Por Saul Leblon, no site Carta Maior:
Florestan Fernandes, que o Brasil perdeu há vinte anos (10-08-1995), dizia que o seu socialismo era a democracia levada às últimas consequências. Uma democracia para valer, uma democracia de todos. Sobretudo para todos.
O marxista que foi professor de Fernando Henrique Cardoso, entre outros, rompeu com o pupilo a quem ironizava a pretensão de ser um cavalo de Tróia das elites – querer reformar o capitalismo por dentro, em parceria com seus donos.
De origem humilde, Florestan começou a trabalhar aos seis anos. A pobreza afastou-o da escola aos nove, para devolve-lo só aos 17. Em 1943 estava formado: sociólogo.
Autor de 53 livros, foi cassado e exilado. A filiação ao PT só aconteceria em 1986, seis anos após a criação do partido, do qual foi deputado constituinte em 1988, sendo reeleito para um segundo mandato, que exerceu até perto de falecer, em 1995.
Referência da sociologia crítica, Florestan tinha muito claro o que significava uma democracia para valer.
Direitos, naturalmente.
Mas acima de tudo: conquistas transformadoras.
Quais?
Todas as necessárias para reunir o poder indispensável capaz de alterar ‘estruturas, ritmos e funções da economia’ – como lembra um trabalho do pesquisador Marcos Marques Moreira, (‘Professor Florestan e as lições que o PT esqueceu’).
Florestan dizia que esse deveria ser - ‘sempre’ - o norte do partido: ‘uma democracia de todos para todos’.
Levar o ‘poder do povo, para o povo, pelo povo’ às últimas consequências, em uma sociedade marcada por 388 anos de sistema escravocrata, não era assunto para retórica ou vacilações.
O sociólogo enxergava nisso a carne e o osso, o corpo e a alma, os nervos e músculos que poderiam sustentar o PT nas encruzilhadas e armadilhas da história.
Caso contrário, o risco também era muito claro para ele: reduzir tudo a um “sonho perdido”.
Disse isso em 1990.
Um quarto de século depois, o pesadelo se aproxima perigosamente da fronteira do real.
Se ainda não está completamente perdido, o sonho vagueia à procura de seus personagens.
A deriva ameaça seccionar de vez a trajetória impulsionada desde as grandes greves operárias do ABC paulista, nos anos 70/80.
Um aluvião que, espantosamente aos olhos da senzala como da casa grande, revolveria dogmas e interditos seculares dos donos do dinheiro e da liberdade para levar um metalúrgico à Presidência da sétima maior economia do planeta.
Mais que isso.
Arrastaria, junto, cerca de 60 milhões que subsistiam na soleira da porta, do lado de fora do país, abrindo-lhes o acesso ao mercado interno e à cidadania.
O conjunto mudou a trama política, redesenhou a economia e renovou a geopolítica brasileira.
Fez mais: esburacou seriamente o caminho que permitia às elites revezarem-se no poder, mantendo-se o povo espremido no acostamento precário, à espera de caronas que nunca vem.
Querer reduzir tudo isso a um ciclo de alta das commodities –que teve seu papel lubrificante, sem dúvida— é abstrair o motor da desigualdade que move cinco séculos de lutas populares na distribuição de renda mais iníqua, entre as grandes nações do planeta.
Igualmente ingênuo é supor que isso se faria higienicamente.
Sem perdas e danos para quem ousasse a experiência de administrar esse capitalismo, sem ter força e hegemonia, ainda, para modifica-lo ordenadamente.
Como?
Como prescrevem os manuais do desenvolvimento elegante e equilibrado.
Esse que só existe nos manuais do desenvolvimento elegante e equilibrado: primeiro, você investe em infraestrutura, então fomenta as exportações, depois, com receitas e contas equilibradas, calibra harmoniosamente a demanda com a oferta prevalecente.
Enquanto isso, a senzala hiberna serena, resignada como num postal de lago suíço.
‘Vamos viver de brisa, meu amor’, diria Manuel Bandeira.
Visto do alto desse mirante asséptico e idílico, a ‘democracia de todos para todos’, de Florestan, em vez de alavanca de justiça como supôs, seria a cereja do bolo.
O PT e Lula? A velinha do aniversário.
Coisa para ser acesa daqui a uns dois séculos de avanço incremental e frugal a cargo de sábios dos mercados perfeitos.
Eles, os economistas de bancos.
Naturalmente.
Ademais do seu elevado discernimento pátrio, contam ainda com o vento a favor que os explica e incentiva diuturnamente: o jornalismo embarcado na tarefa de martelar ‘a lição de casa’, como diz a pedagogia da opressão infantilizante contida na fábula do capitalismo autorregulado.
Bem, as coisas não aconteceram exatamente assim por essas bandas.
A pasta de dente escapou do tubo.
Mãos açodadas tentam devolve-la agora, da forma que isso costuma ser feito nas republicanas latino-americanas e com o fair play característico.
Inclui-se nessa determinação de ‘pôr ordem na casa’ jogar no lixo da história tudo e todos que contribuíram para o vazamento precoce e imprevidente.
A operação consiste –entre outras providências-- em pinçar, magnificar e generalizar os erros, os ilícitos, a soberba, as falhas, as omissões e besteiras de toda sorte que possam ter sido – e foram-- cometidos individualmente ou em conjunto pelos ‘petistas’, num processo ora esgotado pela mudança de ciclo da economia mundial.
Não, Mirian & Sardenberg, o Brasil não é uma ilha de crise cercada de prosperidade por todos os lados.
A crise da desordem neoliberal – essa da receita que se preconiza como panaceia para o Brasil-- persiste há sete anos em recidivas rotativas; a desta semana a cargo do yuan chinês. Antes, a Grécia, amanhã...
A mazzorca mundial não criou, mas escancarou as tensões, os desequilíbrios e, claro, os equívocos registrados na luta pela construção de um Estado de bem estar social tardio, na era da supremacia das finanças desreguladas.
Esse o ponto onde estamos.
Dele irrompe a angustiante saraivada de perguntas que martelam os dias e as noites dos seus principais protagonistas em estado de perplexidade e prostração diante da esfinge que ameaça devorá-los.
‘Como desarmar um sequestro paralisante, do qual o PT é refém mas também, em parte, a tranca da porta?
‘Um partido de trabalhadores consegue se despir dos vícios e desvios da política conservadora depois de passar pela experiência do poder no capitalismo?
‘Consegue sobreviver sem se calcificar nos limites e compromissos inerentes à correlação de forças desfavorável à qual se ajustou? (Para sobreviver, mas também por equívoco e/ou desfrute de uma ilusória ‘aceitação’ pelo status quo.)
‘Pode recuperar o rumo sem o qual descansará sob a lápide do sonho perdido de Florestan?’
Ou restará como o suicida histórico diagnosticado por Wanderley Guilherme? (Leia nesta página o artigo do mestre da análise política no país).
A perplexidade do entorno petista e o politicídio do cerco contra o partido se diferenciam não apenas na avaliação do seu presente e do seu legado.
Pretender que tudo não tenha sido mais que uma cínica e devoradora fraude, uma ação de quadrilha, como sugere o juiz de Curitiba e seus centuriões midiáticos, é mais que reescrever a história com as tintas do preconceito conservador.
É tentar sofregamente desautorizar o papel que as lutas sociais tiveram, tem, e ainda terão, na ordenação do país, na sorte do seu desenvolvimento e no destino de sua sociedade.
Fique claro, para além das responsabilidades e pecados individuais: o alvo em curso não é o pescoço de Dirceu, não é o de Lula ou o de Dilma.
A meta-síntese do arrastão desse garrote é esgoelar o povo brasileiro.
O PT, hoje, dado como cachorro morto, é a jugular mais cobiçada da rosca depuradora.
Por que a obsessão em sangrar, picar e salgar o que já morreu?
Por mais que se martele o oposto, a tragédia do PT consiste justamente no fato de não se tratar aqui de um ‘bando’. Mas de um futuro em disputa.
Por mais que o medo e o ódio queiram e até certo ponto tenham conseguido circunscrever a tragédia assim, no laço desse garrote o pescoço é coletivo.
E a voz densamente popular.
Ela remete a 500 anos de resistência à opressão.
Remete à luta dos indígenas, às sublevações quilombolas, aos levantes anticoloniais, à subversão antiescravagista, às greves anarquistas, à histórica criação dos partidos comunistas e socialistas, à luta nacionalista pelo comando da riqueza nacional, ao trabalhismo do Vargas progressista, à campanha pelas reformas de base, às Ligas Camponesas, à resistência à ditadura, às comunidades de base, às Diretas, à Constituinte Cidadã de 1988, na qual o deputado petista Florestan Fernandes espetou o direito inalienável a uma escola pública de qualidade, não para substituir a luta contra a opressão por meritocracia neoliberal, mas para encurtar o tempo histórico desse aluvião em busca da emancipação coletiva do povo brasileiro.
Portanto, não estamos diante de um aparato, uma quadrilha, um covil de bandidos, um biombo dissimulado em militantes da luta popular.
Fosse o que outras siglas se comprazem em personificar não haveria a tragédia.
Com todas as fragilidades e paradoxos sabidos e mencionados, na tragédia do PT pulsa a ‘democracia de todos para todos’.
O sonho que ficou incrustrado no torneiro mecânico, contra o qual se revigora a chave da desqualificação agora ainda mais virulenta que aquela de 1932, 1954, 1962, 1964, 1969, 1988,1994, 2002, 2006, 2010, 2014...
Pelo motivo que o próprio personagem nunca teve dúvida em expressar: ‘Eu sou uma criação coletiva do povo brasileiro’.
Daí o orgulho, ontem, dos que nele se enxergaram.
E a perplexidade dolorida, hoje, pelas trincas do caminho, sentenciadas como esfarelamento irremediável pelos seus críticos.
Nenhum partido pode subsistir assim, tendo a sua história capturada febrilmente, e toxicamente reescrita com base em erros –reais e desastrosos-- mas também em falsificações atribuídas, grotescas e infames.
Se o PT não se reapoderar do seu sentido vai morrer.
A operação em curso visa condensar na sigla toda a tragédia da democracia brasileira –que está longe de ser a ‘de todos e para todos’.
O cessar fogo decretado pelo O Globo, o principal grupo de mídia do país, dá a medida do fosso existente entre a democracia que temos e a preconizada por Florestan.
A trégua inspira um sentimento misto de alívio e vergonha.
Nua e cruamente ela reduz o país ao que o conservadorismo quer que ele seja: um item da grade da Globo, remanejavel, descarada e cinicamente, ao sabor de interesses comerciais e plutocráticos.
Acima de tudo, porém, a operação dá a medida do fatia não negligenciável da crise econômica a ser debitada no arcabouço de uma palavra: sabotagem.
O PT tem escolhas a fazer diante da condescendência acenada pelo garrote.
Se adotar o silencio obsequioso de quem suplica indulgência será varrido como objeto histórico anacrônico.
Se abraçar a boia furada da moeda de troca que lhe é cobrada –a ‘Agenda Brasil’, de Renan & Levy, que inclui a privatização do SUS, entre outras pérolas da restauração neoliberal-- ingressará num estágio de putrefação política irreversível.
Não se trata dissimular fragilidade com retórica e heroísmo.
O PT só tem uma finalidade na história brasileira.
E é nela que pode encontrar a saída para o seu labirinto.
Entregar-se a quem de direito.
Quem?
O povo, de cuja vértebra nasceu o sonho que agora ameaça se perder, como advertiu Florestan Fernandes em 1990.
Não, não é uma abstração sociológica.
O dono do PT está aí, à espera de um gesto.
Onde sempre esteve: nas portas de fábricas, nas periferias conflagradas, nas conferencias nacionais da cidadania, nas igrejas, nas universidades, nos sindicatos, nas mães do Bolsa Família, nos bolsistas do Prouni, nos moradores do Minha Casa, nos sem teto do MTST, nos acampados do MST, nos que labutam a terra, nos operários do PAC, nos intelectuais, nos estudantes...
Com eles deve ser erguida a ponte da autocrítica e do desassombro.
Essa, capaz de surpreender indo além das lamúrias da autodefesa reflexa.
Nenhuma prioridade é mais importante nesse momento do que promover esse reatamento de depuração e reerguimento.
Se ela falhar, todas as demais naufragarão –inclusive o governo Dilma.
Não haverá frente, nem repactuação com ninguém se a retaguarda do PT estiver desmantelada.
Não é tarefa burocrática. É quase uma revolução política e cultural.
Dirigentes e lideranças tem que se despir dos punhos de renda adquiridos, pretensos ou cultivados com o zelo dos emergentes da autorrelevância.
Rotinas elevadas à condição de cosmologia sagrada, típicas dos aparatos autocentrados são grotescas nessa hora.
Varrer o acessório que estorva o essencial e faze-lo radicalmente é uma precondição: quem não estiver disposto não conta mais.
A conversa mais importante é com aqueles que não estão sendo ouvidos.
Não com os que se repetem.
Na abertura da Marcha das Margaridas, na noite desta 3ª feira, em Brasília, Lula anunciou: 'Estou preparando meu caminhãozinho para andar pelo Brasil’.
Faz tanto sentido quanto o ar que se respira.
Não é necessário endossar o trajeto de um resgate social inconcluso para reconhecer que o degrau alcançado no país favorece novos saltos.
Ou como resumiu Lula na mesma 3ª feira: ‘ Quem comeu filé, não quer mais comer bucho’;
O conservadorismo local e globalizado sabe que nessa travessia simbólica e incompleta reside o perigo de um PT vivo.
Não é apenas o legado de 12 anos, contra o qual agora se conspira na forma de uma ‘purga sem cura’, sangrando o emprego, o salário, o poder de resistência dos sindicatos etc
Mas é o risco de que o 'inconcluso e o insuficiente' possam, se não forem destruídos agora, na vulnerável transição de ciclo de desenvolvimento, gerar a massa crítica de um novo salto, de DNA histórico semelhante ao original.
Desta feita, porém, em escala ampliada e fulminante.
Com o risco de destampar a garrafa da história onde pulsa o Brasil de Florestan Fernandes: ‘uma democracia de todos para todos’.
É o que resta tentar. E não é fácil.
Mas é pegar ou largar. E largando, deslizar a alma no sumidouro da história, onde repousa o cemitério dos sonhos perdidos.
Florestan Fernandes, que o Brasil perdeu há vinte anos (10-08-1995), dizia que o seu socialismo era a democracia levada às últimas consequências. Uma democracia para valer, uma democracia de todos. Sobretudo para todos.
O marxista que foi professor de Fernando Henrique Cardoso, entre outros, rompeu com o pupilo a quem ironizava a pretensão de ser um cavalo de Tróia das elites – querer reformar o capitalismo por dentro, em parceria com seus donos.
De origem humilde, Florestan começou a trabalhar aos seis anos. A pobreza afastou-o da escola aos nove, para devolve-lo só aos 17. Em 1943 estava formado: sociólogo.
Autor de 53 livros, foi cassado e exilado. A filiação ao PT só aconteceria em 1986, seis anos após a criação do partido, do qual foi deputado constituinte em 1988, sendo reeleito para um segundo mandato, que exerceu até perto de falecer, em 1995.
Referência da sociologia crítica, Florestan tinha muito claro o que significava uma democracia para valer.
Direitos, naturalmente.
Mas acima de tudo: conquistas transformadoras.
Quais?
Todas as necessárias para reunir o poder indispensável capaz de alterar ‘estruturas, ritmos e funções da economia’ – como lembra um trabalho do pesquisador Marcos Marques Moreira, (‘Professor Florestan e as lições que o PT esqueceu’).
Florestan dizia que esse deveria ser - ‘sempre’ - o norte do partido: ‘uma democracia de todos para todos’.
Levar o ‘poder do povo, para o povo, pelo povo’ às últimas consequências, em uma sociedade marcada por 388 anos de sistema escravocrata, não era assunto para retórica ou vacilações.
O sociólogo enxergava nisso a carne e o osso, o corpo e a alma, os nervos e músculos que poderiam sustentar o PT nas encruzilhadas e armadilhas da história.
Caso contrário, o risco também era muito claro para ele: reduzir tudo a um “sonho perdido”.
Disse isso em 1990.
Um quarto de século depois, o pesadelo se aproxima perigosamente da fronteira do real.
Se ainda não está completamente perdido, o sonho vagueia à procura de seus personagens.
A deriva ameaça seccionar de vez a trajetória impulsionada desde as grandes greves operárias do ABC paulista, nos anos 70/80.
Um aluvião que, espantosamente aos olhos da senzala como da casa grande, revolveria dogmas e interditos seculares dos donos do dinheiro e da liberdade para levar um metalúrgico à Presidência da sétima maior economia do planeta.
Mais que isso.
Arrastaria, junto, cerca de 60 milhões que subsistiam na soleira da porta, do lado de fora do país, abrindo-lhes o acesso ao mercado interno e à cidadania.
O conjunto mudou a trama política, redesenhou a economia e renovou a geopolítica brasileira.
Fez mais: esburacou seriamente o caminho que permitia às elites revezarem-se no poder, mantendo-se o povo espremido no acostamento precário, à espera de caronas que nunca vem.
Querer reduzir tudo isso a um ciclo de alta das commodities –que teve seu papel lubrificante, sem dúvida— é abstrair o motor da desigualdade que move cinco séculos de lutas populares na distribuição de renda mais iníqua, entre as grandes nações do planeta.
Igualmente ingênuo é supor que isso se faria higienicamente.
Sem perdas e danos para quem ousasse a experiência de administrar esse capitalismo, sem ter força e hegemonia, ainda, para modifica-lo ordenadamente.
Como?
Como prescrevem os manuais do desenvolvimento elegante e equilibrado.
Esse que só existe nos manuais do desenvolvimento elegante e equilibrado: primeiro, você investe em infraestrutura, então fomenta as exportações, depois, com receitas e contas equilibradas, calibra harmoniosamente a demanda com a oferta prevalecente.
Enquanto isso, a senzala hiberna serena, resignada como num postal de lago suíço.
‘Vamos viver de brisa, meu amor’, diria Manuel Bandeira.
Visto do alto desse mirante asséptico e idílico, a ‘democracia de todos para todos’, de Florestan, em vez de alavanca de justiça como supôs, seria a cereja do bolo.
O PT e Lula? A velinha do aniversário.
Coisa para ser acesa daqui a uns dois séculos de avanço incremental e frugal a cargo de sábios dos mercados perfeitos.
Eles, os economistas de bancos.
Naturalmente.
Ademais do seu elevado discernimento pátrio, contam ainda com o vento a favor que os explica e incentiva diuturnamente: o jornalismo embarcado na tarefa de martelar ‘a lição de casa’, como diz a pedagogia da opressão infantilizante contida na fábula do capitalismo autorregulado.
Bem, as coisas não aconteceram exatamente assim por essas bandas.
A pasta de dente escapou do tubo.
Mãos açodadas tentam devolve-la agora, da forma que isso costuma ser feito nas republicanas latino-americanas e com o fair play característico.
Inclui-se nessa determinação de ‘pôr ordem na casa’ jogar no lixo da história tudo e todos que contribuíram para o vazamento precoce e imprevidente.
A operação consiste –entre outras providências-- em pinçar, magnificar e generalizar os erros, os ilícitos, a soberba, as falhas, as omissões e besteiras de toda sorte que possam ter sido – e foram-- cometidos individualmente ou em conjunto pelos ‘petistas’, num processo ora esgotado pela mudança de ciclo da economia mundial.
Não, Mirian & Sardenberg, o Brasil não é uma ilha de crise cercada de prosperidade por todos os lados.
A crise da desordem neoliberal – essa da receita que se preconiza como panaceia para o Brasil-- persiste há sete anos em recidivas rotativas; a desta semana a cargo do yuan chinês. Antes, a Grécia, amanhã...
A mazzorca mundial não criou, mas escancarou as tensões, os desequilíbrios e, claro, os equívocos registrados na luta pela construção de um Estado de bem estar social tardio, na era da supremacia das finanças desreguladas.
Esse o ponto onde estamos.
Dele irrompe a angustiante saraivada de perguntas que martelam os dias e as noites dos seus principais protagonistas em estado de perplexidade e prostração diante da esfinge que ameaça devorá-los.
‘Como desarmar um sequestro paralisante, do qual o PT é refém mas também, em parte, a tranca da porta?
‘Um partido de trabalhadores consegue se despir dos vícios e desvios da política conservadora depois de passar pela experiência do poder no capitalismo?
‘Consegue sobreviver sem se calcificar nos limites e compromissos inerentes à correlação de forças desfavorável à qual se ajustou? (Para sobreviver, mas também por equívoco e/ou desfrute de uma ilusória ‘aceitação’ pelo status quo.)
‘Pode recuperar o rumo sem o qual descansará sob a lápide do sonho perdido de Florestan?’
Ou restará como o suicida histórico diagnosticado por Wanderley Guilherme? (Leia nesta página o artigo do mestre da análise política no país).
A perplexidade do entorno petista e o politicídio do cerco contra o partido se diferenciam não apenas na avaliação do seu presente e do seu legado.
Pretender que tudo não tenha sido mais que uma cínica e devoradora fraude, uma ação de quadrilha, como sugere o juiz de Curitiba e seus centuriões midiáticos, é mais que reescrever a história com as tintas do preconceito conservador.
É tentar sofregamente desautorizar o papel que as lutas sociais tiveram, tem, e ainda terão, na ordenação do país, na sorte do seu desenvolvimento e no destino de sua sociedade.
Fique claro, para além das responsabilidades e pecados individuais: o alvo em curso não é o pescoço de Dirceu, não é o de Lula ou o de Dilma.
A meta-síntese do arrastão desse garrote é esgoelar o povo brasileiro.
O PT, hoje, dado como cachorro morto, é a jugular mais cobiçada da rosca depuradora.
Por que a obsessão em sangrar, picar e salgar o que já morreu?
Por mais que se martele o oposto, a tragédia do PT consiste justamente no fato de não se tratar aqui de um ‘bando’. Mas de um futuro em disputa.
Por mais que o medo e o ódio queiram e até certo ponto tenham conseguido circunscrever a tragédia assim, no laço desse garrote o pescoço é coletivo.
E a voz densamente popular.
Ela remete a 500 anos de resistência à opressão.
Remete à luta dos indígenas, às sublevações quilombolas, aos levantes anticoloniais, à subversão antiescravagista, às greves anarquistas, à histórica criação dos partidos comunistas e socialistas, à luta nacionalista pelo comando da riqueza nacional, ao trabalhismo do Vargas progressista, à campanha pelas reformas de base, às Ligas Camponesas, à resistência à ditadura, às comunidades de base, às Diretas, à Constituinte Cidadã de 1988, na qual o deputado petista Florestan Fernandes espetou o direito inalienável a uma escola pública de qualidade, não para substituir a luta contra a opressão por meritocracia neoliberal, mas para encurtar o tempo histórico desse aluvião em busca da emancipação coletiva do povo brasileiro.
Portanto, não estamos diante de um aparato, uma quadrilha, um covil de bandidos, um biombo dissimulado em militantes da luta popular.
Fosse o que outras siglas se comprazem em personificar não haveria a tragédia.
Com todas as fragilidades e paradoxos sabidos e mencionados, na tragédia do PT pulsa a ‘democracia de todos para todos’.
O sonho que ficou incrustrado no torneiro mecânico, contra o qual se revigora a chave da desqualificação agora ainda mais virulenta que aquela de 1932, 1954, 1962, 1964, 1969, 1988,1994, 2002, 2006, 2010, 2014...
Pelo motivo que o próprio personagem nunca teve dúvida em expressar: ‘Eu sou uma criação coletiva do povo brasileiro’.
Daí o orgulho, ontem, dos que nele se enxergaram.
E a perplexidade dolorida, hoje, pelas trincas do caminho, sentenciadas como esfarelamento irremediável pelos seus críticos.
Nenhum partido pode subsistir assim, tendo a sua história capturada febrilmente, e toxicamente reescrita com base em erros –reais e desastrosos-- mas também em falsificações atribuídas, grotescas e infames.
Se o PT não se reapoderar do seu sentido vai morrer.
A operação em curso visa condensar na sigla toda a tragédia da democracia brasileira –que está longe de ser a ‘de todos e para todos’.
O cessar fogo decretado pelo O Globo, o principal grupo de mídia do país, dá a medida do fosso existente entre a democracia que temos e a preconizada por Florestan.
A trégua inspira um sentimento misto de alívio e vergonha.
Nua e cruamente ela reduz o país ao que o conservadorismo quer que ele seja: um item da grade da Globo, remanejavel, descarada e cinicamente, ao sabor de interesses comerciais e plutocráticos.
Acima de tudo, porém, a operação dá a medida do fatia não negligenciável da crise econômica a ser debitada no arcabouço de uma palavra: sabotagem.
O PT tem escolhas a fazer diante da condescendência acenada pelo garrote.
Se adotar o silencio obsequioso de quem suplica indulgência será varrido como objeto histórico anacrônico.
Se abraçar a boia furada da moeda de troca que lhe é cobrada –a ‘Agenda Brasil’, de Renan & Levy, que inclui a privatização do SUS, entre outras pérolas da restauração neoliberal-- ingressará num estágio de putrefação política irreversível.
Não se trata dissimular fragilidade com retórica e heroísmo.
O PT só tem uma finalidade na história brasileira.
E é nela que pode encontrar a saída para o seu labirinto.
Entregar-se a quem de direito.
Quem?
O povo, de cuja vértebra nasceu o sonho que agora ameaça se perder, como advertiu Florestan Fernandes em 1990.
Não, não é uma abstração sociológica.
O dono do PT está aí, à espera de um gesto.
Onde sempre esteve: nas portas de fábricas, nas periferias conflagradas, nas conferencias nacionais da cidadania, nas igrejas, nas universidades, nos sindicatos, nas mães do Bolsa Família, nos bolsistas do Prouni, nos moradores do Minha Casa, nos sem teto do MTST, nos acampados do MST, nos que labutam a terra, nos operários do PAC, nos intelectuais, nos estudantes...
Com eles deve ser erguida a ponte da autocrítica e do desassombro.
Essa, capaz de surpreender indo além das lamúrias da autodefesa reflexa.
Nenhuma prioridade é mais importante nesse momento do que promover esse reatamento de depuração e reerguimento.
Se ela falhar, todas as demais naufragarão –inclusive o governo Dilma.
Não haverá frente, nem repactuação com ninguém se a retaguarda do PT estiver desmantelada.
Não é tarefa burocrática. É quase uma revolução política e cultural.
Dirigentes e lideranças tem que se despir dos punhos de renda adquiridos, pretensos ou cultivados com o zelo dos emergentes da autorrelevância.
Rotinas elevadas à condição de cosmologia sagrada, típicas dos aparatos autocentrados são grotescas nessa hora.
Varrer o acessório que estorva o essencial e faze-lo radicalmente é uma precondição: quem não estiver disposto não conta mais.
A conversa mais importante é com aqueles que não estão sendo ouvidos.
Não com os que se repetem.
Na abertura da Marcha das Margaridas, na noite desta 3ª feira, em Brasília, Lula anunciou: 'Estou preparando meu caminhãozinho para andar pelo Brasil’.
Faz tanto sentido quanto o ar que se respira.
Não é necessário endossar o trajeto de um resgate social inconcluso para reconhecer que o degrau alcançado no país favorece novos saltos.
Ou como resumiu Lula na mesma 3ª feira: ‘ Quem comeu filé, não quer mais comer bucho’;
O conservadorismo local e globalizado sabe que nessa travessia simbólica e incompleta reside o perigo de um PT vivo.
Não é apenas o legado de 12 anos, contra o qual agora se conspira na forma de uma ‘purga sem cura’, sangrando o emprego, o salário, o poder de resistência dos sindicatos etc
Mas é o risco de que o 'inconcluso e o insuficiente' possam, se não forem destruídos agora, na vulnerável transição de ciclo de desenvolvimento, gerar a massa crítica de um novo salto, de DNA histórico semelhante ao original.
Desta feita, porém, em escala ampliada e fulminante.
Com o risco de destampar a garrafa da história onde pulsa o Brasil de Florestan Fernandes: ‘uma democracia de todos para todos’.
É o que resta tentar. E não é fácil.
Mas é pegar ou largar. E largando, deslizar a alma no sumidouro da história, onde repousa o cemitério dos sonhos perdidos.
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