Por Leonardo Sakamoto, em seu blog:
O programa Mais Médicos convocou profissionais brasileiros e estrangeiros para trabalharem em locais carentes de atendimento. Se por um lado, isso gerou o descontentamento por parte dos médicos brasileiros (com argumentos que vão do fato de que o programa não resolve o déficit estrutural, material e de equipamentos até o puro corporativismo), por outro as manifestações de apoio mostram que ele foi bem recebido pela camada mais pobre da população.
No meio do tiroteio da falsa dicotomia entre “o Brasil precisa de médicos atendendo a população carente'' contra “o Brasil precisa de condições para os médicos trabalharem'', o programa também foi criticado por conta da forma de contratação de médicos estrangeiros. Entidades de classe de medicina exigem que o diploma seja revalidado no país através de prova e chegaram a questionar a capacidade técnica dos visitantes.
Ao mesmo tempo, alguns críticos do programa e parlamentares de oposição ao governo federal afirmam que os médicos cubanos estão em situação análoga à de escravo, como os trabalhadores que são libertados de fazendas de cana ou de oficinas de costura. Um dos motivos seria o fato de não recebem a mesma remuneração que o restante dos médicos que fazem parte do programa (R$ 10 mil mensais), pois a maior parte fica com a empresa cubana responsável pelas missões médicas do país. Outro montante é pago a eles aqui e o restante era depositado em sua conta em Cuba.
Para falar do paradigma da saúde no Brasil, da reação da população à sua presença e de sua situação trabalhista, dois médicos cubanos pertencentes ao programa que atuam no município de Carapicuíba, um dos mais pobres da região metropolitana de São Paulo, concederam ao UOL uma entrevista.
Maria de Los Angeles Reyes e Mario Martinez elogiaram a competência dos médicos brasileiros, afirmam que o acolhimento dado pelo povo ao seu trabalho só é comparável ao de suas próprias famílias e – falando um bom “portunhol'' – dizem que a língua não tem sido uma barreira. E demonstraram indignação ao serem questionados se seriam escravos do governo cubano.
Acreditam, contudo, que a presença dos médicos cubanos e sua prioridade com a medicina familiar e preventiva pode ajudar a mudar a forma com a qual encaramos o nosso sistema de saúde. “Não se precisa de muito dinheiro para fazer saúde preventiva. Os recursos que se necessitam são recursos humanos'', afirma Mario. “Cuba é um país subdesenvolvido, mas temos resultados na medicina comparados aos de países desenvolvidos'', completa Maria.
E citam os índices de mortalidade infantil de Cuba (4,2 mortes para cada mil nascidos vivos). Para efeito de comparação, o Brasil – que tem liderado a redução global desse indicador – apresentou, em 2012, 15,7 mortes para cada mil nascidos vivos, de acordo com o IBGE.
Para Mario, não se pode analisar a doença longe do estrato social onde a pessoa mora. “É a doença dentro do lugar onde mora, onde desenvolve sua vida.''
Contam que a maioria da população mais pobre, que não estava acostumada a ter médicos à disposição, ainda está entendendo o que a presença deles significa. Mario diz que teve que convencer pacientes de que ele estaria lá o tempo todo. “Não, senhora, não precisa agendar a consulta para seis meses, um ano. Vou ficar aqui de segunda a sexta. Se você precisar, você vem e eu atendo você.''
Questionados sobre as denúncias de que estariam submetidos a trabalho escravo contemporâneo, demonstram indignação. “Quem tá falando isso? Que somos presos? Que somos escravos? Escravos não têm esses privilégios'', responde Mario. Ele diz que sua família tem à disposição um sistema educacional e de saúde gratuitos e que funcionam. E que fez faculdade de medicina, residência e mestrado sem ter que pagar pelos cursos, livros ou materiais. Portanto acha justo colaborar para que esse sistema continua funcionando.
“Se não ajudamos nosso país com nosso aporte monetário, quem vai ajudar? Além do mais, nossa família fica lá. Recebem saúde e educação gratuita e quem vai ajudar? E por isso somos escravos?'', pergunta Maria. Também reclamam de “sensacionalismo'' com relação à divulgação da saída de alguns cubanos do programa. Rebatem que, apesar de serem milhares os participantes, “não chegam a 20″ os que deixaram o Mais Médicos.
E afirmam que, com as críticas, o programa mudou a forma de remuneração. Eles estão recebendo mais do governo cubano para custear a sua presença, mas também passaram a receber no Brasil o que antes era depositado em Cuba. O que, para eles, é pior. Com o depósito na ilha, o dinheiro permanecia lá rendendo juros. Agora perderão ao pagar impostos e trocarem o câmbio quando levarem o dinheiro de volta.
“Nós viemos com vários objetivos. Ajudar nossa família, ajudar nosso país, ajudar a melhorar nossa condição econômica e ajudar este país, à população que estava carente de médicos'', afirma Maria.
Também conversei com Janos Valery Gyuricza, médico brasileiro de família e comunidade e supervisor de sete cubanos dentro do programa Mais Médicos.
“No Brasil, apesar de termos 300 mil médicos, poucos são capacitados para trabalhar na atenção básica, diferentemente da maioria que tem vindo para trabalhar no Mais Médicos'', afirma. “Precisaríamos de uns 100 mil médicos capacitados para trabalhar na atenção primária para dar conta da população brasileira.''
De acordo com ele, a presença de médicos que saibam ouvir e se comunicar com o paciente de uma forma que ele entenda e que estejam sempre presentes nas comunidades, prevenindo o que for possível para que não se gaste remediando, pode mudar a forma como encaramos a saúde por aqui. “A partir do momento em que 35 milhões de pessoas virem que existe outro jeito de ser atendido, talvez haja mudanças na formação médica brasileira'', explica.
Sobre a relação trabalhista, comenta que os cubanos sabiam da divisão do dinheiro como seria feita e não se sentem injustiçados. “Eles não se sentem escravizados.'' Contudo, tem ouvido que o dinheiro não é suficiente em alguns municípios com custo de vida mais alto – Cuba repassa o mesmo valor independentemente do local onde os trabalhadores estejam.
Conversei com auditores fiscais do trabalho e procuradores do trabalho e não há um consenso sobre a questão da remuneração. Alguns apontam que o modelo de remuneração é correto, pois faz parte da contratação de uma missão de outro país. Parte afirma que o ideal seria se os médicos recebessem o mesmo que profissionais de outras nacionalidades e, caso necessário, o Brasil pagaria, à parte, pelos serviços à empresa cubana de saúde. Cuba aumentou em pouco mais de 200 dólares o repasse, além de pagar a totalidade da remuneração no Brasil, como já foi dito acima. Mas independentemente disso, a questão da remuneração dos médicos cubanos do programa em centros urbanos como São Paulo, Rio e Brasília terá que ser repensada por conta do custo de vida elevado.
Por fim, Janos lembra que o desafio é grande não é só financeiro. E vai levar tempo para ser vencido: “Temos uma massa amorfa de médicos no Brasil, não temos um grupo de médicos organizado para que dê conta de toda a população. A vinda dos cubanos tem um potencial transformador porque eles estão entrando em um lugar em que existe uma falta importante. Não acho que isso seja a única coisa que deva ser feita, é uma ação emergencial, mas que tem o potencial de mudar o entendimento da população em geral sobre o que é ter um sistema de saúde''.
O programa Mais Médicos convocou profissionais brasileiros e estrangeiros para trabalharem em locais carentes de atendimento. Se por um lado, isso gerou o descontentamento por parte dos médicos brasileiros (com argumentos que vão do fato de que o programa não resolve o déficit estrutural, material e de equipamentos até o puro corporativismo), por outro as manifestações de apoio mostram que ele foi bem recebido pela camada mais pobre da população.
No meio do tiroteio da falsa dicotomia entre “o Brasil precisa de médicos atendendo a população carente'' contra “o Brasil precisa de condições para os médicos trabalharem'', o programa também foi criticado por conta da forma de contratação de médicos estrangeiros. Entidades de classe de medicina exigem que o diploma seja revalidado no país através de prova e chegaram a questionar a capacidade técnica dos visitantes.
Ao mesmo tempo, alguns críticos do programa e parlamentares de oposição ao governo federal afirmam que os médicos cubanos estão em situação análoga à de escravo, como os trabalhadores que são libertados de fazendas de cana ou de oficinas de costura. Um dos motivos seria o fato de não recebem a mesma remuneração que o restante dos médicos que fazem parte do programa (R$ 10 mil mensais), pois a maior parte fica com a empresa cubana responsável pelas missões médicas do país. Outro montante é pago a eles aqui e o restante era depositado em sua conta em Cuba.
Para falar do paradigma da saúde no Brasil, da reação da população à sua presença e de sua situação trabalhista, dois médicos cubanos pertencentes ao programa que atuam no município de Carapicuíba, um dos mais pobres da região metropolitana de São Paulo, concederam ao UOL uma entrevista.
Maria de Los Angeles Reyes e Mario Martinez elogiaram a competência dos médicos brasileiros, afirmam que o acolhimento dado pelo povo ao seu trabalho só é comparável ao de suas próprias famílias e – falando um bom “portunhol'' – dizem que a língua não tem sido uma barreira. E demonstraram indignação ao serem questionados se seriam escravos do governo cubano.
Acreditam, contudo, que a presença dos médicos cubanos e sua prioridade com a medicina familiar e preventiva pode ajudar a mudar a forma com a qual encaramos o nosso sistema de saúde. “Não se precisa de muito dinheiro para fazer saúde preventiva. Os recursos que se necessitam são recursos humanos'', afirma Mario. “Cuba é um país subdesenvolvido, mas temos resultados na medicina comparados aos de países desenvolvidos'', completa Maria.
E citam os índices de mortalidade infantil de Cuba (4,2 mortes para cada mil nascidos vivos). Para efeito de comparação, o Brasil – que tem liderado a redução global desse indicador – apresentou, em 2012, 15,7 mortes para cada mil nascidos vivos, de acordo com o IBGE.
Para Mario, não se pode analisar a doença longe do estrato social onde a pessoa mora. “É a doença dentro do lugar onde mora, onde desenvolve sua vida.''
Contam que a maioria da população mais pobre, que não estava acostumada a ter médicos à disposição, ainda está entendendo o que a presença deles significa. Mario diz que teve que convencer pacientes de que ele estaria lá o tempo todo. “Não, senhora, não precisa agendar a consulta para seis meses, um ano. Vou ficar aqui de segunda a sexta. Se você precisar, você vem e eu atendo você.''
Questionados sobre as denúncias de que estariam submetidos a trabalho escravo contemporâneo, demonstram indignação. “Quem tá falando isso? Que somos presos? Que somos escravos? Escravos não têm esses privilégios'', responde Mario. Ele diz que sua família tem à disposição um sistema educacional e de saúde gratuitos e que funcionam. E que fez faculdade de medicina, residência e mestrado sem ter que pagar pelos cursos, livros ou materiais. Portanto acha justo colaborar para que esse sistema continua funcionando.
“Se não ajudamos nosso país com nosso aporte monetário, quem vai ajudar? Além do mais, nossa família fica lá. Recebem saúde e educação gratuita e quem vai ajudar? E por isso somos escravos?'', pergunta Maria. Também reclamam de “sensacionalismo'' com relação à divulgação da saída de alguns cubanos do programa. Rebatem que, apesar de serem milhares os participantes, “não chegam a 20″ os que deixaram o Mais Médicos.
E afirmam que, com as críticas, o programa mudou a forma de remuneração. Eles estão recebendo mais do governo cubano para custear a sua presença, mas também passaram a receber no Brasil o que antes era depositado em Cuba. O que, para eles, é pior. Com o depósito na ilha, o dinheiro permanecia lá rendendo juros. Agora perderão ao pagar impostos e trocarem o câmbio quando levarem o dinheiro de volta.
“Nós viemos com vários objetivos. Ajudar nossa família, ajudar nosso país, ajudar a melhorar nossa condição econômica e ajudar este país, à população que estava carente de médicos'', afirma Maria.
Também conversei com Janos Valery Gyuricza, médico brasileiro de família e comunidade e supervisor de sete cubanos dentro do programa Mais Médicos.
“No Brasil, apesar de termos 300 mil médicos, poucos são capacitados para trabalhar na atenção básica, diferentemente da maioria que tem vindo para trabalhar no Mais Médicos'', afirma. “Precisaríamos de uns 100 mil médicos capacitados para trabalhar na atenção primária para dar conta da população brasileira.''
De acordo com ele, a presença de médicos que saibam ouvir e se comunicar com o paciente de uma forma que ele entenda e que estejam sempre presentes nas comunidades, prevenindo o que for possível para que não se gaste remediando, pode mudar a forma como encaramos a saúde por aqui. “A partir do momento em que 35 milhões de pessoas virem que existe outro jeito de ser atendido, talvez haja mudanças na formação médica brasileira'', explica.
Sobre a relação trabalhista, comenta que os cubanos sabiam da divisão do dinheiro como seria feita e não se sentem injustiçados. “Eles não se sentem escravizados.'' Contudo, tem ouvido que o dinheiro não é suficiente em alguns municípios com custo de vida mais alto – Cuba repassa o mesmo valor independentemente do local onde os trabalhadores estejam.
Conversei com auditores fiscais do trabalho e procuradores do trabalho e não há um consenso sobre a questão da remuneração. Alguns apontam que o modelo de remuneração é correto, pois faz parte da contratação de uma missão de outro país. Parte afirma que o ideal seria se os médicos recebessem o mesmo que profissionais de outras nacionalidades e, caso necessário, o Brasil pagaria, à parte, pelos serviços à empresa cubana de saúde. Cuba aumentou em pouco mais de 200 dólares o repasse, além de pagar a totalidade da remuneração no Brasil, como já foi dito acima. Mas independentemente disso, a questão da remuneração dos médicos cubanos do programa em centros urbanos como São Paulo, Rio e Brasília terá que ser repensada por conta do custo de vida elevado.
Por fim, Janos lembra que o desafio é grande não é só financeiro. E vai levar tempo para ser vencido: “Temos uma massa amorfa de médicos no Brasil, não temos um grupo de médicos organizado para que dê conta de toda a população. A vinda dos cubanos tem um potencial transformador porque eles estão entrando em um lugar em que existe uma falta importante. Não acho que isso seja a única coisa que deva ser feita, é uma ação emergencial, mas que tem o potencial de mudar o entendimento da população em geral sobre o que é ter um sistema de saúde''.
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