Por Leonardo Sakamoto, em seu blog:
Um incêndio consumiu parte de uma favela na região de Heliópolis, em São Paulo, matando – até agora – três pessoas segundo os bombeiros. Ninguém sabe a origem do fogo, mas moradores comentam que pode ser um balão.
O poder público não risca o fósforo, gera o curto-circuito, entulha o lixo que foi combustível da desgraça de uma favela. Muito menos acende a estopa do balão.
Da mesma forma, não são as mãos de líderes religiosos segurando a faca, o revólver ou a lâmpada fluorescente que atacam homossexuais nas grandes cidades brasileiras. O Congresso Nacional, por sua vez, nunca ordenou a caçada aos indígenas no Mato Grosso do Sul, que insistem em reclamar terras que seriam suas por direito.
Aliás, volte lá e veja se há uma única impressão digital de homens de bem que moram na capital paulista entre os corpos de pessoas em situação de rua mortas a pauladas por dormirem no lugar errado e causarem pânico estético na população.
Um esforço descomunal é gasto na construção de discursos para tentar dissociar causa e efeito ou justificar o injustificável quando o assunto são temas como a especulação imobiliária, a intolerância religiosa, os interesses de grandes proprietários rurais que operam à margem da lei e ou o mais puro preconceito urbano. Quando deveríamos empregar tempo e recursos para construir processos participativos para a discussão e busca por soluções.
Estou retomando um assunto que já tratei por diversas vezes aqui neste espaço. Falar sobre a política higienista de São Paulo é chover no molhado. Afinal de contas, as empreiteiras e os especuladores imobiliários estão aqui, doando recursos de campanha, emprestando parentes para cargos públicos, influenciando o cumprimento e o não cumprimento de regras, como o plano diretor.
Enquanto isso, mais uma favela queimou em São Paulo.
Na capital paulista, a limpeza pelo fogo levou às lágrimas muitas famílias. E abriu imperceptíveis sorrisos em alguns empresários de olho no erguimento de bancos, salas de concertos e de exposições, teatros, sedes de multinacionais, escritórios da administração pública, restaurantes, equipamentos públicos. E apartamentos, para quem pode pagar, é claro. Sem contar na simples valorização de determinada região com a expulsão dos “indesejáveis” para as franjas da cidade.
Sabe como é, né? Aquele bando de gente pobre só joga o preço do nosso metro quadrado para embaixo e nos afasta, os “homens de bem”, de perto. Temos um constante Pinheirinho em São Paulo, mas como segue a conta-gotas, não vira manchete. Banalizou-se, como a corrupção ou a superexploração do trabalho.
Ao longo do tempo, fomos expulsando os mais pobres para regiões cada vez mais periféricas. Eles, que têm menos recursos financeiros, gastam mais tempo e mais de sua renda com transporte do que os mais ricos que ficaram nas áreas centrais – com exceção das Alphabolhas da vida. Cortiços e pequenas favelas em regiões de fácil acesso abrigam centenas de famílias. Sem o mínimo de saneamento básico, às vezes sem água e sem luz. A maioria dos moradores desses locais prefere continuar assim, pois transporte é o que não falta e a casa fica próxima ao trabalho – ao contrário do que acontece em bairros da periferia, onde o trajeto até o centro chega a levar três horas, dentro de ônibus superlotados e caros.
O governo brasileiro inundou o país com bilhões em recursos para a construção, com o objetivo de modernizar a infraestrutura e erguer moradias, girando a economia e se esqueceu de que tinha gente morando nos lugares onde se quer construir.
Lembro-me de outra situação ocorrida há alguns anos. Em perseguição a bandidos, a Guarda Civil do município de São Caetano do Sul invadiu a favela de Heliópolis, em São Paulo. Uma jovem morreu baleada. A população revoltada foi à rua, ateou fogo em ônibus. Queria protestar, se fazer ouvida. A polícia dialogou com balas de borracha e bombas de gás.
Autoridades não demoraram em chamá-los de vândalos. Parte da mídia comprou a ideia. Uma repórter, com os olhos arregalados do tamanho do mundo, demonstrava o pânico de quem nunca imaginaria que aquela massa disforme poderia decretar o fechamento de um bairro. A polícia falava em “contenção”, comentaristas na TV em “imposição da ordem”. Nada sobre as reais causas da morte. Nada sobre um Estado que não está nem aí para quem (sobre)vive nas franjas da sociedade. Nada sobre o fato de uma outra pessoa ter morrido em Heliópolis em uma situação semelhante não faz muito tempo. Por pouco não pediram para colocar esses miseráveis pulhas de volta para o lugar deles.
Um punhado de colegas cobriam o protesto dos moradores da favela do Moinho, em frente à Prefeitura de São Paulo, nesta sexta (5). A comunidade, uma das vítimas dos incêndios “espontâneos” que atingiram favelas em 2011 e 2012, exigia regularização fundiária e urbanização com participação dos moradores nas decisões. Em 2010, a Polícia Militar usou spray de pimenta contra moradores do Jardim Pantanal – aquele no extremo da Zona Leste, mergulhado no esgoto durante uma época de chuvas – que enquanto protestavam por moradia em frente à Prefeitura. Desta vez, não foram retirados de lá. Mas falta muito para serem ouvidos. E, perceba, eles não querem soluções prontas e sim participar da elaboração dessas, ajudar o poder público a construir alternativas dignas de moradia para quem já estava lá.
Um registro feito pela repórter Martha Alves, da Folha de S. Paulo, que cobriu este último incêndio na comunidade da Ilha, mostra bem que a rua vai, enfim, entrando no imaginário paulistano não mais como lugar de passagem que pertence aos carros, mas como espaço público que pertence a todos. Um metalúrgico desempregado de 25 anos afirmou que só deixaria o local onde ele e sua esposa perderam tudo, quando recebesse uma posição da Prefeitura sobre o destino dos desabrigados ou o pagamento de auxílio-aluguel. “Vi as paredes da minha casa desabando e comecei a chorar de desespero”, disse Marco Almeida. ”Já tem protesto pelo país, a gente para tudo.”
“O povo” não acordou agora. Quem acordou foi uma parte – o que é ótimo. Outra parte nunca dormiu, afinal não tinha cama para tanto ou ficava apreensivo na chuva para o barraco não ser engolido por ela. Esse está protestando por uma vida digna, por moradia, desde sempre, recebendo porrada da polícia, o desprezo do poder público e o nojinho da classe média como resposta. Uma das grandes conquistas de junho foi a possibilidade de se manifestar publicamente sem ter a certeza de que isso resultará em um olho roxo. Ou em uma narrativa incompleta e equivocada por alguns colegas, repórteres de gabinete. A pancadaria policial do dia 13 e o repúdio à ela pelos mais de 200 mil do dia 17 mudaram a postura da força pública – pelo menos por enquanto.
Mas agora começa a fase de não apenas deixar falar, mas chamar para o diálogo e construir junto.
Enfim, o grosso do povo vai acordar mesmo no momento em que a maioria pobre deste país perceber que é explorada sistematicamente. Fico torcendo loucamente para que isso aconteça.
Um incêndio consumiu parte de uma favela na região de Heliópolis, em São Paulo, matando – até agora – três pessoas segundo os bombeiros. Ninguém sabe a origem do fogo, mas moradores comentam que pode ser um balão.
O poder público não risca o fósforo, gera o curto-circuito, entulha o lixo que foi combustível da desgraça de uma favela. Muito menos acende a estopa do balão.
Da mesma forma, não são as mãos de líderes religiosos segurando a faca, o revólver ou a lâmpada fluorescente que atacam homossexuais nas grandes cidades brasileiras. O Congresso Nacional, por sua vez, nunca ordenou a caçada aos indígenas no Mato Grosso do Sul, que insistem em reclamar terras que seriam suas por direito.
Aliás, volte lá e veja se há uma única impressão digital de homens de bem que moram na capital paulista entre os corpos de pessoas em situação de rua mortas a pauladas por dormirem no lugar errado e causarem pânico estético na população.
Um esforço descomunal é gasto na construção de discursos para tentar dissociar causa e efeito ou justificar o injustificável quando o assunto são temas como a especulação imobiliária, a intolerância religiosa, os interesses de grandes proprietários rurais que operam à margem da lei e ou o mais puro preconceito urbano. Quando deveríamos empregar tempo e recursos para construir processos participativos para a discussão e busca por soluções.
Estou retomando um assunto que já tratei por diversas vezes aqui neste espaço. Falar sobre a política higienista de São Paulo é chover no molhado. Afinal de contas, as empreiteiras e os especuladores imobiliários estão aqui, doando recursos de campanha, emprestando parentes para cargos públicos, influenciando o cumprimento e o não cumprimento de regras, como o plano diretor.
Enquanto isso, mais uma favela queimou em São Paulo.
Na capital paulista, a limpeza pelo fogo levou às lágrimas muitas famílias. E abriu imperceptíveis sorrisos em alguns empresários de olho no erguimento de bancos, salas de concertos e de exposições, teatros, sedes de multinacionais, escritórios da administração pública, restaurantes, equipamentos públicos. E apartamentos, para quem pode pagar, é claro. Sem contar na simples valorização de determinada região com a expulsão dos “indesejáveis” para as franjas da cidade.
Sabe como é, né? Aquele bando de gente pobre só joga o preço do nosso metro quadrado para embaixo e nos afasta, os “homens de bem”, de perto. Temos um constante Pinheirinho em São Paulo, mas como segue a conta-gotas, não vira manchete. Banalizou-se, como a corrupção ou a superexploração do trabalho.
Ao longo do tempo, fomos expulsando os mais pobres para regiões cada vez mais periféricas. Eles, que têm menos recursos financeiros, gastam mais tempo e mais de sua renda com transporte do que os mais ricos que ficaram nas áreas centrais – com exceção das Alphabolhas da vida. Cortiços e pequenas favelas em regiões de fácil acesso abrigam centenas de famílias. Sem o mínimo de saneamento básico, às vezes sem água e sem luz. A maioria dos moradores desses locais prefere continuar assim, pois transporte é o que não falta e a casa fica próxima ao trabalho – ao contrário do que acontece em bairros da periferia, onde o trajeto até o centro chega a levar três horas, dentro de ônibus superlotados e caros.
O governo brasileiro inundou o país com bilhões em recursos para a construção, com o objetivo de modernizar a infraestrutura e erguer moradias, girando a economia e se esqueceu de que tinha gente morando nos lugares onde se quer construir.
Lembro-me de outra situação ocorrida há alguns anos. Em perseguição a bandidos, a Guarda Civil do município de São Caetano do Sul invadiu a favela de Heliópolis, em São Paulo. Uma jovem morreu baleada. A população revoltada foi à rua, ateou fogo em ônibus. Queria protestar, se fazer ouvida. A polícia dialogou com balas de borracha e bombas de gás.
Autoridades não demoraram em chamá-los de vândalos. Parte da mídia comprou a ideia. Uma repórter, com os olhos arregalados do tamanho do mundo, demonstrava o pânico de quem nunca imaginaria que aquela massa disforme poderia decretar o fechamento de um bairro. A polícia falava em “contenção”, comentaristas na TV em “imposição da ordem”. Nada sobre as reais causas da morte. Nada sobre um Estado que não está nem aí para quem (sobre)vive nas franjas da sociedade. Nada sobre o fato de uma outra pessoa ter morrido em Heliópolis em uma situação semelhante não faz muito tempo. Por pouco não pediram para colocar esses miseráveis pulhas de volta para o lugar deles.
Um punhado de colegas cobriam o protesto dos moradores da favela do Moinho, em frente à Prefeitura de São Paulo, nesta sexta (5). A comunidade, uma das vítimas dos incêndios “espontâneos” que atingiram favelas em 2011 e 2012, exigia regularização fundiária e urbanização com participação dos moradores nas decisões. Em 2010, a Polícia Militar usou spray de pimenta contra moradores do Jardim Pantanal – aquele no extremo da Zona Leste, mergulhado no esgoto durante uma época de chuvas – que enquanto protestavam por moradia em frente à Prefeitura. Desta vez, não foram retirados de lá. Mas falta muito para serem ouvidos. E, perceba, eles não querem soluções prontas e sim participar da elaboração dessas, ajudar o poder público a construir alternativas dignas de moradia para quem já estava lá.
Um registro feito pela repórter Martha Alves, da Folha de S. Paulo, que cobriu este último incêndio na comunidade da Ilha, mostra bem que a rua vai, enfim, entrando no imaginário paulistano não mais como lugar de passagem que pertence aos carros, mas como espaço público que pertence a todos. Um metalúrgico desempregado de 25 anos afirmou que só deixaria o local onde ele e sua esposa perderam tudo, quando recebesse uma posição da Prefeitura sobre o destino dos desabrigados ou o pagamento de auxílio-aluguel. “Vi as paredes da minha casa desabando e comecei a chorar de desespero”, disse Marco Almeida. ”Já tem protesto pelo país, a gente para tudo.”
“O povo” não acordou agora. Quem acordou foi uma parte – o que é ótimo. Outra parte nunca dormiu, afinal não tinha cama para tanto ou ficava apreensivo na chuva para o barraco não ser engolido por ela. Esse está protestando por uma vida digna, por moradia, desde sempre, recebendo porrada da polícia, o desprezo do poder público e o nojinho da classe média como resposta. Uma das grandes conquistas de junho foi a possibilidade de se manifestar publicamente sem ter a certeza de que isso resultará em um olho roxo. Ou em uma narrativa incompleta e equivocada por alguns colegas, repórteres de gabinete. A pancadaria policial do dia 13 e o repúdio à ela pelos mais de 200 mil do dia 17 mudaram a postura da força pública – pelo menos por enquanto.
Mas agora começa a fase de não apenas deixar falar, mas chamar para o diálogo e construir junto.
Enfim, o grosso do povo vai acordar mesmo no momento em que a maioria pobre deste país perceber que é explorada sistematicamente. Fico torcendo loucamente para que isso aconteça.
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