Por Valmir Assunção, na revista Teoria e Debate:
O Brasil é um dos países que nunca resolveram a enorme desigualdade existente quando tratamos da estrutura agrária. As primeiras divisões do nosso território, no período colonial, excluíram a grande massa da população e instituíram o direito à terra de acordo com a influência política e econômica de determinadas famílias. E mesmo com o surgimento de uma burguesia industrial e a modernização do capitalismo, que poderia incentivar uma reforma agrária para aumentar o mercado consumidor, o país nunca conseguiu alterar sua estrutura agrária.
Deter terra no Brasil é o mesmo que possuir algum poder político. Essa determinação, consolidada pelos valores construídos por meio do significado da propriedade da terra, pode ser vista quando olhamos a influência desse setor no Estado brasileiro.
Faço esse pequeno preâmbulo porque é importante entender essas relações histórias quando analisamos as dificuldades diante das propostas de reforma agrária, mesmo após a Constituição de 1988. O surgimento de movimentos sociais e organizações do campo – como a Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (Contag), em 1964, a Comissão Pastoral da Terra (CPT), em 1975, e o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), em 1984 – é uma reação às consequências sociais da concentração fundiária. Sua pressão possibilitou o mecanismo da função social da terra como parte da determinação da propriedade – uma conquista que relativiza o direito absoluto sobre ela.
Ao mesmo tempo, o desenvolvimento hegemônico da agricultura sempre preservou a grande propriedade. A inserção do capital financeiro, já com a Revolução Verde, marca a aliança entre tal capital e os grandes latifundiários. Esse modelo se renova sob o discurso do agronegócio, que ressignifica o latifundiário em “empresário rural”, aliado ao capital estrangeiro, mas mantém as velhas práticas e valores da grande propriedade.
Enquanto modelo de desenvolvimento, no entanto, o agronegócio não é capaz de alimentar o povo brasileiro nem de garantir a qualidade do que produz. Por causa desse modelo, o Brasil é campeão de consumo de venenos agrícolas, os agrotóxicos, cuja importação saltou de US$ 259 milhões no ano 2000 para US$ 2,2 bilhões em 2012. É o agronegócio que está no topo da lista suja do trabalho escravo.
O IBGE nos mostra que a necessidade de importação elevou os custos dos alimentos no país, que, nesse contexto, têm seus preços balizados pelas variações do dólar. Dados da Associação Brasileira de Reforma Agrária (Abra) revelam que, de 1990 para 2011, as áreas plantadas com alimentos básicos como arroz, feijão, mandioca e trigo declinaram, respectivamente, 31%, 26%, 11% e 35%. Já as de cana de açúcar e soja, produtos nobres do agronegócio exportador, aumentaram 122% e 107%.
Por outro lado, Abra e IBGE dizem que mais de 70% dos alimentos consumidos pela população brasileira vêm da agricultura familiar. É também mérito da agricultura familiar a absorção de 74% da mão de obra empregada. No entanto, esses agricultores ocupam somente 24% das terras agricultáveis no Brasil e recebem, apenas, 14% dos créditos disponíveis, o que revela um contrassenso de prioridades.
A concentração de terras no Brasil significa fome e a exclusão de cerca de 3,8 milhões de camponeses de qualquer tipo de política pública estruturante, cuja consequência foi, ao longo da história, o êxodo. Hoje, são pelo menos 150 mil famílias acampadas em todo o país, muitas delas há mais de dez anos na luta e resistência para o acesso ao meio de produção, a terra.
Mais que justiça social, a reforma agrária é compromisso com o desenvolvimento no campo. O índice de Gini ao redor de 0,85, quando o máximo para medir a concentração fundiária é 1, equipara-se ao do período da ditadura civil-militar. Dados do Incra mostram que entre 2003 e 2010, cerca de 100 milhões de hectares passaram para o controle de latifundiários, aumentando não só a concentração da terra, mas também a improdutividade, de acordo com a declaração dos proprietários.
Esse nível de concentração é o grande responsável por tantos conflitos no campo. Dados da CPT mostram que os piores indicadores da reforma agrária dos últimos vinte anos foram registrados entre 2011 e 2014. Nesse período, houve uma redução no número de novos assentamentos rurais ou de titulação de territórios indígenas e de quilombos (comunidades de descendentes de escravos africanos), enquanto o investimento no agronegócio aumentou.
Segundo a CPT, no primeiro mandato da presidenta Dilma Rousseff, foram assentadas 103.746 famílias. No entanto, 73% se referem a processos que já estavam em andamento e haviam sido quantificados em anos anteriores. Se forem computadas apenas as novas famílias assentadas em novas áreas, o número cai para 28 mil.
Durante o ano de 2014, em particular, o governo reconhece ter regularizado apenas 6.289 famílias, um número que, de longe, não atende à demanda das famílias que permanecem acampadas à espera de definições.
A concentração resulta em conflitos que, na maioria das vezes, são provocadores de mortes de agricultores, indígenas e quilombolas no campo. Ainda de acordo com a CPT, aconteceram cerca de 1.300 assassinatos de trabalhadores rurais, indígenas, quilombolas e lideranças religiosas na última década pelo latifúndio e pelo agronegócio. No entanto, menos de 10% dos culpados foram levados a julgamento, criando um clima de impunidade e conivência com a violência do agronegócio.
Em 2013 os movimentos sociais foram responsáveis por 244 casos de conflito (230 ocupações e catorze acampamentos), 18,9% do total. Isso diz que 81,1% são provocados pela ação de fazendeiros, grileiros, madeireiros, empresários ou mineradores. Já os conflitos pela água bateram recorde em 2014: 127 ocorrências, com o envolvimento de 42.815 famílias. Todos os anos são libertadas cerca de 2 mil pessoas escravizadas, a maioria em grandes fazendas do agronegócio brasileiro.
Se queremos uma sociedade que prime pelos direitos básicos, como saúde, alimentação, segurança alimentar e nutricional, a solução está na democratização da terra, que proporciona um maior número de agricultores familiares que garantam uma alimentação saudável e mais empregos no campo.
O governo traz para o debate e para a ação dos órgãos responsáveis a necessidade do desenvolvimento dos assentamentos instituídos, com a qualificação de ações como o Luz para Todos, crédito para produção, assistência técnica. No entanto, precisamos ter em mente que reforma agrária é, prioritariamente, a democratização da propriedade da terra.
A distribuição da terra é urgente não só no aspecto socioeconômico, mas também diante do princípio da democracia. Os dados não deixam nenhuma margem para dúvidas. O caminho para o desenvolvimento sustentável, inclusivo e viável para a sociedade brasileira passa, necessariamente, pela reforma agrária.
* Valmir Assunção é militante do MST-BA, deputado federal PT-BA e membro do Conselho Curador da Fundação Perseu Abramo.
O Brasil é um dos países que nunca resolveram a enorme desigualdade existente quando tratamos da estrutura agrária. As primeiras divisões do nosso território, no período colonial, excluíram a grande massa da população e instituíram o direito à terra de acordo com a influência política e econômica de determinadas famílias. E mesmo com o surgimento de uma burguesia industrial e a modernização do capitalismo, que poderia incentivar uma reforma agrária para aumentar o mercado consumidor, o país nunca conseguiu alterar sua estrutura agrária.
Deter terra no Brasil é o mesmo que possuir algum poder político. Essa determinação, consolidada pelos valores construídos por meio do significado da propriedade da terra, pode ser vista quando olhamos a influência desse setor no Estado brasileiro.
Faço esse pequeno preâmbulo porque é importante entender essas relações histórias quando analisamos as dificuldades diante das propostas de reforma agrária, mesmo após a Constituição de 1988. O surgimento de movimentos sociais e organizações do campo – como a Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (Contag), em 1964, a Comissão Pastoral da Terra (CPT), em 1975, e o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), em 1984 – é uma reação às consequências sociais da concentração fundiária. Sua pressão possibilitou o mecanismo da função social da terra como parte da determinação da propriedade – uma conquista que relativiza o direito absoluto sobre ela.
Ao mesmo tempo, o desenvolvimento hegemônico da agricultura sempre preservou a grande propriedade. A inserção do capital financeiro, já com a Revolução Verde, marca a aliança entre tal capital e os grandes latifundiários. Esse modelo se renova sob o discurso do agronegócio, que ressignifica o latifundiário em “empresário rural”, aliado ao capital estrangeiro, mas mantém as velhas práticas e valores da grande propriedade.
Enquanto modelo de desenvolvimento, no entanto, o agronegócio não é capaz de alimentar o povo brasileiro nem de garantir a qualidade do que produz. Por causa desse modelo, o Brasil é campeão de consumo de venenos agrícolas, os agrotóxicos, cuja importação saltou de US$ 259 milhões no ano 2000 para US$ 2,2 bilhões em 2012. É o agronegócio que está no topo da lista suja do trabalho escravo.
O IBGE nos mostra que a necessidade de importação elevou os custos dos alimentos no país, que, nesse contexto, têm seus preços balizados pelas variações do dólar. Dados da Associação Brasileira de Reforma Agrária (Abra) revelam que, de 1990 para 2011, as áreas plantadas com alimentos básicos como arroz, feijão, mandioca e trigo declinaram, respectivamente, 31%, 26%, 11% e 35%. Já as de cana de açúcar e soja, produtos nobres do agronegócio exportador, aumentaram 122% e 107%.
Por outro lado, Abra e IBGE dizem que mais de 70% dos alimentos consumidos pela população brasileira vêm da agricultura familiar. É também mérito da agricultura familiar a absorção de 74% da mão de obra empregada. No entanto, esses agricultores ocupam somente 24% das terras agricultáveis no Brasil e recebem, apenas, 14% dos créditos disponíveis, o que revela um contrassenso de prioridades.
A concentração de terras no Brasil significa fome e a exclusão de cerca de 3,8 milhões de camponeses de qualquer tipo de política pública estruturante, cuja consequência foi, ao longo da história, o êxodo. Hoje, são pelo menos 150 mil famílias acampadas em todo o país, muitas delas há mais de dez anos na luta e resistência para o acesso ao meio de produção, a terra.
Mais que justiça social, a reforma agrária é compromisso com o desenvolvimento no campo. O índice de Gini ao redor de 0,85, quando o máximo para medir a concentração fundiária é 1, equipara-se ao do período da ditadura civil-militar. Dados do Incra mostram que entre 2003 e 2010, cerca de 100 milhões de hectares passaram para o controle de latifundiários, aumentando não só a concentração da terra, mas também a improdutividade, de acordo com a declaração dos proprietários.
Esse nível de concentração é o grande responsável por tantos conflitos no campo. Dados da CPT mostram que os piores indicadores da reforma agrária dos últimos vinte anos foram registrados entre 2011 e 2014. Nesse período, houve uma redução no número de novos assentamentos rurais ou de titulação de territórios indígenas e de quilombos (comunidades de descendentes de escravos africanos), enquanto o investimento no agronegócio aumentou.
Segundo a CPT, no primeiro mandato da presidenta Dilma Rousseff, foram assentadas 103.746 famílias. No entanto, 73% se referem a processos que já estavam em andamento e haviam sido quantificados em anos anteriores. Se forem computadas apenas as novas famílias assentadas em novas áreas, o número cai para 28 mil.
Durante o ano de 2014, em particular, o governo reconhece ter regularizado apenas 6.289 famílias, um número que, de longe, não atende à demanda das famílias que permanecem acampadas à espera de definições.
A concentração resulta em conflitos que, na maioria das vezes, são provocadores de mortes de agricultores, indígenas e quilombolas no campo. Ainda de acordo com a CPT, aconteceram cerca de 1.300 assassinatos de trabalhadores rurais, indígenas, quilombolas e lideranças religiosas na última década pelo latifúndio e pelo agronegócio. No entanto, menos de 10% dos culpados foram levados a julgamento, criando um clima de impunidade e conivência com a violência do agronegócio.
Em 2013 os movimentos sociais foram responsáveis por 244 casos de conflito (230 ocupações e catorze acampamentos), 18,9% do total. Isso diz que 81,1% são provocados pela ação de fazendeiros, grileiros, madeireiros, empresários ou mineradores. Já os conflitos pela água bateram recorde em 2014: 127 ocorrências, com o envolvimento de 42.815 famílias. Todos os anos são libertadas cerca de 2 mil pessoas escravizadas, a maioria em grandes fazendas do agronegócio brasileiro.
Se queremos uma sociedade que prime pelos direitos básicos, como saúde, alimentação, segurança alimentar e nutricional, a solução está na democratização da terra, que proporciona um maior número de agricultores familiares que garantam uma alimentação saudável e mais empregos no campo.
O governo traz para o debate e para a ação dos órgãos responsáveis a necessidade do desenvolvimento dos assentamentos instituídos, com a qualificação de ações como o Luz para Todos, crédito para produção, assistência técnica. No entanto, precisamos ter em mente que reforma agrária é, prioritariamente, a democratização da propriedade da terra.
A distribuição da terra é urgente não só no aspecto socioeconômico, mas também diante do princípio da democracia. Os dados não deixam nenhuma margem para dúvidas. O caminho para o desenvolvimento sustentável, inclusivo e viável para a sociedade brasileira passa, necessariamente, pela reforma agrária.
* Valmir Assunção é militante do MST-BA, deputado federal PT-BA e membro do Conselho Curador da Fundação Perseu Abramo.
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