Por Vitor Araújo Filgueiras, no jornal Brasil de Fato:
Com toda a razão, muito tem sido escrito e falado acerca dos colossais estragos que o Projeto de Lei (PL) 4330, que libera a terceirização para todas as atividades de uma empresa, promoverá contra qualquer espécie de proposta civilizatória para a sociedade brasileira. Contudo, talvez o elemento mais grotesco desse PL aprovado na Câmara dos Deputados no dia 8 de abril, seja a incoerência gritante do discurso sobre terceirização dos empresários e dos seus representantes, em relação à lei que pretendem implementar.
Empresários e seus representantes construíram uma retórica sistematicamente repetida, durante as últimas décadas, de que as empresas precisam focar suas energias nas suas atividades principais, que eles mesmos chamam de atividades fim, e terceirizar para outras empresas as atividades menos importantes, secundárias, acessórias. Foi com esse discurso que as próprias empresas conseguiram que a Súmula 331 do Tribunal Superior do Trabalho fosse editada na década de 1990, liberando a terceirização das atividades meio (acessórias) dos empreendimentos. Esse discurso continua sendo repetido e é ele que justifica a terceirização: focar no essencial para terceirizar o secundário.
Todavia, o cerne do PL 4330 é liberar que as empresas terceirizem qualquer atividade, inclusive as atividades fim, o core business (ou qualquer que seja o termo atualmente preferido pelos empresários). Como defender a terceirização de qualquer atividade, se a própria terceirização é conceituada e justificada pela concentração das empresas em sua atividade fim? Existe uma contradição lógica no PL 4330.
As empresas definem a terceirização e a defendem para se focar nas suas atividades principais, mas querem terceirizar as suas atividades principais. Essa contradição revela o cinismo da estratégia patronal, pois, na verdade, a divisão de atividades entre empresas independentes nunca definiu, nem foi objetivo, da terceirização. A terceirização é método de acumulação do capital via precarização do trabalho (precarização demonstrada por vasta produção científica) e toda a retórica empresarial sobre essa forma de gestão do trabalho sempre foi empiricamente inconsistente. De modo trágico, esse PL 4330 contribui para que as pessoas se deem conta disso.
É presumível que as empresas adotem esse tipo de postura na defesa dos seus interesses, em especial com as características que predominam no empresariado brasileiro. Não surpreende que omitam fatos, dados, pesquisas, distorçam ou mesmo contradigam frontalmente a realidade empírica para afirmar que seus interesses particulares (no caso, a liberação da terceirização) representam interesses do conjunto da população.
A questão é: como nós, principais destinatários do cinismo, reagiremos?
Terceirização não é transferência de atividade entre empresas. A empresa contratante continua dirigindo o processo de produção e de trabalho, mesmo que use artifícios para disfarça-lo. Terceirizar é uma forma de contratar força de trabalho, que tem dentre seus principiais objetivos externalizar riscos (aos trabalhadores) e responsabilidades.
Neste caso sim, busca-se a transferência, na qual a pessoa física ou jurídica (que frequentemente é o próprio trabalhador escondido por alguma modalidade de “PJ”) serve como escudo à empresa contratante, que com sucesso tem sido alcançada, e vai piorar com a generalização da terceirização para os trabalhadores que ainda não tinham sido atingidos.
Não por acaso, o PL 4330 aprovado não contém requisitos humanitários mínimos, como a previsão de completa responsabilidade solidária pelos direitos trabalhistas entre empresas contratantes e contratadas, isonomia integral de direitos entre os trabalhadores, inclusive de normas coletivas mais favoráveis. Esses requisitos, que não foram adotados, seriam atenuantes para as consequências nefastas provocadas pela terceirização sobre as condições dos trabalhadores e sobre a própria vida de milhões de pessoas.
Também não há nenhuma coincidência no fato de que, em 2014, dos 10 maiores flagrantes de submissão de trabalhadores a condições análogas à de escravos no Brasil, apurados pelo Ministério do Trabalho, havia trabalhadores terceirizados em 8 casos, totalizando 384 trabalhadores contratados dessa forma. Em 7 desses flagrantes todos os trabalhadores eram terceirizados.
Nos últimos 5 anos (2010 a 2014), somados os 10 maiores flagrantes de trabalho análogo ao escravo detectados pelo Ministério do Trabalho em cada ano, 44 envolviam terceirizados. Ou seja, quase 90% desses 50 flagrantes. Nessas ações apurou-se que, dos 4183 trabalhadores submetidos a exploração criminosa, 3382 eram terceirizados, o que equivale a 81% do total de trabalhadores vitimados.
Do mesmo modo, não é obra do imponderável o fato de que as pesquisas apontam maior mortalidade entre os trabalhadores que não são diretamente contratados pelas empresas. Para ilustrar, o Setor da construção civil constante na Classificação Nacional de Atividades Econômicas (CNAE), analisado a partir das Divisões que o compõe, teve maior crescimento das mortes registradas, entre 2006 e 2012, justamente na Divisão mais propensa à terceirização. Enquanto, nesse período, a Divisão Construção de Edifícios teve incremento de 17,4% nos acidentes fatais e a Divisão Obras de Infraestrutura 39,1%, a Divisão de Serviços Especializados para Construção, que é um segmento do CNAE tipicamente terceirizado, teve crescimento de óbitos de 166,6%.
Nenhum desses dados é contingencial porque terceirização potencializa o despotismo patronal, seja tornando os trabalhadores individualmente ainda mais vulneráveis, seja dificultando a imposição de limites aos ditames empresariais por ações coletivas ou por meio das instituições de regulação do direito do trabalho.
O PL 4330, ao permitir a terceirização de todas as atividades de uma empresa, deixa explícito que terceirização não é divisão do trabalho. Até o momento, entretanto, confundir terceirização e divisão social do trabalho no capitalismo tem sido o grande golpe que as forças empresariais conseguiram tornar sendo comum.
O PL procura legalizar e legitimar a exploração de parcela relevante da população que já é terceirizada (talvez 25% do mercado de trabalho). Não fosse suficiente, poderá ampliar esse quadro para o restante da população empregada.
Mas ainda há tempo para resistir.
Em 2001, o PL 5483 (conhecido como projeto do “negociado sobre o legislado”), também amplamente desastroso para a classe trabalhadora, pois permitiria que negociações reduzissem as garantias mínimas previstas nas normas de proteção ao trabalho, foi aprovado na Câmara dos Deputados.
Porém, nunca teve seu trâmite legislativo finalizado por conta das reações contrárias.
Em 2007, após ser aprovada na Câmara e no Senado no bojo da Lei da Super Receita, a Chamada Emenda 3, que proibiria que Auditores Fiscais multassem empresas flagradas mantendo vínculos de emprego disfarçados, foi vetada pela Presidência.
Um importante movimento de resistência coletiva contra o PL 4330 já existe há alguns anos, capitaneado pelas diversas entidades que compõem um Fórum nacional sobre o tema. Essa luta coletiva precisa ser fortalecida.
Contudo, sem prejuízo da ação coletiva, pequenos engajamentos individuais difusos podem produzir um grande resultado coletivo contra esse golpe que está sendo aplicado sobre aqueles que vivem do trabalho no Brasil. São muitas as formas que qualquer um pode contribuir. Apenas para citar um simplório e indolor exemplo, a lista dos e-mails de Deputados e Senadores consta nos sites do Congresso, e os fatos têm demonstrado que o acúmulo de mensagens não passa despercebido.
Depois de tantas desagradáveis surpresas (ou não surpresas), o veto da presidente Dilma Rousseff ao PL 4330, caso o Senado também o aprove, é o mínimo que ela pode fazer para iniciar uma sinalização de coerência com o norte da sua campanha eleitoral. Se o Congresso vai ou não derrubar seu veto, não cabe ao Executivo usar como subterfúgio. Primeiro, porque tendo o Congresso pautado esse PL retrógrado, cabe a ele assumir as consequências políticas dessa opção. Segundo, e mais importante, não foi o Congresso que elegeu a Presidente da República.
* Vitor Araújo Filgueiras é pesquisador do CESIT (Centro de Estudos Sindicais e Economia do Trabalho) e pós-doutorando em Economia na UNICAMP. Auditor Fiscal do Trabalho. Integrante do grupo de pesquisa “Indicadores de Regulação do Emprego no Brasil”.
Com toda a razão, muito tem sido escrito e falado acerca dos colossais estragos que o Projeto de Lei (PL) 4330, que libera a terceirização para todas as atividades de uma empresa, promoverá contra qualquer espécie de proposta civilizatória para a sociedade brasileira. Contudo, talvez o elemento mais grotesco desse PL aprovado na Câmara dos Deputados no dia 8 de abril, seja a incoerência gritante do discurso sobre terceirização dos empresários e dos seus representantes, em relação à lei que pretendem implementar.
Empresários e seus representantes construíram uma retórica sistematicamente repetida, durante as últimas décadas, de que as empresas precisam focar suas energias nas suas atividades principais, que eles mesmos chamam de atividades fim, e terceirizar para outras empresas as atividades menos importantes, secundárias, acessórias. Foi com esse discurso que as próprias empresas conseguiram que a Súmula 331 do Tribunal Superior do Trabalho fosse editada na década de 1990, liberando a terceirização das atividades meio (acessórias) dos empreendimentos. Esse discurso continua sendo repetido e é ele que justifica a terceirização: focar no essencial para terceirizar o secundário.
Todavia, o cerne do PL 4330 é liberar que as empresas terceirizem qualquer atividade, inclusive as atividades fim, o core business (ou qualquer que seja o termo atualmente preferido pelos empresários). Como defender a terceirização de qualquer atividade, se a própria terceirização é conceituada e justificada pela concentração das empresas em sua atividade fim? Existe uma contradição lógica no PL 4330.
As empresas definem a terceirização e a defendem para se focar nas suas atividades principais, mas querem terceirizar as suas atividades principais. Essa contradição revela o cinismo da estratégia patronal, pois, na verdade, a divisão de atividades entre empresas independentes nunca definiu, nem foi objetivo, da terceirização. A terceirização é método de acumulação do capital via precarização do trabalho (precarização demonstrada por vasta produção científica) e toda a retórica empresarial sobre essa forma de gestão do trabalho sempre foi empiricamente inconsistente. De modo trágico, esse PL 4330 contribui para que as pessoas se deem conta disso.
É presumível que as empresas adotem esse tipo de postura na defesa dos seus interesses, em especial com as características que predominam no empresariado brasileiro. Não surpreende que omitam fatos, dados, pesquisas, distorçam ou mesmo contradigam frontalmente a realidade empírica para afirmar que seus interesses particulares (no caso, a liberação da terceirização) representam interesses do conjunto da população.
A questão é: como nós, principais destinatários do cinismo, reagiremos?
Terceirização não é transferência de atividade entre empresas. A empresa contratante continua dirigindo o processo de produção e de trabalho, mesmo que use artifícios para disfarça-lo. Terceirizar é uma forma de contratar força de trabalho, que tem dentre seus principiais objetivos externalizar riscos (aos trabalhadores) e responsabilidades.
Neste caso sim, busca-se a transferência, na qual a pessoa física ou jurídica (que frequentemente é o próprio trabalhador escondido por alguma modalidade de “PJ”) serve como escudo à empresa contratante, que com sucesso tem sido alcançada, e vai piorar com a generalização da terceirização para os trabalhadores que ainda não tinham sido atingidos.
Não por acaso, o PL 4330 aprovado não contém requisitos humanitários mínimos, como a previsão de completa responsabilidade solidária pelos direitos trabalhistas entre empresas contratantes e contratadas, isonomia integral de direitos entre os trabalhadores, inclusive de normas coletivas mais favoráveis. Esses requisitos, que não foram adotados, seriam atenuantes para as consequências nefastas provocadas pela terceirização sobre as condições dos trabalhadores e sobre a própria vida de milhões de pessoas.
Também não há nenhuma coincidência no fato de que, em 2014, dos 10 maiores flagrantes de submissão de trabalhadores a condições análogas à de escravos no Brasil, apurados pelo Ministério do Trabalho, havia trabalhadores terceirizados em 8 casos, totalizando 384 trabalhadores contratados dessa forma. Em 7 desses flagrantes todos os trabalhadores eram terceirizados.
Nos últimos 5 anos (2010 a 2014), somados os 10 maiores flagrantes de trabalho análogo ao escravo detectados pelo Ministério do Trabalho em cada ano, 44 envolviam terceirizados. Ou seja, quase 90% desses 50 flagrantes. Nessas ações apurou-se que, dos 4183 trabalhadores submetidos a exploração criminosa, 3382 eram terceirizados, o que equivale a 81% do total de trabalhadores vitimados.
Do mesmo modo, não é obra do imponderável o fato de que as pesquisas apontam maior mortalidade entre os trabalhadores que não são diretamente contratados pelas empresas. Para ilustrar, o Setor da construção civil constante na Classificação Nacional de Atividades Econômicas (CNAE), analisado a partir das Divisões que o compõe, teve maior crescimento das mortes registradas, entre 2006 e 2012, justamente na Divisão mais propensa à terceirização. Enquanto, nesse período, a Divisão Construção de Edifícios teve incremento de 17,4% nos acidentes fatais e a Divisão Obras de Infraestrutura 39,1%, a Divisão de Serviços Especializados para Construção, que é um segmento do CNAE tipicamente terceirizado, teve crescimento de óbitos de 166,6%.
Nenhum desses dados é contingencial porque terceirização potencializa o despotismo patronal, seja tornando os trabalhadores individualmente ainda mais vulneráveis, seja dificultando a imposição de limites aos ditames empresariais por ações coletivas ou por meio das instituições de regulação do direito do trabalho.
O PL 4330, ao permitir a terceirização de todas as atividades de uma empresa, deixa explícito que terceirização não é divisão do trabalho. Até o momento, entretanto, confundir terceirização e divisão social do trabalho no capitalismo tem sido o grande golpe que as forças empresariais conseguiram tornar sendo comum.
O PL procura legalizar e legitimar a exploração de parcela relevante da população que já é terceirizada (talvez 25% do mercado de trabalho). Não fosse suficiente, poderá ampliar esse quadro para o restante da população empregada.
Mas ainda há tempo para resistir.
Em 2001, o PL 5483 (conhecido como projeto do “negociado sobre o legislado”), também amplamente desastroso para a classe trabalhadora, pois permitiria que negociações reduzissem as garantias mínimas previstas nas normas de proteção ao trabalho, foi aprovado na Câmara dos Deputados.
Porém, nunca teve seu trâmite legislativo finalizado por conta das reações contrárias.
Em 2007, após ser aprovada na Câmara e no Senado no bojo da Lei da Super Receita, a Chamada Emenda 3, que proibiria que Auditores Fiscais multassem empresas flagradas mantendo vínculos de emprego disfarçados, foi vetada pela Presidência.
Um importante movimento de resistência coletiva contra o PL 4330 já existe há alguns anos, capitaneado pelas diversas entidades que compõem um Fórum nacional sobre o tema. Essa luta coletiva precisa ser fortalecida.
Contudo, sem prejuízo da ação coletiva, pequenos engajamentos individuais difusos podem produzir um grande resultado coletivo contra esse golpe que está sendo aplicado sobre aqueles que vivem do trabalho no Brasil. São muitas as formas que qualquer um pode contribuir. Apenas para citar um simplório e indolor exemplo, a lista dos e-mails de Deputados e Senadores consta nos sites do Congresso, e os fatos têm demonstrado que o acúmulo de mensagens não passa despercebido.
Depois de tantas desagradáveis surpresas (ou não surpresas), o veto da presidente Dilma Rousseff ao PL 4330, caso o Senado também o aprove, é o mínimo que ela pode fazer para iniciar uma sinalização de coerência com o norte da sua campanha eleitoral. Se o Congresso vai ou não derrubar seu veto, não cabe ao Executivo usar como subterfúgio. Primeiro, porque tendo o Congresso pautado esse PL retrógrado, cabe a ele assumir as consequências políticas dessa opção. Segundo, e mais importante, não foi o Congresso que elegeu a Presidente da República.
* Vitor Araújo Filgueiras é pesquisador do CESIT (Centro de Estudos Sindicais e Economia do Trabalho) e pós-doutorando em Economia na UNICAMP. Auditor Fiscal do Trabalho. Integrante do grupo de pesquisa “Indicadores de Regulação do Emprego no Brasil”.
0 comentários:
Postar um comentário