Por Lamia Oualalou, de Buenos Aires, no site Opera Mundi:
O prédio barra a vista. Cinza, gigantesco, fantasmagórico. Na década de 1950, o general Juan Domingo Perón queria edificar aí o hospital mais moderno da Argentina. Sua queda, depois de um golpe de Estado, acabou com o projeto. Hoje, as bases do edifício estão podres, não há água ou eletricidade. "Nós fechamos o acesso aos andares. Muitos jovens se encontravam lá para usar drogas e alguns deles, desorientados, caíram, já que as janelas nunca foram instaladas", explica a assistente social Graziana La Madrid. Ela aponta as barracas de madeira construídas ao redor do ex-hospital. Aqui moram as famílias mais pobres de Ciudad Oculta, a "cidade escondida" com mais de 60 mil habitantes, no coração de Buenos Aires.
René Sosa nasceu aqui, 39 anos atrás. Ainda muito jovem, ele se tornou usuário de paco, uma droga semelhante ao crack, muito disseminada na Argentina. "Eu era um pequeno bandido, mas também tive que roubar para trazer comida para casa", conta. A vida continua sendo difícil em Ciudad Oculta, mas René assegura que as crianças que ele acolhe todos os dias na ONG que ele dirige, "Cosechando sueños" ("Colhendo sonhos"), têm muito mais oportunidades que as da geração dele. "Tudo isso graças aos Kirchner", diz o jovem ativista, sem rodeios. René Sosa não se refere somente às caixas de alimentos não perecíveis que o governo manda para a comunidade. "Agora podemos oferecer aulas de alfabetização para adultos, enquanto os jovens têm a possibilidade, por exemplo, de aprender a fotografar, filmar, e editar.Você pode até dar uma olhada no trabalho deles no YouTube", comemora René.
As crianças só vêm encontrá-lo depois da escola. O principal programa de transferência de renda, aqui chamado de "Assignación Universal" porém diretamente inspirado no Bolsa Família brasileiro, exige como contrapartida o acompanhamento do cartão de vacinação assim como a assiduidade escolar das crianças. Como no Brasil, o programa – uma das bandeiras da presidenta Cristina Kirchner, que o criou em 2009 – tirou milhões de argentinos da miséria.
A ONG, instalada perto de um estádio muito bem cuidado, não é a única novidade em Ciudad Oculta. O governo criou um "programa integral" para aproximar o Estado dos bairros mais pobres e excluídos. Um escritório do Ministério da Justiça fornece informações sobre os direitos dos habitantes e aconselha em caso de conflitos. "Desta maneira, eles não precisam ir até o centro para perceber, somente ao chegar lá, que não levaram toda a documentação necessária", diz Graziana La Madrid, que dirige o programa na comunidade. Um pouco mais à frente, uma unidade de saúde se tornou o principal centro de vacinação das crianças. Em outro beco, um centro cultural oferece aulas de música para adolescentes. "Esta política tem como objetivo facilitar o acesso da população aos seus direitos, isso é o que nossa presidenta queria", resume a jovem diretora.
Esta presença social permitiu à polícia, que antes mal podia entrar na favela, montar patrulhas de proximidade, sob o modelo das Unidades de Polícia Pacificadora (UPP) cariocas. "As infrações nas avenidas que circundam a favela caíram 80%, e dentro da comunidade, 50%", afirma o subdelegado Humberto Rivero Cazzata. Ele admite que não foi fácil construir uma relação de confiança. "Dois anos atrás, quando chegamos, apenas um quinto da população tolerava nossa presença. Agora diria que subiu para dois terços", avalia o agente.
Todos os dias, René Sosa conclui as oficinas que organiza lembrando que o governo Kirchner é o responsável por esta política. "Com Néstor e Cristina, pela primeira vez, temos um projeto de inclusão. Faço questão que todos saibam disso antes de votar", explica. O ativista não está nem um pouco incomodado pelo conteúdo dos cartazes que ele acabou de distribuir no bairro. Eles informam os vizinhos da chegada, na semana seguinte, de unidades móveis do Estado para conseguir carteiras de identidade - sem as quais os cidadãos não têm direito aos subsídios. Embaixo deste documento público aparece uma propaganda: "Scioli-Zannini", um chamado a votar na dupla disputando a presidência e vice-presidência com o apoio de Cristina Kirchner.
La Campora, mobilização e discrição
Este tipo de confusão está presente em todas as novas instalações representando o Estado. A sala dedicada às aulas de música, por exemplo, está decorada com grandes bandeiras estampadas com a palavra "La Campora". Criado em 2006 por Maximo Kirchner para mobilizar a juventude na gestão do pai dele, Néstor, o movimento conseguiu rapidamente grande visibilidade na política argentina. Ele respondia à preocupação do casal Kirchner, os K, como são chamados, de conduzir uma mudança de gerações dentro do partido peronista.
A Campora ganhou muito destaque a partir da morte de Néstor Kirchner, em outubro de 2010. Seus membros ganharam posições-chave no governo federal enquanto o número de funcionários federais passava de 267 mil a 377 mil postos entre 2003 e 2014. Hoje, eles podem ser encontrados em cargos sociais, no Ministério de Relações Exteriores, nos serviços de inteligência, tal como na companhia aérea nacional Aerolineas Argentinas.
Demonizada pela grande mídia argentina, que apóia abertamente a oposição, a Campora tem uma cultura de segredo e conspiração que não ajuda a melhorar sua imagem. Até seus oponentes, porém, admiram sua capacidade de mobilização. Em 2013, quando uma inundação espetacular provocou 89 mortes e a destruição de uma parte de La Plata, uma cidade na província de Buenos Aires, milhares de jovens da Campora se ofereceram para ajudar a limpar e reconstruir.
"Nossa função é levar a ação do Estado onde ele não consegue ser eficiente, por conta da burocracia", resume Enrique Aurelli, que dirige a antena da Campora em San Telmo, um bairro boêmio de Buenos Aires, onde mansões convivem com bolsões de pobreza. Dono de uma loja de roupas, ele aproveita os dias de chuva, pouco atrativos para os clientes, para fechar o negócio e vestir o uniforme de ativista. Para os jornalistas recomendados por amigos, ele fala tranquilamente sobre as atividades do grupo, mas não permite que façamos fotos dele e demora horas até autorizar que citemos seu nome. Na Campora, a informação é centralizada.
A sede da organização em San Telmo tem as paredes cobertas com fotos de Cristina e Néstor Kirchner. Aqui, Enrique organiza aulas de formação políticas, de idiomas e palestras sobre feminismo. Ele até promoveu um mercado de verduras vendidas diretamente pelos produtores. "Além disso, a gente visita diariamente a vizinhança para tentar combater a visão caricatural e conservadora veiculada pela grande mídia, especialmente a televisão", continua.
Inclusão para além do campo econômico
Convencer não é tarefa simples. Se por um lado os Kirchner, após doze anos no poder, tornaram-se ídolos de parte da população, eles são odiados por outra grande parte. Para os menos favorecidos, as políticas de transferência de renda e os esforços para incentivar a indústria nacional ajudaram a rebaixar a taxa de pobreza de 57% para 25% em uma década – queda indiscutível, embora as estatísticas não sejam tão confiáveis e o último governo tenha demonstrado certa propensão a manipulá-las.
Depois de anos de neoliberalismo, Néstor e Cristina reafirmaram a importância do papel do Estado. Enquanto os credores da Argentina afirmavam que o país seria banido para sempre da esfera financeira internacional se não reembolsasse a dívida que governos anteriores tinham contraído, Buenos Aires conseguiu impor um acordo viável que permitiu uma rápida recuperação da economia. O governo nacionalizou setores considerados centrais, incluindo o petróleo, com a empresa YPF. Também foram criados pela primeira vez um Ministério da Cultura e um da Ciência para impulsionar a inovação. A educação virou um foco de atenção: todos os alunos, inclusive os mais pobres, receberam um laptop para não ficarem de fora da revolução digital.
Eleitores progressistas foram seduzidos pela adoção de uma legislação ousada que proporcionou, por exemplo, a legalização do casamento gay e a progressão dos direitos das pessoas transgênero. Há que se mencionar também a renovação da Suprema Corte, que tinha caído em decadência na década de 1990, e o confronto com os militares sobre a responsabilidade deles durante os anos de chumbo da ditadura (1975-1983).
"Os Kirchner conseguiram moldar um discurso de inclusão que vai bem além do campo econômico", resume Pablo Stefanoni, editor da revista Nueva Sociedad. "Além dos pobres, o governo deles inclui as pessoas gays e trans, e do ponto de vista internacional, insistiu na forte relação entre a Argentina e os vizinhos latino-americanos”, acrescenta.
O editor lembra que Cristina lançou também uma batalha sem precedentes no país contra os grandes grupos de mídia, denunciando a sua concentração extrema. "Isso resultou em uma atmosfera de confronto desgastante, mas pelo menos agora parte da população entende que as informações na televisão não têm nada de objetivo, e que elas respondem a interesses econômicos e políticos muito claros", precisa Stefanoni.
Ataques da direita
O resultado desta política foi uma reação muito radical da direita, que atacou Cristina Kirchner durante seus dois mandatos de todas as formas possíveis, especialmente na conservadora Buenos Aires. Não é à toa que o candidato que enfrentará o oficialista Daniel Scioli seja o prefeito da capital, o empresário Mauricio Macri. "O sentimento anti-K é muito parecido com o anti-peronismo da década de 1950, com um líder amado pelo povo e odiado pelas classes médias", analisa Horacio Verbitsky, presidente do Centro de Estudos Jurídicos e sociais (CELS).
Esse ódio aumenta à medida que Cristina Kirchner ignora seus detratores. Enquanto milhares de portenhos, como são chamados os habitantes de Buenos Aires, se reuniram a partir de 2008 para panelaços gigantes, todos generosamente retransmitidos pela televisão, a presidente reagiu calmamente, continuando a governar como se eles não existissem. Os manifestantes se cansaram – algo bem diferente do que está acontecendo no vizinho Brasil, onde Dilma Rousseff não para de recuar, dando ainda mais força a seus oponentes. "A diferença é que Cristina pode contar com um verdadeiro apoio popular. Fica mais difícil desestabilizá-la", continua Verbitsky.
A decepção da esquerda
No entanto, também na Argentina, a decepção existe. A esquerda nunca gostou do peronismo e sua capacidade de se transformar dependendo dos equilíbrios de poder. "Os K tentaram sair do quadro do partido peronista, construindo um poder transversal, mas eles tiveram que se render à força dos caciques provinciais", analisa Stefanoni. O que parecia impossível poucos anos atrás aconteceu: o governo se aliou às mineradoras, provocando graves danos ambientais.
Na esfera política, muitos denunciam a pressão exercida pelo governo para esconder os escândalos. Leandro Despouy, presidente da Auditoria Geral da Nação, conta que a única maneira que ele encontrou para divulgar a má gestão de recursos públicos era escrever um livro, "La Argentina Auditada". "O governo paga subsídios para empresas amigas, de maneira inteiramente discricionária e totalmente ineficaz", diz ele.
Despouy toma o exemplo do trem, abandonado na era do neoliberal (porém peronista) Carlos Menem até a chegada dos K ao poder. "O Estado tem gasto mais de 9 bilhões de pesos em uma linha de Buenos Aires, e não houve nenhuma melhoria no serviço; pior, mais de 50 pessoas foram mortas em um acidente grave no centro da cidade" precisa. Para ele, "o governo se apropria dos recursos do Estado, depois distribuídos pelo partido peronista, sem nenhum controle."
O jornalista Hugo Mon Alconada vai mais longe. Especializado na investigação de escândalos de corrupção no diário conservador La Nación, ele garante que os K fizeram o governo que mais mudou positivamente o país, mas também "o mais corrupto da história da democracia”. Para ele, a tentativa esboçada por Kirchner para reconstruir uma verdadeira burguesia industrial nacional contra o poder financeiro acabou. "No fim das contas, o que temos é o capitalismo dos amigos, com um punhado de empresas que captam todos os mercados", diz o repórter. No entanto, Alconada observa que a questão da corrupção pouco interessa os eleitores, uma vez que eles estão convencidos de que é generalizada.
Candidatos das elites
De fato, os protagonistas da próxima eleição são todos ricos. Cristina Kirchner declara um patrimônio de 64 milhões de pesos (cerca de US$ 7 milhões), um pouco menos do que o candidato de direita Mauricio Macri, herdeiro de uma das maiores empreiteiras do país, com, oficialmente, 60 milhões de pesos e dois milhões de dólares (cerca de US$ 8,5 milhões no total). Quanto a Daniel Scioli, apesar da discrição que sempre tentou adotar, ele teve que reconhecer oficialmente ser dono de um capital de 13,6 milhões de pesos (1,5 milhão de dólares).
"A questão da corrupção está começando a pesar especialmente em um contexto de crise econômica", conclui Hugo Alconada Mon. O orçamento apresentado pelo governo prevê um crescimento de 2,3% em 2015 e 3% no próximo ano e uma inflação de respectivamente 15,4% e 14,5%, projeções todas muito otimistas. A crise que afeta também o Brasil e a desaceleração na China complicam a situação, num contexto de agravamento dos déficits públicos. A questão da taxa de câmbio não conversível também virou uma preocupação central. Oficialmente, precisa-se de 9,5 pesos por um dólar. Na verdade, o dólar "azul", aquele que se negocia sob os panos, atingiu 16 pesos. Todos os candidatos concordam sobre a necessidade de desvalorizar a moeda nacional. O jeito de fazer, porém, seria diferente: brutal para Macri, mais moderado para Scioli.
Como no Brasil no fim de 2014, os argentinos anseiam por uma mudança após doze anos de governo K. Mas, tal como no Brasil, a maioria deles parece pronta para voltar atrás, especialmente sobre a questão da inclusão social. Os anos de Mauricio Macri na prefeitura de Buenos Aires mostraram que ele nutria pouco interesse pelas classes mais desfavorecidas. Ainda assim, a campanha reflete pouco entusiasmo, mesmo nas fileiras kirchneristas. Os argentinos têm a sensação de mergulhar no desconhecido. O candidato oficialista, Daniel Scioli, atual governador da Província de Buenos Aires, se aproximou de Cristina Kirchner só na reta final, quando percebeu que não poderia emplacar como candidato sem a bênção dela.
Além disso, é a presidente que tomou todas as decisões em relação às listas de candidatos, tanto para a Assembleia Nacional como para cargos na províncias. Ela, no entanto, decidiu não concorrer a nenhum cargo. Se for eleito, Scioli terá que apagar as dúvidas quanto à sua capacidade de governar sem ela ou a desviar-se dos seus compromissos. As duas personalidades são totalmente antagônicas. Enquanto a presidente cultiva um senso épico pronunciado, a única mística destacada por Scioli é baseada em sua vida pessoal, como numa obra de autoajuda.
Vice-campeão do mundo em corrida de barcos de motor em 1986, ele perdeu o braço direito três anos depois durante uma corrida no rio Paraná. As palavras-chave de seus discursos não são “revolução” ou “batalha”, mas "fé" e "esperança" em uma República sem conflito. Em 2003, Néstor Kirchner chegou à presidência prometendo para seus compatriotas um "país normal". De certa forma, doze anos depois, é o que oferece novamente Daniel Scioli.
René Sosa nasceu aqui, 39 anos atrás. Ainda muito jovem, ele se tornou usuário de paco, uma droga semelhante ao crack, muito disseminada na Argentina. "Eu era um pequeno bandido, mas também tive que roubar para trazer comida para casa", conta. A vida continua sendo difícil em Ciudad Oculta, mas René assegura que as crianças que ele acolhe todos os dias na ONG que ele dirige, "Cosechando sueños" ("Colhendo sonhos"), têm muito mais oportunidades que as da geração dele. "Tudo isso graças aos Kirchner", diz o jovem ativista, sem rodeios. René Sosa não se refere somente às caixas de alimentos não perecíveis que o governo manda para a comunidade. "Agora podemos oferecer aulas de alfabetização para adultos, enquanto os jovens têm a possibilidade, por exemplo, de aprender a fotografar, filmar, e editar.Você pode até dar uma olhada no trabalho deles no YouTube", comemora René.
As crianças só vêm encontrá-lo depois da escola. O principal programa de transferência de renda, aqui chamado de "Assignación Universal" porém diretamente inspirado no Bolsa Família brasileiro, exige como contrapartida o acompanhamento do cartão de vacinação assim como a assiduidade escolar das crianças. Como no Brasil, o programa – uma das bandeiras da presidenta Cristina Kirchner, que o criou em 2009 – tirou milhões de argentinos da miséria.
A ONG, instalada perto de um estádio muito bem cuidado, não é a única novidade em Ciudad Oculta. O governo criou um "programa integral" para aproximar o Estado dos bairros mais pobres e excluídos. Um escritório do Ministério da Justiça fornece informações sobre os direitos dos habitantes e aconselha em caso de conflitos. "Desta maneira, eles não precisam ir até o centro para perceber, somente ao chegar lá, que não levaram toda a documentação necessária", diz Graziana La Madrid, que dirige o programa na comunidade. Um pouco mais à frente, uma unidade de saúde se tornou o principal centro de vacinação das crianças. Em outro beco, um centro cultural oferece aulas de música para adolescentes. "Esta política tem como objetivo facilitar o acesso da população aos seus direitos, isso é o que nossa presidenta queria", resume a jovem diretora.
Esta presença social permitiu à polícia, que antes mal podia entrar na favela, montar patrulhas de proximidade, sob o modelo das Unidades de Polícia Pacificadora (UPP) cariocas. "As infrações nas avenidas que circundam a favela caíram 80%, e dentro da comunidade, 50%", afirma o subdelegado Humberto Rivero Cazzata. Ele admite que não foi fácil construir uma relação de confiança. "Dois anos atrás, quando chegamos, apenas um quinto da população tolerava nossa presença. Agora diria que subiu para dois terços", avalia o agente.
Todos os dias, René Sosa conclui as oficinas que organiza lembrando que o governo Kirchner é o responsável por esta política. "Com Néstor e Cristina, pela primeira vez, temos um projeto de inclusão. Faço questão que todos saibam disso antes de votar", explica. O ativista não está nem um pouco incomodado pelo conteúdo dos cartazes que ele acabou de distribuir no bairro. Eles informam os vizinhos da chegada, na semana seguinte, de unidades móveis do Estado para conseguir carteiras de identidade - sem as quais os cidadãos não têm direito aos subsídios. Embaixo deste documento público aparece uma propaganda: "Scioli-Zannini", um chamado a votar na dupla disputando a presidência e vice-presidência com o apoio de Cristina Kirchner.
La Campora, mobilização e discrição
Este tipo de confusão está presente em todas as novas instalações representando o Estado. A sala dedicada às aulas de música, por exemplo, está decorada com grandes bandeiras estampadas com a palavra "La Campora". Criado em 2006 por Maximo Kirchner para mobilizar a juventude na gestão do pai dele, Néstor, o movimento conseguiu rapidamente grande visibilidade na política argentina. Ele respondia à preocupação do casal Kirchner, os K, como são chamados, de conduzir uma mudança de gerações dentro do partido peronista.
A Campora ganhou muito destaque a partir da morte de Néstor Kirchner, em outubro de 2010. Seus membros ganharam posições-chave no governo federal enquanto o número de funcionários federais passava de 267 mil a 377 mil postos entre 2003 e 2014. Hoje, eles podem ser encontrados em cargos sociais, no Ministério de Relações Exteriores, nos serviços de inteligência, tal como na companhia aérea nacional Aerolineas Argentinas.
Demonizada pela grande mídia argentina, que apóia abertamente a oposição, a Campora tem uma cultura de segredo e conspiração que não ajuda a melhorar sua imagem. Até seus oponentes, porém, admiram sua capacidade de mobilização. Em 2013, quando uma inundação espetacular provocou 89 mortes e a destruição de uma parte de La Plata, uma cidade na província de Buenos Aires, milhares de jovens da Campora se ofereceram para ajudar a limpar e reconstruir.
"Nossa função é levar a ação do Estado onde ele não consegue ser eficiente, por conta da burocracia", resume Enrique Aurelli, que dirige a antena da Campora em San Telmo, um bairro boêmio de Buenos Aires, onde mansões convivem com bolsões de pobreza. Dono de uma loja de roupas, ele aproveita os dias de chuva, pouco atrativos para os clientes, para fechar o negócio e vestir o uniforme de ativista. Para os jornalistas recomendados por amigos, ele fala tranquilamente sobre as atividades do grupo, mas não permite que façamos fotos dele e demora horas até autorizar que citemos seu nome. Na Campora, a informação é centralizada.
A sede da organização em San Telmo tem as paredes cobertas com fotos de Cristina e Néstor Kirchner. Aqui, Enrique organiza aulas de formação políticas, de idiomas e palestras sobre feminismo. Ele até promoveu um mercado de verduras vendidas diretamente pelos produtores. "Além disso, a gente visita diariamente a vizinhança para tentar combater a visão caricatural e conservadora veiculada pela grande mídia, especialmente a televisão", continua.
Inclusão para além do campo econômico
Convencer não é tarefa simples. Se por um lado os Kirchner, após doze anos no poder, tornaram-se ídolos de parte da população, eles são odiados por outra grande parte. Para os menos favorecidos, as políticas de transferência de renda e os esforços para incentivar a indústria nacional ajudaram a rebaixar a taxa de pobreza de 57% para 25% em uma década – queda indiscutível, embora as estatísticas não sejam tão confiáveis e o último governo tenha demonstrado certa propensão a manipulá-las.
Depois de anos de neoliberalismo, Néstor e Cristina reafirmaram a importância do papel do Estado. Enquanto os credores da Argentina afirmavam que o país seria banido para sempre da esfera financeira internacional se não reembolsasse a dívida que governos anteriores tinham contraído, Buenos Aires conseguiu impor um acordo viável que permitiu uma rápida recuperação da economia. O governo nacionalizou setores considerados centrais, incluindo o petróleo, com a empresa YPF. Também foram criados pela primeira vez um Ministério da Cultura e um da Ciência para impulsionar a inovação. A educação virou um foco de atenção: todos os alunos, inclusive os mais pobres, receberam um laptop para não ficarem de fora da revolução digital.
Eleitores progressistas foram seduzidos pela adoção de uma legislação ousada que proporcionou, por exemplo, a legalização do casamento gay e a progressão dos direitos das pessoas transgênero. Há que se mencionar também a renovação da Suprema Corte, que tinha caído em decadência na década de 1990, e o confronto com os militares sobre a responsabilidade deles durante os anos de chumbo da ditadura (1975-1983).
"Os Kirchner conseguiram moldar um discurso de inclusão que vai bem além do campo econômico", resume Pablo Stefanoni, editor da revista Nueva Sociedad. "Além dos pobres, o governo deles inclui as pessoas gays e trans, e do ponto de vista internacional, insistiu na forte relação entre a Argentina e os vizinhos latino-americanos”, acrescenta.
O editor lembra que Cristina lançou também uma batalha sem precedentes no país contra os grandes grupos de mídia, denunciando a sua concentração extrema. "Isso resultou em uma atmosfera de confronto desgastante, mas pelo menos agora parte da população entende que as informações na televisão não têm nada de objetivo, e que elas respondem a interesses econômicos e políticos muito claros", precisa Stefanoni.
Ataques da direita
O resultado desta política foi uma reação muito radical da direita, que atacou Cristina Kirchner durante seus dois mandatos de todas as formas possíveis, especialmente na conservadora Buenos Aires. Não é à toa que o candidato que enfrentará o oficialista Daniel Scioli seja o prefeito da capital, o empresário Mauricio Macri. "O sentimento anti-K é muito parecido com o anti-peronismo da década de 1950, com um líder amado pelo povo e odiado pelas classes médias", analisa Horacio Verbitsky, presidente do Centro de Estudos Jurídicos e sociais (CELS).
Esse ódio aumenta à medida que Cristina Kirchner ignora seus detratores. Enquanto milhares de portenhos, como são chamados os habitantes de Buenos Aires, se reuniram a partir de 2008 para panelaços gigantes, todos generosamente retransmitidos pela televisão, a presidente reagiu calmamente, continuando a governar como se eles não existissem. Os manifestantes se cansaram – algo bem diferente do que está acontecendo no vizinho Brasil, onde Dilma Rousseff não para de recuar, dando ainda mais força a seus oponentes. "A diferença é que Cristina pode contar com um verdadeiro apoio popular. Fica mais difícil desestabilizá-la", continua Verbitsky.
A decepção da esquerda
No entanto, também na Argentina, a decepção existe. A esquerda nunca gostou do peronismo e sua capacidade de se transformar dependendo dos equilíbrios de poder. "Os K tentaram sair do quadro do partido peronista, construindo um poder transversal, mas eles tiveram que se render à força dos caciques provinciais", analisa Stefanoni. O que parecia impossível poucos anos atrás aconteceu: o governo se aliou às mineradoras, provocando graves danos ambientais.
Na esfera política, muitos denunciam a pressão exercida pelo governo para esconder os escândalos. Leandro Despouy, presidente da Auditoria Geral da Nação, conta que a única maneira que ele encontrou para divulgar a má gestão de recursos públicos era escrever um livro, "La Argentina Auditada". "O governo paga subsídios para empresas amigas, de maneira inteiramente discricionária e totalmente ineficaz", diz ele.
Despouy toma o exemplo do trem, abandonado na era do neoliberal (porém peronista) Carlos Menem até a chegada dos K ao poder. "O Estado tem gasto mais de 9 bilhões de pesos em uma linha de Buenos Aires, e não houve nenhuma melhoria no serviço; pior, mais de 50 pessoas foram mortas em um acidente grave no centro da cidade" precisa. Para ele, "o governo se apropria dos recursos do Estado, depois distribuídos pelo partido peronista, sem nenhum controle."
O jornalista Hugo Mon Alconada vai mais longe. Especializado na investigação de escândalos de corrupção no diário conservador La Nación, ele garante que os K fizeram o governo que mais mudou positivamente o país, mas também "o mais corrupto da história da democracia”. Para ele, a tentativa esboçada por Kirchner para reconstruir uma verdadeira burguesia industrial nacional contra o poder financeiro acabou. "No fim das contas, o que temos é o capitalismo dos amigos, com um punhado de empresas que captam todos os mercados", diz o repórter. No entanto, Alconada observa que a questão da corrupção pouco interessa os eleitores, uma vez que eles estão convencidos de que é generalizada.
Candidatos das elites
De fato, os protagonistas da próxima eleição são todos ricos. Cristina Kirchner declara um patrimônio de 64 milhões de pesos (cerca de US$ 7 milhões), um pouco menos do que o candidato de direita Mauricio Macri, herdeiro de uma das maiores empreiteiras do país, com, oficialmente, 60 milhões de pesos e dois milhões de dólares (cerca de US$ 8,5 milhões no total). Quanto a Daniel Scioli, apesar da discrição que sempre tentou adotar, ele teve que reconhecer oficialmente ser dono de um capital de 13,6 milhões de pesos (1,5 milhão de dólares).
"A questão da corrupção está começando a pesar especialmente em um contexto de crise econômica", conclui Hugo Alconada Mon. O orçamento apresentado pelo governo prevê um crescimento de 2,3% em 2015 e 3% no próximo ano e uma inflação de respectivamente 15,4% e 14,5%, projeções todas muito otimistas. A crise que afeta também o Brasil e a desaceleração na China complicam a situação, num contexto de agravamento dos déficits públicos. A questão da taxa de câmbio não conversível também virou uma preocupação central. Oficialmente, precisa-se de 9,5 pesos por um dólar. Na verdade, o dólar "azul", aquele que se negocia sob os panos, atingiu 16 pesos. Todos os candidatos concordam sobre a necessidade de desvalorizar a moeda nacional. O jeito de fazer, porém, seria diferente: brutal para Macri, mais moderado para Scioli.
Como no Brasil no fim de 2014, os argentinos anseiam por uma mudança após doze anos de governo K. Mas, tal como no Brasil, a maioria deles parece pronta para voltar atrás, especialmente sobre a questão da inclusão social. Os anos de Mauricio Macri na prefeitura de Buenos Aires mostraram que ele nutria pouco interesse pelas classes mais desfavorecidas. Ainda assim, a campanha reflete pouco entusiasmo, mesmo nas fileiras kirchneristas. Os argentinos têm a sensação de mergulhar no desconhecido. O candidato oficialista, Daniel Scioli, atual governador da Província de Buenos Aires, se aproximou de Cristina Kirchner só na reta final, quando percebeu que não poderia emplacar como candidato sem a bênção dela.
Além disso, é a presidente que tomou todas as decisões em relação às listas de candidatos, tanto para a Assembleia Nacional como para cargos na províncias. Ela, no entanto, decidiu não concorrer a nenhum cargo. Se for eleito, Scioli terá que apagar as dúvidas quanto à sua capacidade de governar sem ela ou a desviar-se dos seus compromissos. As duas personalidades são totalmente antagônicas. Enquanto a presidente cultiva um senso épico pronunciado, a única mística destacada por Scioli é baseada em sua vida pessoal, como numa obra de autoajuda.
Vice-campeão do mundo em corrida de barcos de motor em 1986, ele perdeu o braço direito três anos depois durante uma corrida no rio Paraná. As palavras-chave de seus discursos não são “revolução” ou “batalha”, mas "fé" e "esperança" em uma República sem conflito. Em 2003, Néstor Kirchner chegou à presidência prometendo para seus compatriotas um "país normal". De certa forma, doze anos depois, é o que oferece novamente Daniel Scioli.
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