A divulgação do relatório final da Comissão Nacional da Verdade produziu reações características dos envolvidos – direta ou indiretamente – com os crimes de lesa-humanidade cometidos pela ditadura militar. Diante da divulgação vexatória de atos como estupros de mulheres e homens e até tortura de crianças, os que praticaram aqueles horrores, ou as famílias dos que praticaram e estão mortos, inventaram uma “desculpa”.
A tese que os envolvidos com a ditadura tentam vender é a de que “os dois lados” seriam culpados pela violência que campeou no Brasil entre o início dos anos 1960 e meados dos anos 1970. Para entender a questão, primeiro há que definir quem são esses “dois lados”.
Um “lado” é facilmente identificável, pois é o Estado Brasileiro. Havia uma Constituição no Brasil em 1964. Ela estabelecia a forma como se constituem governos, a regularidade e a periodicidade de eleições, enfim, todo arcabouço legal que rege política e institucionalmente uma nação.
Como qualquer texto constitucional, o de 1964 definia que o Poder de Estado derivava do voto popular, da vontade do povo. E foi essa vontade que elegeu João Belchior Marques Goulart.
Em 1955, Jango, como Goulart era chamado, elegera-se vice-presidente do Brasil pela coligação PTB/PSD. Obteve mais votos do que o presidente eleito, Juscelino Kubitschek, porque, à época, votações para presidente e vice eram separadas, o que tornava muito maior a legitimidade do vice-presidente.
Em 1960, Jango se elegeu de novo vice-presidente, concorrendo pela chapa de oposição ao candidato Jânio Quadros, do Partido Democrata Cristão (PDC) e apoiado pela União Democrática Nacional (UDN), que venceu o pleito. Seria como se o vice de Aécio Neves recebesse votos diretamente e Dilma Rousseff, presidente, perdesse o mandato ou renunciasse. Quem assumiria seria o vice da chapa tucana.
Em 1961, Jânio renunciou poucos meses após assumir. Apesar da maior legitimidade de Jango, os militares tentaram impedi-lo de assumir. Ontem, como hoje, a direita questionava os votos dos setores mais humildes da sociedade, que, em geral, são os setores que elegem governos trabalhistas, voltados mais à esquerda.
Essa cultura dos conservadores latino-americanos de questionarem o valor do voto dos mais humildes é uma herança da cultura do sufrágio censitário, que vigeu no país de 1894 a 1891, quando, para votar, o cidadão tinha que ter um determinado nível de riqueza, sem o que era considerado um cidadão de segunda classe.
Mais de um século se passou e a elite conservadora continua encarando o voto de pessoas pobres como sendo menos válido que o seu.
Por conta dessa visão, grandes empresários e latifundiários, preocupados com medidas de distribuição de renda que poderiam ser adotadas, decidiram que, como os votos dos pobres, que elegeram Jango, valiam menos que os dos ricos, não haveria que respeitar a vontade da maioria que deu a ele a Presidência da República.
Contudo, essa premissa partia de uma ilegalidade. A Constituição não fazia distinção entre voto de pobre e voto de rico. E não permitia que o mandato de um presidente revestido pela legitimidade do voto popular fosse interrompido sem um processo legal de impedimento, que, obviamente, requeria que representantes eleitos pelo povo para o Legislativo referendassem tal interrupção.
Como os grupos econômicos e sociais que sentiam-se ameaçados não tinham votos entre o povo, e como entendiam que esse povo não tinha os mesmos direitos políticos que a elite, valeram-se da influência dessa elite econômica sobre os militares para violar a Constituição, para infringir a lei maior do país, para cometerem um crime por qualquer critério de julgamento.
A desculpa de que o golpe de direita foi dado para impedir um golpe de esquerda jamais se sustentou em provas. Até hoje, toda vez que um grande jornal, um ministro do Supremo (como Marco Aurélio Mello), um grande empresário ou um “clube militar” repetem a história do “golpe comunista”, utilizam-se de uma versão que não dispõe de uma mísera prova.
Claro que, assim como em 2013 houve grupos de jovens que saíram à rua pedindo a derrubada do regime democrático e a instalação do anarquismo, em 1964 havia jovens querendo promover no país uma Revolução Socialista. Contudo, tanto quanto os jovens radicalizados de hoje, os de ontem não dispunham de meios para concretizar seus devaneios ideológicos.
Não havia grupos se armando, não havia uma influência forte da União Soviética no Brasil. E, mesmo que houvesse, só seria cabível a derrubada do governo Jango se esse governo tivesse dado algum passo comprovável em direção a um golpe. Nunca, porém, existiu um mísero documento, uma mísera prova de que Jango pretendia adotar o socialismo soviético no Brasil.
Concomitantemente à derrubada ilegal do governo, os militares promoveram prisões ilegais e, nessas prisões, valeram-se de tortura física e psicológica contra qualquer um que policiais e militares treinados apenas para combates julgassem que poderiam ter “informações” sobre os que não aceitavam o golpe.
A violência e a criminalidade de Estado fez surgir na sociedade brasileira um movimento de resistência análogo ao que combateu o avanço nazista na França. As ações de guerrilha urbana ou rural, na verdade, eram ações investidas de legitimidade constitucional, pois cabe a qualquer cidadão defender a lei na ausência de autoridades que o façam.
Qualquer reação aos criminosos que derrubaram ilegalmente o governo Jango Goulart, portanto, era uma ação dentro da lei. Até porque, além da derrubada criminosa do governo, os golpistas passaram a praticar crimes comuns, como assassinatos, cárcere privado e torturas contra os que defendiam a lei e a manutenção do Estado de Direito.
Nesse processo de resistência aos criminosos que deram o golpe de Estado, houve tiroteios. Em meio aos tiroteios, é evidente que, apesar de os que defendiam a democracia serem capturados ou mortos em maior quantidade, sempre conseguiriam impor baixas ao lado dos criminosos golpistas durante combates, execução de prisões pelo Estado etc.
Durante esses confrontos, eventualmente algumas pessoas que nada tinham que ver com nada ficaram na linha de fogo, além dos agentes de repressão do Estado que agiam ilegitimamente, sob as ordens de um governo ilegítimo. Alguns desses, perderam a vida.
O relatório final da Comissão Nacional da Verdade envergonhou todos quantos colaboraram com o regime ilegítimo e criminoso que se instalou no país em 1964 ou que participaram ativamente daquele regime. Entre os que menos digerem a Verdade, está um certo “Clube Militar” que, no âmbito da comoção que se instalou no país com as histórias terríveis das vítimas do regime militar, tenta ludibriar a nação divulgando uma relação de “vítimas” dos “terroristas” que não tem amparo de investigações e que, no pouco que possa ter de verdade, cita pessoas que morreram em combate ou que estavam no lugar errado, na hora errada.
Leia, abaixo, o manifesto divulgado pelo site do “Clube Militar” em tela.
As mais de quatro centenas de vítimas da ditadura que a CNV elencou, porém, contam com a legitimidade das investigações daquela Comissão e de seus braços espalhados pelos Estados e Municípios. As vítimas sobreviventes ou seus amigos e familiares vieram a público, deram nomes dos autores dos crimes, apresentaram provas.
Autores dos crimes depuseram nas Comissões da Verdade de todo país, documentos contendo detalhes das torturas e das prisões ilegais, entre outros atos arbitrários, foram apresentados à nação. Grande parte ou a quase totalidade dos que depuseram nas Comissões da Verdade, porém, não trouxe muita coisa nova ao conhecimento público. Muito do que diz o relatório final da CNV já era conhecido.
Do outro lado, temos uma relação obscura de pessoas que, na sua quase totalidade, nunca vieram a público e que, em boa parte, são literalmente desconhecidas. Ou seja: a lista publicada pelo tal “Clube Militar” é uma mentira, uma trapaça, um embuste que visa dar alguma coisa a dizer para os pervertidos da ditadura e para suas famílias diante da vergonha que ao menos deveriam estar sentindo.
Além do que já foi dito, vale refletir que as circunstâncias reais das mortes dos poucos casos reais que possam figurar na lista do “Clube Militar” em nada se assemelham aos crimes apurados e comprovados pelas Comissões da Verdade.
Devido à ampla divulgação dos horrores praticados nos porões da ditadura, é ocioso reproduzi-los. Os detalhes do sadismo inimaginável que regeu as ações dos verdugos escalados pela ditadura para arrancar informações de jovens que havia pouco dedicavam-se a carregar livros daqui para lá não precisam de mais publicidade. Só não viu quem não quis.
No caso dos policiais e soldados que possam ter morrido em combate contra a resistência ao golpe ilegal de 1964, não sofreram o tipo de perversão que transborda das ações do regime contra todo aquele que lhe parecesse suspeito. Até por isso, não há famílias e mais famílias clamando por justiça ou denunciando atrocidades.
As supostas “vítimas de terroristas” não têm rosto, não têm história, à exceção de alguns raros que, diante da enormidade de testemunhas das Comissões da Verdade, não significam nada. E mesmo que os citados pelo “Clube Militar” viessem contar suas histórias, concluir-se-ia que os membros da resistência que possam ter causado as mortes ou ferimentos dessas pessoas foram, em enorme parte, capturados e penalizados com prisão, tortura etc.
O relatório final da Comissão Nacional da Verdade é apenas um primeiro passo para punir todos aqueles que compactuaram com a ditadura ou cometeram crimes em seu nome, inclusive aqueles que tentam se passar por inocentes, como é o caso, por exemplo, de jornais como a Folha de São Paulo, que recita o conto do “Clube Militar” em um texto em que prega a impunidade dos criminosos pervertidos da ditadura que caminham soltos por aí.
Editorial recém-publicado por esse jornal propõe “virar a página”, ou seja, recompensar com impunidade os pervertidos, estupradores, torturadores de crianças, ladrões, sádicos de todos os tipos que hoje são vovôs cheios de netinhos que mal sabem que convivem com verdadeiros monstros, apesar da aparência humana.
É perfeitamente inteligível a postura das famílias Marinho, Mesquita ou Frias, donas de jornais que ajudaram a dar o golpe de 1964 e que sustentaram a ditadura. É inteligível porque o aprofundamento do processo de reparação histórica irá desmascarar os dirigentes dessas empresas à época da ditadura.
Nesse aspecto, o jornal da família Frias é o pior por seu colaboracionismo material com a ditadura e pela cada vez mais comprovada participação de seu fundador até em sessões de tortura, o que se supõe que possa ter ocorrido por algum tipo de tara que se comprazia da visão de sevícias contra pessoas indefesas.
Isso sem falar no apoio material da Folha à ditadura, com os notórios empréstimos de veículos de entrega de jornais para transporte de presos.
Diante do exposto, o Ministério Público bem que poderia investigar essa farsa inominável do tal “Clube Militar”, que busca ludibriar uma nação inteira com uso de informações falsas – em sua quase totalidade. Essa lista de 126 nomes de “vítimas” de “terroristas” é, em grande parte, fictícia. Constitui afronta ao país e seus autores deveriam ser severamente punidos.
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