se intimidou com jatos d’água, cassetetes, balas de borracha e gás lacrimogêneo. Segundo jornalistas do Wall Street Journal, Hosni Mubarak ordenou ao ministro do Interior, general Habib al-Adly, atirar nos manifestantes para matar, mas o assistente militar deste, o general Ahmed Ramzy, recusou a ordem.
Ante o impasse, o presidente ordenou ao Exército ocupar as ruas e o ministro do Interior, furioso, ordenou à polícia abandonar seus postos e “deixar os manifestantes experimentar a anarquia” – o que piorou o caos e aparentemente fez Al-Adly cair em desgraça. Foi destituído, teve os bens congelados, foi proibido deixar o país e, segundo a rede Al-Arabiya, está sendo investigado por envolvimento no atentado do réveillon contra a igreja copta, que ele tinha atribuído a fundamentalistas palestinos.
O plano B, convocar contramanifestações – que aparentemente partiu do “baixo clero” do governista Partido Nacional Democrático (PND) – também deu em nada. Ao contrário do que aconteceu no Irã de 2009, quando Mahmoud Ahmadinejad se mostrou capaz de mobilizar massas pelo menos equivalentes às da oposição de Mir-Hossein Mousavi, no Egito o pequeno número e a brutalidade dos supostos partidários de Hosni Mubarak, juntamente com as identificações de muitos dos capturados pelos oposicionistas, serviram para demonstrar que suas bases não vão além de policiais à paisana, integrantes (literalmente) de carteirinha do partido governista e provocadores pagos.
O plano C pareceu ser a estratégia de Tancredi em O Leopardo, o romance de Giuseppe Tomasi di Lampedusa. Seu tio, dom Fabrizio, tem seu feudo siciliano ameaçado quando Garibaldi invade o velho reino das Duas Sicílias para uni-lo ao norte em uma Itália unificada. O sobrinho decide se unir às forças invasoras e explica: “Se nós não estivermos lá, eles fazem uma República. Se quisermos que tudo fique como está, é preciso que tudo mude”. Com a promessa de negociar emendas na Constituição nos próximos meses e de realizar eleições presidenciais em setembro sem a participação do velho ditador ou de seu filho Gamal, o governo esperou desmobilizar os manifestantes enquanto assegurava uma transição sob seu controle e a manutenção do regime sem grandes mudanças além de uma superficial troca de guarda.
Mas se cabe a comparação de Mubarak com dom Fabrizio, seu recém-oficializado vice-presidente Omar Suleiman se mostrou longe da maquiavélica ousadia de Tancredi. As concessões que anunciou ficaram muito aquém das exigências dos Estados Unidos e dos seus aliados europeus – nem se fale das massas egípcias – e foram acompanhadas de uma reverência quase religiosa, descabida a essa altura dos acontecimentos, para com “nosso pai Mubarak”, já descartado pelas potências e odiado pelos manifestantes. Foi dizer de maneira demasiado explícita que não se pretendiam mudanças reais.
A proposta de uma “abertura lenta e gradual” ao estilo dos generais Geisel e Golbery só teria esperança de funcionar se fosse oferecida antes que as massas estejam de fato nas ruas exigindo cabeças – como aconteceu no Brasil, Chile e Uruguai, mas não, por exemplo, na Argentina. Em vez de desmobilizar os protestos, a oferta soou como insulto e os acirrou. Muitas das principais forças de oposição recusaram-se a dialogar dentro desses limites e as manifestações tomaram novo ímpeto em 8 de janeiro, voltando a encher a Meydan Tahrir (Praça da Libertação) e transbordando para as ruas vizinhas.
Figuras conhecidas da mídia egípcia juntaram-se às manifestações, inclusive atores e atrizes e as âncoras da tevê estatal Shahira Amin e Soha Ennakkash. Tão conhecidas no Egito quanto, digamos, Fátima Bernardes e Ana Paula Padrão no Brasil, demitiram-se para não ter de mentir em nome de Mubarak. O próprio jornal do governo, Al-Ahram, passou a fazer uma cobertura favorável às manifestações.
No dia seguinte, Suleiman insistiu em que Mubarak é um “herói de guerra” e que “insultá-lo é insultar o Egito”, declarou que não toleraria a continuação da ocupação da praça, afastou a possibilidade de entregar o poder a um governo de transição e disse que “a única alternativa para o diálogo é um golpe” – uma aparente ameaça de reverter ao plano A.
O chanceler egípcio Ahmed Aboul Gheit se disse “estarrecido” com a “imposição” dos EUA transmitida pelo vice-presidente Joe Biden – que pediu suspensão imediata do estado de emergência em vigor desde o início do governo Mubarak, que permite prisão sem acusação prévia – alegando falta de “condições de segurança”. “Deem-me tempo para controlar e estabilizar o país, para estabilizar o Estado, e então pensaremos no assunto.” Ou não assimilou a derrota, ou assumiu uma postura de “ou nós ou o dilúvio”.
Gheit também reforçou a advertência de Suleiman de que o Exército poderia agir se “aventureiros” tentassem tomar o poder. Mas a oposição não pareceu muito impressionada: o Exército tem mantido uma postura neutra e muitos soldados e oficiais têm se confraternizado com a oposição. Na pior das hipóteses, o povo não vê razões para acreditar que um novo ditador militar venha a ser pior que o atual.
Os manifestantes voltaram a atacar instalações do governo em várias partes do país e bloquearam a sede do Legislativo, impedindo a entrada de deputados governistas e reafirmando, com faixas e palavras de ordem, que querem a queda de todo o regime e não só de Mubarak. Enquanto as negociações entre governo e oposição chegavam à beira do colapso, greves ameaçaram parar meios de comunicação, indústrias, serviços públicos e transportes, inclusive o Canal de Suez, reivindicando a demissão do presidente, a dissolução do Parlamento, a remoção do PND do governo, o aumento do salário mínimo e a abolição da lei de emergência.
Como notou o New York Times, pode ser um ponto de inflexão: o movimento operário organizado (não apenas trabalhadores participando de protestos) costuma ser o último a aderir a uma revolução e um de seus fatores mais decisivos. No Irã e na Tunísia, os regimes desabaram de vez quando os trabalhadores entraram na luta com greves em massa.
A tensão aumentou no dia 10. Declarações de militares e políticos indicaram que Mubarak renunciaria e o Conselho Militar se reuniu pela primeira vez desde a guerra de 1973, sem sua presença. Mas o discurso do presidente frustrou terrivelmente a enorme multidão da Meydan Tahrir, limitando-se a confirmar as magras concessões da semana anterior e delegar funções não especificadas a Suleiman. Para a BBC, “foi escrito por alguém que vive numa bolha”. A massa agitou sapatos e gritou: “Fora! Fora!”, em fúria. Parece haver sérias divergências na cúpula militar e partidária do regime.
Enquanto alguns no governo egípcio alimentam ilusões (nem todos: o ministro da Cultura, Gaber Asfour, renunciou dias depois de nomeado, alegando razões de saúde), o Ocidente conduz uma operação de controle de danos. Sem entusiasmo, busca as melhores relações possíveis com uma oposição que, a seu ver, mais cedo ou (não muito) mais tarde, estará no poder. De preferência com um líder laico como El-Baradei, mas com a participação inevitável da Fraternidade Islâmica. A Casa Branca e seus aliados mais próximos não param de dizer a Mubarak e Suleiman que a mudança tem de ser “imediata”, “significativa” e dentro de um cronograma com que “o povo se sinta confortável”.
O problema é que também é preciso tranquilizar os aliados que temem ser desamparados. Israel, Arábia Saudita, Jordânia e União dos Emirados Árabes protestaram, pedindo aos EUA para não abandonar Mubarak. Hillary Clinton parece tê-los atendido parcialmente ao pedir uma “transição ordeira” e dizer que a renúncia imediata de Mubarak poderia complicar o “caminho do Egito para a democracia”. Mas só até certo ponto. Enquanto o cenário piorava nas ruas do Cairo, em 9 de janeiro, o porta-voz do Departamento de Estado, Robert Gibbs, dizia, mais ou menos, “bem-feito”. Ou, para ser mais exato, “não é uma surpresa, dada a falta de passos do governo para ir ao encontro das preocupações do povo. Achamos que mais tem de ser feito e, mais importante, o povo do Egito também acha que mais tem de ser feito”.
O chanceler britânico William Hague, por sua vez, pediu a Israel que baixasse o tom de sua “linguagem beligerante” sobre os protestos árabes, depois que Benjamin Netanyahu falou a seu Parlamento dizendo que o Egito podia “tornar-se outra Gaza, governadas por forças radicais” e que Israel precisa preparar-se para “qualquer possibilidade”. Enquanto isso, a central sindical israelense Histadrut cogita de iniciar sua própria versão dos protestos árabes, discutindo uma greve geral contra os aumentos de preços de alimentos, água e combustíveis.
Como apontou Immanuel Wallerstein, a teimosia do regime Mubarak e a hesitação dos EUA – aflitos para ficar do lado dos vencedores, mas sem saber exatamente quais serão e sem querer perder o apoio dos ditadores e monarcas absolutos de que ainda julgam precisar – fazem do Irã e da Turquia os dois maiores ganhadores com o processo revolucionário que agita os países árabes.
O Irã, que os EUA já favoreceram involuntariamente derrubando seu inimigo Saddam Hussein e abrindo caminho a um governo xiita, simpático aos aiatolás, em Bagdá, ganha outro presente dos deuses (ou melhor, de Alá) com o desmoronamento do governo árabe mais importante para a estratégia ocidental e israelense no Oriente Médio e a ameaça aos regimes da Arábia Saudita e Jordânia. Mesmo que o governo que vier a emergir no Cairo não seja tão fundamentalista e anti-Israel quanto o aiatolá Khamenei e o presidente Ahmadinejad poderiam desejar, o Pentágono e as Forças Armadas israelenses terão mais com que se preocupar do que o programa nuclear de Teerã.
A Turquia, que também não nega apoio aos manifestantes no Egito, tem uma nova oportunidade de se apresentar como defensora da causa árabe, muçulmana e democrática ao mesmo tempo. Se há algumas décadas Ancara era malvista pelos povos árabes, tanto pela lembrança da opressão do antigo Império Otomano quanto por sua aliança com os EUA e Israel, hoje seu governo é o mais popular da região (exceto, é claro, entre os israelenses).
O risco de o Egito se tornar outro Irã, alegado por Israel e pela direita estadunidense, parece pequeno. Mas a melhor hipótese desses pontos de vista, é ver o país- se tornar uma nova Turquia – um país com instituições democráticas e certa liberdade de expressão, mas com um partido islâmico moderado no poder, que busca relações amigáveis tanto com o Irã quanto com o Ocidente e mantém com Israel relações pacíficas, mas muito frias.
Já seria uma mudança drástica no cenário do Oriente Médio, mesmo que não se espalhe para outros países hoje pró-ocidentais. Israel terá de ampliar seus gastos militares, reforçando a fronteira com o Sinai e deixará de ter a cooperação do Egito para sufocar o Hamas em Gaza. A Organização de Libertação da Palestina, que dirige a Autoridade Palestina na Cisjordânia, perderá seu sustentáculo no mundo árabe e sua razão de existir. Não é à toa que Mahmoud Abbas reprime as manifestações de apoio à revolução egípcia em Ramallah, mas provavelmente será em vão. Israel deixará de acreditar na coexistência com um Estado palestino, por frágil e submisso que seja, e seu comportamento tenderá a se tornar mais paranoide e autoritário.
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