Por Paulo Kliass, no site Carta Maior:
Logo em seguida ao anúncio dos resultados eleitorais de outubro do ano passado, a realidade das contas públicas em nosso país foi se tornando cada vez mais transparente. As dificuldades no equacionamento do desequilíbrio entre as receitas e as despesas no âmbito do governo federal vieram à tona e tornou-se imperioso um debate amplo a respeito dos vários caminhos existentes para enfrentar a questão. Ao contrário do que tenta nos impor a corrente da ortodoxia por meio dos meios de comunicação, sempre existem alternativas distintas para superar esse tipo de problema na economia.
Porém, a opção adotada pelo governo de Dilma foi a nossa já conhecida trilha do austericídio. Ao se agarrar de forma inapelável ao cumprimento do dogma do superávit primário, a Presidenta da República se rendeu às exigências do financismo. Além disso - e para que não permanecesse nenhuma dúvida a respeito de suas reais intenções - nomeou um diretor do Bradesco para ocupar o cargo de Ministro da Fazenda. Contando com ampla autonomia política para conduzir o ajuste, Joaquim Levy elaborou um plano orientado essencialmente para o corte de despesas públicas, com o objetivo de reequilibrar as contas da União.
Parece sensato que haja efetivamente um esforço de qualquer governo para tentar recompor sua capacidade orçamentária, sempre que necessário. Desconheço qualquer economista ou profissional que opere com a esfera das finanças públicas que não se renda a essa evidência. A verdadeira polêmica tem início, no entanto, quando se debatem quais são as alternativas que devem ser utilizadas para a busca de tal reequilíbrio.
A malandragem do superávit primário
O péssimo pontapé inicial está localizado justamente na incorporação passiva do traiçoeiro conceito de “superávit primário”. Na verdade, trata-se de uma malandragem urdida nos meandros do sistema financeiro internacional, ainda na década de 1980. Concebido em meio aos chamados “ajustes estruturais” que pululavam por todos os cantos, seu objetivo era assegurar os interesses dos organismos e países credores nas renegociações das dívidas com os governos dos países devedores, em especial as nações do então chamado Terceiro Mundo.
Graças ao acréscimo sútil do adjetivo “primário” à noção mais ampla de “superávit fiscal”, o que se pretendia era assegurar que todo o esforço de natureza econômico-financeira imposto às economias em crise não comprometesse o fluxo de pagamento dos juros e serviços da dívida dos mesmos. Dessa forma, a recomendação emanada de Washington era no sentido de que os governos promovessem cortes e ajustes em sua estrutura de despesas. Porém, - atenção! - que jamais reduzissem as rubricas associadas à esfera financeira. Afinal, todos devem promover sacrifícios e cortar na própria carne. Mas desde que nunca reduzam os valores destinados aos bancos e demais instituições credoras da dívida.
De posse dessa formuleta mágica e com todo o apoio angariado junto aos órgãos de imprensa trabalhando a seu favor, o financismo venceu a batalha ideológica. Com isso, logrou convencer a sociedade a respeito da inevitabilidade de seu projeto. Não se trata mais de discutir a estrutura global de despesas do Estado em sua relação com o conjunto de receitas arrecadadas. Afinal, se o caminho passasse por proceder a uma avaliação detalhada e exaustiva de cada uma das rubricas dos gastos, perceber-se-ia que as contas que mais pesam para comprometer o déficit atual são exatamente aquelas associadas à dimensão financeira. Em síntese, se o caminho a ser adotado é o dos cortes no Orçamento Geral da União (OGU), a primeira e grande “tesourada” deveria ocorrer no imenso volume de juros pagos ao sistema financeiro, por conta dos compromissos com os títulos da dívida pública.
Pagamento de juros: vilão do déficit
Ao invés de se preocupar com os supostos exageros de gastos com saúde, educação, previdência social, direitos trabalhistas, pagamento de pessoal e investimento em infraestrutura, por exemplo, bastaria redirecionar o olhar para uma abordagem integrada do conjunto das despesas do governo federal. Com isso, ficaria claro que o maior item individual de peso na estrutura de dispêndios é a conta de pagamento de juros e serviços relativos ao endividamento. Ou seja, para quem deseja ser “eficiente” no ajuste, esse deveria ser o primeiro foco de atenção quando se discute redução dos gastos.
O Boletim de Política Fiscal do Banco Central (BC) nos oferece um retrato fiel da situação das finanças públicas brasileiras. E ali está registrado, com riqueza de detalhes, a forma como está sendo implementada a estratégia do austericídio. Para o período de 12 meses, que vai de setembro de 2014 a agosto de 2015, as despesas com pagamento de juros atingiram um patamar assustador. Foram registrados R$ 484 bilhões, com tendência de aumento nos meses que faltam para o encerramento do ano oficial em dezembro. Trata-se da maior rubrica individual de despesa e que representa um dos mais ineficientes sistemas de alocação de dinheiro público.
Recursos aplicados na oferta de serviços do Sistema Único de Saúde (SUS) ou no pagamento de benefícios do Regime Geral de Previdência Social (RGPS) oferecem um inequívoco aspecto de justiça social e mesmo de retorno econômico. Investimentos em programas na área da educação ou do tipo “Minha Casa, Minha Vida” contêm uma orientação explícita de atender à maioria dos necessitados de nossa sociedade. Esse tipo de execução orçamentária obedece aos critérios de promover políticas públicas de promoção do desenvolvimento e de redução das desigualdades sociais e econômicas que ainda nos são características. Isso significa reconhecer que não caberia demandar ainda mais sacrifícios dessa parcela da população, que tanto tem sofrido ao longo da História para avançar degraus mínimos em sua condição social e de conquista de cidadania.
Mais de R$ 100 bi para especulação cambial
Mas as informações constantes do próprio BC nos advertem que a linha adotada pelo governo tem sido de orientação diversa. Para além do absurdo do mencionado desperdício de recursos com o pagamento de juros da dívida, ao longo dos últimos 2 anos o BC tem destinado um volume de dinheiro também estupendo para acalmar os humores de uma parcela do sistema financeiro. Trata-se de títulos especiais oferecidos pela autoridade monetária aos que especulam no mercado de moeda estrangeira, os chamados “swaps” cambiais. O intuito é a velha estória de assegurar ganhos ao capital das finanças, oferecendo a eles a generosidade do “capitalismo sem risco”.
Como a política de taxa de câmbio sobrevalorizada artificialmente era considerada insustentável no médio e no longo prazos, o mercado foi contemplado com mais essa benesse, sempre a ser custeada com recursos públicos. A instituição financeira compra um título lastreado em dólar, mas o governo assume a diferença caso ocorra alguma mudança na taxa de câmbio. Ora, com a crescente desvalorização do real verificada ao longo dos últimos tempos, a conta tem ficado cada vez mais pesada para os cofres públicos. Em 2012 e 2013, por exemplo, o custo foi praticamente nulo. Já em 2014, sobe para R$ 17 bilhões. E ao longo dos últimos 12 meses chegou a R$ 111 bilhões o valor repassado aos agentes do mercado financeiro por conta desse tipo de operação especulativa.
Sacrifício para quem?
Ora, considerando-se apenas esses valores que a administração pública federal tem repassado a setores bastante privilegiados de nossa sociedade, fica bastante claro quem são os verdadeiros beneficiados pela política econômica e aqueles de quem se exige uma enorme privação na hora de promover o ajuste fiscal. Os recursos destinados ao pagamento de juros da dívida ou ao cumprimento das obrigações dos títulos cambiais evidenciam a prioridade de quem está no comando de execução do austericídio.
O discurso oficial fala em conclamação de todos os setores para que sejam atingidas as metas do ajuste. A narrativa pressupõe que cada qual ofereça a sua parte para que o momento difícil seja superado e o Brasil volte a crescer. No entanto, a realidade concreta nos demonstra que o verdadeiro sacrifício está sendo exigido apenas de uma parte, aliás, da absoluta maioria dos brasileiros. A minoria - os menos de 1% de sempre – está, ao contrário, faturando muito alto com o austericídio. A velha cantilena que se expressa na apropriação privada de recursos públicos: a tragédia social que se repete e nos acompanha há séculos.
* Paulo Kliass é doutor em Economia pela Universidade de Paris 10 e Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental, carreira do governo federal.
Porém, a opção adotada pelo governo de Dilma foi a nossa já conhecida trilha do austericídio. Ao se agarrar de forma inapelável ao cumprimento do dogma do superávit primário, a Presidenta da República se rendeu às exigências do financismo. Além disso - e para que não permanecesse nenhuma dúvida a respeito de suas reais intenções - nomeou um diretor do Bradesco para ocupar o cargo de Ministro da Fazenda. Contando com ampla autonomia política para conduzir o ajuste, Joaquim Levy elaborou um plano orientado essencialmente para o corte de despesas públicas, com o objetivo de reequilibrar as contas da União.
Parece sensato que haja efetivamente um esforço de qualquer governo para tentar recompor sua capacidade orçamentária, sempre que necessário. Desconheço qualquer economista ou profissional que opere com a esfera das finanças públicas que não se renda a essa evidência. A verdadeira polêmica tem início, no entanto, quando se debatem quais são as alternativas que devem ser utilizadas para a busca de tal reequilíbrio.
A malandragem do superávit primário
O péssimo pontapé inicial está localizado justamente na incorporação passiva do traiçoeiro conceito de “superávit primário”. Na verdade, trata-se de uma malandragem urdida nos meandros do sistema financeiro internacional, ainda na década de 1980. Concebido em meio aos chamados “ajustes estruturais” que pululavam por todos os cantos, seu objetivo era assegurar os interesses dos organismos e países credores nas renegociações das dívidas com os governos dos países devedores, em especial as nações do então chamado Terceiro Mundo.
Graças ao acréscimo sútil do adjetivo “primário” à noção mais ampla de “superávit fiscal”, o que se pretendia era assegurar que todo o esforço de natureza econômico-financeira imposto às economias em crise não comprometesse o fluxo de pagamento dos juros e serviços da dívida dos mesmos. Dessa forma, a recomendação emanada de Washington era no sentido de que os governos promovessem cortes e ajustes em sua estrutura de despesas. Porém, - atenção! - que jamais reduzissem as rubricas associadas à esfera financeira. Afinal, todos devem promover sacrifícios e cortar na própria carne. Mas desde que nunca reduzam os valores destinados aos bancos e demais instituições credoras da dívida.
De posse dessa formuleta mágica e com todo o apoio angariado junto aos órgãos de imprensa trabalhando a seu favor, o financismo venceu a batalha ideológica. Com isso, logrou convencer a sociedade a respeito da inevitabilidade de seu projeto. Não se trata mais de discutir a estrutura global de despesas do Estado em sua relação com o conjunto de receitas arrecadadas. Afinal, se o caminho passasse por proceder a uma avaliação detalhada e exaustiva de cada uma das rubricas dos gastos, perceber-se-ia que as contas que mais pesam para comprometer o déficit atual são exatamente aquelas associadas à dimensão financeira. Em síntese, se o caminho a ser adotado é o dos cortes no Orçamento Geral da União (OGU), a primeira e grande “tesourada” deveria ocorrer no imenso volume de juros pagos ao sistema financeiro, por conta dos compromissos com os títulos da dívida pública.
Pagamento de juros: vilão do déficit
Ao invés de se preocupar com os supostos exageros de gastos com saúde, educação, previdência social, direitos trabalhistas, pagamento de pessoal e investimento em infraestrutura, por exemplo, bastaria redirecionar o olhar para uma abordagem integrada do conjunto das despesas do governo federal. Com isso, ficaria claro que o maior item individual de peso na estrutura de dispêndios é a conta de pagamento de juros e serviços relativos ao endividamento. Ou seja, para quem deseja ser “eficiente” no ajuste, esse deveria ser o primeiro foco de atenção quando se discute redução dos gastos.
O Boletim de Política Fiscal do Banco Central (BC) nos oferece um retrato fiel da situação das finanças públicas brasileiras. E ali está registrado, com riqueza de detalhes, a forma como está sendo implementada a estratégia do austericídio. Para o período de 12 meses, que vai de setembro de 2014 a agosto de 2015, as despesas com pagamento de juros atingiram um patamar assustador. Foram registrados R$ 484 bilhões, com tendência de aumento nos meses que faltam para o encerramento do ano oficial em dezembro. Trata-se da maior rubrica individual de despesa e que representa um dos mais ineficientes sistemas de alocação de dinheiro público.
Recursos aplicados na oferta de serviços do Sistema Único de Saúde (SUS) ou no pagamento de benefícios do Regime Geral de Previdência Social (RGPS) oferecem um inequívoco aspecto de justiça social e mesmo de retorno econômico. Investimentos em programas na área da educação ou do tipo “Minha Casa, Minha Vida” contêm uma orientação explícita de atender à maioria dos necessitados de nossa sociedade. Esse tipo de execução orçamentária obedece aos critérios de promover políticas públicas de promoção do desenvolvimento e de redução das desigualdades sociais e econômicas que ainda nos são características. Isso significa reconhecer que não caberia demandar ainda mais sacrifícios dessa parcela da população, que tanto tem sofrido ao longo da História para avançar degraus mínimos em sua condição social e de conquista de cidadania.
Mais de R$ 100 bi para especulação cambial
Mas as informações constantes do próprio BC nos advertem que a linha adotada pelo governo tem sido de orientação diversa. Para além do absurdo do mencionado desperdício de recursos com o pagamento de juros da dívida, ao longo dos últimos 2 anos o BC tem destinado um volume de dinheiro também estupendo para acalmar os humores de uma parcela do sistema financeiro. Trata-se de títulos especiais oferecidos pela autoridade monetária aos que especulam no mercado de moeda estrangeira, os chamados “swaps” cambiais. O intuito é a velha estória de assegurar ganhos ao capital das finanças, oferecendo a eles a generosidade do “capitalismo sem risco”.
Como a política de taxa de câmbio sobrevalorizada artificialmente era considerada insustentável no médio e no longo prazos, o mercado foi contemplado com mais essa benesse, sempre a ser custeada com recursos públicos. A instituição financeira compra um título lastreado em dólar, mas o governo assume a diferença caso ocorra alguma mudança na taxa de câmbio. Ora, com a crescente desvalorização do real verificada ao longo dos últimos tempos, a conta tem ficado cada vez mais pesada para os cofres públicos. Em 2012 e 2013, por exemplo, o custo foi praticamente nulo. Já em 2014, sobe para R$ 17 bilhões. E ao longo dos últimos 12 meses chegou a R$ 111 bilhões o valor repassado aos agentes do mercado financeiro por conta desse tipo de operação especulativa.
Sacrifício para quem?
Ora, considerando-se apenas esses valores que a administração pública federal tem repassado a setores bastante privilegiados de nossa sociedade, fica bastante claro quem são os verdadeiros beneficiados pela política econômica e aqueles de quem se exige uma enorme privação na hora de promover o ajuste fiscal. Os recursos destinados ao pagamento de juros da dívida ou ao cumprimento das obrigações dos títulos cambiais evidenciam a prioridade de quem está no comando de execução do austericídio.
O discurso oficial fala em conclamação de todos os setores para que sejam atingidas as metas do ajuste. A narrativa pressupõe que cada qual ofereça a sua parte para que o momento difícil seja superado e o Brasil volte a crescer. No entanto, a realidade concreta nos demonstra que o verdadeiro sacrifício está sendo exigido apenas de uma parte, aliás, da absoluta maioria dos brasileiros. A minoria - os menos de 1% de sempre – está, ao contrário, faturando muito alto com o austericídio. A velha cantilena que se expressa na apropriação privada de recursos públicos: a tragédia social que se repete e nos acompanha há séculos.
* Paulo Kliass é doutor em Economia pela Universidade de Paris 10 e Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental, carreira do governo federal.
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