Reproduzo artigo de Wladimir Pomar, publicado no sítio Correio da Cidadania:
Conta-se que Galileu, obrigado pela Inquisição católica a abjurar sua crença de que a Terra se movia, teria dito à meia voz que, apesar de tudo, ela se movia. O mesmo parece estar ocorrendo agora em relação às grandes massas populares de países da África do Norte, desdizendo as afirmações de uma certa Inquisição intelectual para a qual a época das grandes mobilizações e revoltas sociais era coisa do passado.
O capitalismo teria criado uma rede de mecanismos democráticos de tal ordem que seria possível evitar que, em algum momento, os pobres, os trabalhadores e mesmo setores médios se lançassem à luta. É verdade que aquela Inquisição fazia exceção a países que consideravam regidos por ditaduras, que a imprensa ocidental citava nominalmente como se restringindo à Coréia do Norte, Cuba, China, Iraque, Irã, Venezuela, Líbia, Chade e Zimbábue, pouco importando que alguns deles mantenham democracias de tipo liberal.
Por outro lado, essa mesma imprensa nada dizia sobre regimes ditatoriais na Tunísia, Egito, Iêmen, Bahrein, Marrocos, Arábia Saudita e outros países árabes aliados diletos dos Estados Unidos. O Iraque só se tornou uma ditadura abominável após haver demonstrado certa independência e tentado anexar o Kuwait. Sob o manto protetor dos acordos militares e geopolíticos com a grande democracia americana, tais países pareciam fadados a sucessões dinásticas de longa duração.
No entanto, as bases dessas sociedades se moviam imperceptivelmente, forçadas pelo aumento da miséria, pelos baixos salários, pelas baixas condições de vida e pela ausência de liberdades culturais, sindicais e políticas. Na superfície tudo parecia calmo, embora de vez em quando irrompesse algum fator de desestabilização, logo sufocado pelas eficientes redes de inteligência e repressão policial e militar. Em tais condições, para aqueles que se deixavam convencer pela aparência superficial, as revoltas de massa na Tunísia, Egito, Líbia e outros países da África do Norte causaram grande surpresa.
É natural, assim, que surjam, em conseqüência, interpretações disparatadas sobre os acontecimentos. A mais esdrúxula do momento é aquela que acusa a CIA e o governo norte-americano, através do uso das redes cibernéticas, de haver promovido tais insurreições. O governo dos Estados Unidos teria se dado conta de que aliados como Mubarak e outros, há muitos anos no poder, já não eram servidores eficientes. Promovendo mobilizações sociais do lumpenproletariado e desordeiros, que levassem a uma transição negociada em que tudo continuaria como antes, se livrariam dos servidores desgastados e, de quebra, incentivariam revoltas na Líbia e no Irã. Portanto, numa manobra clássica de Sun Tzu e Mao Zedong, fingiram atacar o secundário para golpear o principal.
Essa teoria conspirativa é idêntica à que credita à CIA a ocorrência das revoluções de veludo na Tchecoslováquia, Hungria e Bulgária, e da revolução sangrenta na Romênia, embora naquela época ainda não existissem as redes cibernéticas com grande poder de mobilização. É evidente que a CIA e os poderosos meios de comunicação ocidentais promoveram uma propaganda massiva contra o socialismo real daqueles países. Porém, qualquer propaganda só tem efeito quando corresponde às aspirações imediatas das grandes massas do povo. Estas massas só se mobilizam e vão para as ruas quando não querem mais viver como até então. E só se atiram contra os fuzis e metralhadoras quando acham que, além disso, não têm mais nada a perder.
Portanto, tanto a propaganda contra o socialismo real, produzida principalmente pelo rádio e televisão dos países ocidentais, quanto a propaganda contra os regimes ditatoriais da África do Norte, promovida em grande escala através da Internet, só tiveram efeito porque as populações desses países já não suportavam mais viver da forma que vinham vivendo. No caso dos países africanos, de populações formadas por trabalhadores assalariados, setores médios empobrecidos e milhões de desempregados transformados em lumpens, era inevitável que as revoltas também contassem com a participação destes últimos.
Assim, queiramos ou não, essa também era a situação das grandes massas do povo líbio, mesmo que seu país não estivesse no rol dos aliados servis dos Estados Unidos, e que estes possam estar se aproveitando das dificuldades de Kadafi para desviar a atenção do mundo dos eventos nos demais países de ditaduras apoiadas pelos americanos. Desqualificar a revolta das massas populares porque o regime é inimigo aparente de nosso inimigo não é um critério muito saudável, pelo menos para quem se diz de esquerda.
Algo parecido ocorre com as divergências sobre estarmos ou não diante de movimentos revolucionários e revoluções, que resultem em mudanças políticas, sociais e econômicas profundas. É verdade que a imprensa ocidental, numa tentativa de esconder sua omissão passada diante dos regimes ditatoriais aliados incondicionais dos Estados Unidos, está divulgando febrilmente as revoltas populares como revoluções de fato.
Mas isso não é novidade. Se até a Globo se transformou de aliada incondicional do regime militar brasileiro em defensora, mesmo tardia, das Diretas Já, seria pedir muito para os governos ocidentais e os Estados Unidos e suas mídias continuarem fiéis a seus antigos amigos árabes. Da mesma forma que não passa de ilusão supor que antigas forças políticas de apoio a tais regimes não vão se reciclar e participar da disputa no processo de mudanças políticas, econômicas e sociais que devem ocorrer, tentando limitá-las ao máximo.
Revoltas populares são indícios de situações revolucionárias. Mas nem todas as situações revolucionárias se transformam em revoluções, seja porque as massas populares não possuem partidos políticos organizados e com capacidade de dirigirem o processo, seja porque o lado oposto se reorganiza, faz concessões e consegue evitar que as transformações sejam profundas. Na maior parte dos países árabes convulsionados o quadro ainda está confuso para que se afirme, com certeza, se estamos diante de revoluções ou de reformas com tintura revolucionária ou conservadora.
De qualquer modo, as massas se movem. Esta parece ser uma lei geral das sociedades, em especial das sociedades de classes, sejam elas ditaduras ou democracias. Afinal, as massas nas democracias européias também estão se mobilizando e, em algumas delas, como na Grécia, quase assumindo o caráter de revolta. E nos Estados Unidos os sindicatos de Wisconsin começam a mostrar que não estão paralisados.
Nessas condições, mesmo em países de regimes democráticos e liberais, com ativa vida parlamentar, partidos de esquerda que se desligam do dia-a-dia das grandes massas populares e não acompanham a evolução imperceptível de seu movimento correm sempre o perigo de perderem o pé da realidade e serem apanhados de surpresa. Por consolo, podem até acusar a CIA ou as forças ocultas, mas isto dificilmente as salvará.
Conta-se que Galileu, obrigado pela Inquisição católica a abjurar sua crença de que a Terra se movia, teria dito à meia voz que, apesar de tudo, ela se movia. O mesmo parece estar ocorrendo agora em relação às grandes massas populares de países da África do Norte, desdizendo as afirmações de uma certa Inquisição intelectual para a qual a época das grandes mobilizações e revoltas sociais era coisa do passado.
O capitalismo teria criado uma rede de mecanismos democráticos de tal ordem que seria possível evitar que, em algum momento, os pobres, os trabalhadores e mesmo setores médios se lançassem à luta. É verdade que aquela Inquisição fazia exceção a países que consideravam regidos por ditaduras, que a imprensa ocidental citava nominalmente como se restringindo à Coréia do Norte, Cuba, China, Iraque, Irã, Venezuela, Líbia, Chade e Zimbábue, pouco importando que alguns deles mantenham democracias de tipo liberal.
Por outro lado, essa mesma imprensa nada dizia sobre regimes ditatoriais na Tunísia, Egito, Iêmen, Bahrein, Marrocos, Arábia Saudita e outros países árabes aliados diletos dos Estados Unidos. O Iraque só se tornou uma ditadura abominável após haver demonstrado certa independência e tentado anexar o Kuwait. Sob o manto protetor dos acordos militares e geopolíticos com a grande democracia americana, tais países pareciam fadados a sucessões dinásticas de longa duração.
No entanto, as bases dessas sociedades se moviam imperceptivelmente, forçadas pelo aumento da miséria, pelos baixos salários, pelas baixas condições de vida e pela ausência de liberdades culturais, sindicais e políticas. Na superfície tudo parecia calmo, embora de vez em quando irrompesse algum fator de desestabilização, logo sufocado pelas eficientes redes de inteligência e repressão policial e militar. Em tais condições, para aqueles que se deixavam convencer pela aparência superficial, as revoltas de massa na Tunísia, Egito, Líbia e outros países da África do Norte causaram grande surpresa.
É natural, assim, que surjam, em conseqüência, interpretações disparatadas sobre os acontecimentos. A mais esdrúxula do momento é aquela que acusa a CIA e o governo norte-americano, através do uso das redes cibernéticas, de haver promovido tais insurreições. O governo dos Estados Unidos teria se dado conta de que aliados como Mubarak e outros, há muitos anos no poder, já não eram servidores eficientes. Promovendo mobilizações sociais do lumpenproletariado e desordeiros, que levassem a uma transição negociada em que tudo continuaria como antes, se livrariam dos servidores desgastados e, de quebra, incentivariam revoltas na Líbia e no Irã. Portanto, numa manobra clássica de Sun Tzu e Mao Zedong, fingiram atacar o secundário para golpear o principal.
Essa teoria conspirativa é idêntica à que credita à CIA a ocorrência das revoluções de veludo na Tchecoslováquia, Hungria e Bulgária, e da revolução sangrenta na Romênia, embora naquela época ainda não existissem as redes cibernéticas com grande poder de mobilização. É evidente que a CIA e os poderosos meios de comunicação ocidentais promoveram uma propaganda massiva contra o socialismo real daqueles países. Porém, qualquer propaganda só tem efeito quando corresponde às aspirações imediatas das grandes massas do povo. Estas massas só se mobilizam e vão para as ruas quando não querem mais viver como até então. E só se atiram contra os fuzis e metralhadoras quando acham que, além disso, não têm mais nada a perder.
Portanto, tanto a propaganda contra o socialismo real, produzida principalmente pelo rádio e televisão dos países ocidentais, quanto a propaganda contra os regimes ditatoriais da África do Norte, promovida em grande escala através da Internet, só tiveram efeito porque as populações desses países já não suportavam mais viver da forma que vinham vivendo. No caso dos países africanos, de populações formadas por trabalhadores assalariados, setores médios empobrecidos e milhões de desempregados transformados em lumpens, era inevitável que as revoltas também contassem com a participação destes últimos.
Assim, queiramos ou não, essa também era a situação das grandes massas do povo líbio, mesmo que seu país não estivesse no rol dos aliados servis dos Estados Unidos, e que estes possam estar se aproveitando das dificuldades de Kadafi para desviar a atenção do mundo dos eventos nos demais países de ditaduras apoiadas pelos americanos. Desqualificar a revolta das massas populares porque o regime é inimigo aparente de nosso inimigo não é um critério muito saudável, pelo menos para quem se diz de esquerda.
Algo parecido ocorre com as divergências sobre estarmos ou não diante de movimentos revolucionários e revoluções, que resultem em mudanças políticas, sociais e econômicas profundas. É verdade que a imprensa ocidental, numa tentativa de esconder sua omissão passada diante dos regimes ditatoriais aliados incondicionais dos Estados Unidos, está divulgando febrilmente as revoltas populares como revoluções de fato.
Mas isso não é novidade. Se até a Globo se transformou de aliada incondicional do regime militar brasileiro em defensora, mesmo tardia, das Diretas Já, seria pedir muito para os governos ocidentais e os Estados Unidos e suas mídias continuarem fiéis a seus antigos amigos árabes. Da mesma forma que não passa de ilusão supor que antigas forças políticas de apoio a tais regimes não vão se reciclar e participar da disputa no processo de mudanças políticas, econômicas e sociais que devem ocorrer, tentando limitá-las ao máximo.
Revoltas populares são indícios de situações revolucionárias. Mas nem todas as situações revolucionárias se transformam em revoluções, seja porque as massas populares não possuem partidos políticos organizados e com capacidade de dirigirem o processo, seja porque o lado oposto se reorganiza, faz concessões e consegue evitar que as transformações sejam profundas. Na maior parte dos países árabes convulsionados o quadro ainda está confuso para que se afirme, com certeza, se estamos diante de revoluções ou de reformas com tintura revolucionária ou conservadora.
De qualquer modo, as massas se movem. Esta parece ser uma lei geral das sociedades, em especial das sociedades de classes, sejam elas ditaduras ou democracias. Afinal, as massas nas democracias européias também estão se mobilizando e, em algumas delas, como na Grécia, quase assumindo o caráter de revolta. E nos Estados Unidos os sindicatos de Wisconsin começam a mostrar que não estão paralisados.
Nessas condições, mesmo em países de regimes democráticos e liberais, com ativa vida parlamentar, partidos de esquerda que se desligam do dia-a-dia das grandes massas populares e não acompanham a evolução imperceptível de seu movimento correm sempre o perigo de perderem o pé da realidade e serem apanhados de surpresa. Por consolo, podem até acusar a CIA ou as forças ocultas, mas isto dificilmente as salvará.
1 comentários:
O poder de decisão das massas populares é indiscutivelmente decisivo em situações de opressão(nas diferentes esferas) . Mas uma revolta de massa, sem direção, sem uma autoridade que as represente, se perde, e tornam-se uns revoltados sem justiça, ou sem justificativa, perdem o foco, e sugerindo ou criando facções. O objetivo de unidade do bem comum deve vir sempre em primeiro lugar. Em uma revolta a opressão política, deve-se guiar pela razão social, desprezando sentimentos individualizados, vinganças isoladas. Isso resultaria numa guerrilha infundada e indefinida.
A palavra de ordem para êxito numa ação revolucionária e organização.Ainda que não ganhe a causa , a luta , mas fico o registro de algo positivo.
Postar um comentário