Por Paulo Moreira Leite, em seu blog:
Na mesma semana em que anunciaram sentenças apocalípticas depois que o STF decidiu dar cumprimento a uma legislação aprovada pelo Congresso em 1998 e aceitar os embargos infringentes para os réus da ação penal 470, o milionário Chiquinho Scarpa pregou uma peça em nossos meios de comunicação. Anunciou o enterro de um Bentley, talvez o mais caro automóvel do mundo. Quando repórteres e fotógrafos compareceram a sua residência, informou a todos que aquilo não passava de um trote. Chiquinho só queria anunciar seu apoio às campanhas pela doação de órgãos.
A imprensa não teve dificuldade em reconhecer que fora lograda com imensa facilidade por uma celebridade especializada em autopromoção, mas fez o possível para dar a impressão de que se tratava de um episódio isolado. Claro que não é.
Os mesmos jornais que levaram a sério o trote de Scarpa foram vítimas de outra trapaça – muito mais grave – no STF. Sem conferir nem checar informações publicadas, levaram a sério as alegações, divulgadas pelos próprios ministros, de que os embargos infringentes eram um assunto “em debate” no Supremo, que havia uma “omissão” legal a respeito e que era preciso resolver, em pleno tribunal, no que se deveria acreditar. Era um puro Bentley de Chiquinho Scarpa, como mostrou uma reportagem de Paulo Celso Pereira, do Globo, mas o tratamento foi bem diferente.
Dois dias depois que dez dos onze ministros do STF já haviam votado, com bases em premissas inteiramente falsas, o que dá um tom de teatro do absurdo à troca de argumentos ocorrida durante a primeira sessão, é que se soube que não havia omissão coisíssima nenhuma. Havia falta de cuidado, de conhecimento, de compromisso com a publicação de informações confiáveis. Os embargos são uma garantia prevista em lei. Sua vigência plena foi confirmada por decisão de deputados e senadores em 1998, que rejeitaram uma mensagem de FHC propondo sua extinção. Esta verdade seria lembrada por Celso de Mello no voto da quarta-feira seguinte, mas nenhum jornal destacou o próprio erro ao longo da semana.
Capaz de publicar um editorial no dia em que Celso de Mello deu seu voto, o Estado de S. Paulo nem sequer mencionou que a discussão sobre a vigência sobre os embargos era matéria vencida, idêntica a criação de um Estado novo, como Tocantins, ou as provisões da Lei Seca. Ninguém tem “dúvidas” sobre a existência de Tocantins nem vai perguntar ao PM que parar seu automóvel, numa madrugada, se ele “acha” que pode perder a carteira se resolver não se submeter ao bafômetro.
No entanto, numa atitude de tolerância espantosa diante de um erro que poderia ter consequências graves para os direitos de doze réus, nenhum ministro foi cobrado por ignorar uma lei em vigor. Muitos desses ministros são fontes de jornalistas, mantêm conversas em off e ajudaram a alimentar o erro e a confusão. Não foram questionados. Ninguém quis saber quem havia sido o Chiquinho Scarpa da história.
É fácil de entender por que os meios de comunicação reconheceram, descontraidamente, o erro sobre o Bentley. Era uma notícia irrelevante e inofensiva. Se o automóvel tivesse sido enterrado, conforme o prometido, nenhum direito teria sido atingido.
Já o embargo infringente era um fato muito mais relevante, o que torna ainda mais constrangedora a decisão de fingir que nada aconteceu. Ainda ontem, comentaristas com ar de doutor debatiam na TV a decisão do STF como se fosse uma questão de opinião entre ministros e não uma questão de fato. Não foram aparteados, nem corrigidos.
Esconder este erro ajuda a manter uma situação política: manter o julgamento da ação penal 470 num ambiente autoritário, que não permite questionamentos. A pensadora Hanna Arendt já explicou que a criação de uma ditadura é possível a partir do momento em que uma sociedade é incapaz de distinguir o que é fato e o que é opinião. E é isso que se pretende obter, no processo do mensalão.
O suposto “debate” sobre a natureza dos embargos permite prosseguir, ainda hoje, a postura de pressão sobre o STF. Já se fala que o Supremo “curvou-se”, que “cedeu” e assim por diante, numa tentativa de esconder que, no fim das contas, apenas se cumpriu uma lei em vigor – e que seria absurdo esperar outra decisão.
Para cobrar uma decisão rápida, que inclua a prisão imediata de “figurões” de qualquer maneira, é preciso dizer que o julgamento já atingiu um prazo “longuíssimo”, argumento que só ganha consistência quando se alega que está sendo prolongado artificialmente. Mas quando se admite que os embargos estão em vigor desde 1990 e foram confirmados em 1998, o adjetivo “longuíssimo” adquire outro significado. Longa é a existência dessa garantia legal, indiscutível. Errado foi quem imaginou que tudo poderia ter sido encerrado na semana passada.
A postura de ignorar estes fatos, contudo, obedece a uma notória conveniência política.
É uma forma de estimular o STF a atropelar garantias, o que seria visto como escandaloso se não vivêssemos numa época em que muitos comentaristas torcem para isso mesmo – desde que as aparências possam ser mantidas e a maioria das pessoas não perceba que lhe bateram a carteira de cidadãos. É neste trabalho que estão todos empenhados.
Na mesma semana em que anunciaram sentenças apocalípticas depois que o STF decidiu dar cumprimento a uma legislação aprovada pelo Congresso em 1998 e aceitar os embargos infringentes para os réus da ação penal 470, o milionário Chiquinho Scarpa pregou uma peça em nossos meios de comunicação. Anunciou o enterro de um Bentley, talvez o mais caro automóvel do mundo. Quando repórteres e fotógrafos compareceram a sua residência, informou a todos que aquilo não passava de um trote. Chiquinho só queria anunciar seu apoio às campanhas pela doação de órgãos.
A imprensa não teve dificuldade em reconhecer que fora lograda com imensa facilidade por uma celebridade especializada em autopromoção, mas fez o possível para dar a impressão de que se tratava de um episódio isolado. Claro que não é.
Os mesmos jornais que levaram a sério o trote de Scarpa foram vítimas de outra trapaça – muito mais grave – no STF. Sem conferir nem checar informações publicadas, levaram a sério as alegações, divulgadas pelos próprios ministros, de que os embargos infringentes eram um assunto “em debate” no Supremo, que havia uma “omissão” legal a respeito e que era preciso resolver, em pleno tribunal, no que se deveria acreditar. Era um puro Bentley de Chiquinho Scarpa, como mostrou uma reportagem de Paulo Celso Pereira, do Globo, mas o tratamento foi bem diferente.
Dois dias depois que dez dos onze ministros do STF já haviam votado, com bases em premissas inteiramente falsas, o que dá um tom de teatro do absurdo à troca de argumentos ocorrida durante a primeira sessão, é que se soube que não havia omissão coisíssima nenhuma. Havia falta de cuidado, de conhecimento, de compromisso com a publicação de informações confiáveis. Os embargos são uma garantia prevista em lei. Sua vigência plena foi confirmada por decisão de deputados e senadores em 1998, que rejeitaram uma mensagem de FHC propondo sua extinção. Esta verdade seria lembrada por Celso de Mello no voto da quarta-feira seguinte, mas nenhum jornal destacou o próprio erro ao longo da semana.
Capaz de publicar um editorial no dia em que Celso de Mello deu seu voto, o Estado de S. Paulo nem sequer mencionou que a discussão sobre a vigência sobre os embargos era matéria vencida, idêntica a criação de um Estado novo, como Tocantins, ou as provisões da Lei Seca. Ninguém tem “dúvidas” sobre a existência de Tocantins nem vai perguntar ao PM que parar seu automóvel, numa madrugada, se ele “acha” que pode perder a carteira se resolver não se submeter ao bafômetro.
No entanto, numa atitude de tolerância espantosa diante de um erro que poderia ter consequências graves para os direitos de doze réus, nenhum ministro foi cobrado por ignorar uma lei em vigor. Muitos desses ministros são fontes de jornalistas, mantêm conversas em off e ajudaram a alimentar o erro e a confusão. Não foram questionados. Ninguém quis saber quem havia sido o Chiquinho Scarpa da história.
É fácil de entender por que os meios de comunicação reconheceram, descontraidamente, o erro sobre o Bentley. Era uma notícia irrelevante e inofensiva. Se o automóvel tivesse sido enterrado, conforme o prometido, nenhum direito teria sido atingido.
Já o embargo infringente era um fato muito mais relevante, o que torna ainda mais constrangedora a decisão de fingir que nada aconteceu. Ainda ontem, comentaristas com ar de doutor debatiam na TV a decisão do STF como se fosse uma questão de opinião entre ministros e não uma questão de fato. Não foram aparteados, nem corrigidos.
Esconder este erro ajuda a manter uma situação política: manter o julgamento da ação penal 470 num ambiente autoritário, que não permite questionamentos. A pensadora Hanna Arendt já explicou que a criação de uma ditadura é possível a partir do momento em que uma sociedade é incapaz de distinguir o que é fato e o que é opinião. E é isso que se pretende obter, no processo do mensalão.
O suposto “debate” sobre a natureza dos embargos permite prosseguir, ainda hoje, a postura de pressão sobre o STF. Já se fala que o Supremo “curvou-se”, que “cedeu” e assim por diante, numa tentativa de esconder que, no fim das contas, apenas se cumpriu uma lei em vigor – e que seria absurdo esperar outra decisão.
Para cobrar uma decisão rápida, que inclua a prisão imediata de “figurões” de qualquer maneira, é preciso dizer que o julgamento já atingiu um prazo “longuíssimo”, argumento que só ganha consistência quando se alega que está sendo prolongado artificialmente. Mas quando se admite que os embargos estão em vigor desde 1990 e foram confirmados em 1998, o adjetivo “longuíssimo” adquire outro significado. Longa é a existência dessa garantia legal, indiscutível. Errado foi quem imaginou que tudo poderia ter sido encerrado na semana passada.
A postura de ignorar estes fatos, contudo, obedece a uma notória conveniência política.
É uma forma de estimular o STF a atropelar garantias, o que seria visto como escandaloso se não vivêssemos numa época em que muitos comentaristas torcem para isso mesmo – desde que as aparências possam ser mantidas e a maioria das pessoas não perceba que lhe bateram a carteira de cidadãos. É neste trabalho que estão todos empenhados.
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