Por Breno Altman, em seu blog:
As urnas foram implacáveis com o Grande Polo Patriótico, frente eleitoral comandada pelo Partido Socialista Unificado da Venezuela.
A oposição conservadora, organizada ao redor da Mesa de Unidade Democrática, segundo estimativas parciais, alcançou 99 entre 167 cadeiras da Assembleia Nacional, enquanto o governismo ficou reduzido a 46. Ainda restam para escrutinar 22 vagas.
O resultado é incontestável, com a participação eleitoral batendo nos 75%.
A revolução bolivariana, pela primeira vez em 17 anos, perdeu maioria. Ainda que já tivesse sido derrotada no referendo de 2007 e no número de votos totais das eleições parlamentares de 2010, o inédito é a conformação de uma onda eleitoral negativa que altera estruturalmente um dos poderes da república.
Ao contrário do que propalavam aos quatros ventos os inimigos do chavismo, dentro e fora do país, as eleições ocorreram dentro da normalidade e o presidente Nicolás Maduro reconheceu prontamente a voz das urnas, sem qualquer esboço de desrespeito à Constituição ou virada de mesa.
As forças de esquerda, no entanto, estão obrigadas a compreender, dentro e fora da Venezuela, o que se passou. Os chavistas terão igualmente que decidir o rumo a tomar.
Talvez o principal erro tenha sido o esquecimento de uma velha lição sobre o colapso do socialismo na União Soviética: nenhum processo revolucionário sobrevive, a longo prazo, com esgotamento do sistema produtivo.
A China extraiu todas as conclusões do aprendizado. A esquerda latino-americana ainda patina neste capítulo do manual.
O problema não é somente venezuelano, tem dimensões mais universais.
Governos progressistas, em regimes capitalistas, podem impulsionar fortemente a geração de emprego e renda, reduzir a desigualdade social, universalizar direitos, ampliar serviços públicos e aumentar a participação dos trabalhadores na renda nacional.
O fortalecimento da demanda, em um primeiro momento, se transforma em contagiante força propulsora da economia, pois a ampliação do mercado interno estimula a produção e atrai novos investimentos.
Mas se reformas estruturais não são feitas a tempo, expandindo a oferta de bens e serviços em ritmo sincrônico ao aumento da renda, abre-se uma contradição de fundo que potencialmente conduz à crise inflacionária, ao desajuste cambial e ao esgotamento fiscal.
As alavancas de estimulo ao consumo são predominantemente públicas, vale lembrar, mas o capital de investimento continua concentrado nas corporações privadas, nacionais e estrangeiras. Esses setores tomam decisões a partir da taxa de lucro, da segurança jurídica e de interesses político-ideológicos claramente definidos.
Pouco alvissareiro é o cenário se o Estado mostra-se incapaz de reordenar a economia, colocando sobre seu controle ou regulação ferramentas fundamentais para o desenvolvimento, particularmente as riquezas naturais e o sistema de crédito, ao mesmo tempo que estimula pacto produtivo com o empreendedorismo, os setores não monopolistas do capital e até mesmo grupos empresariais de grande porte.
A Venezuela é o maior exemplo continental de sucesso em distribuição de renda, avanço dos direitos populares, melhoria do padrão de vida e turbinagem dos principais indicadores de bem-estar.
Isso somente foi possível porque o governo passou a dirigir efetivamente a PDVSA e reorientou a renda petroleira, em período altista nos preços do ouro negro, para custear amplos programas sociais.
A estrutura econômica, porém, manteve-se praticamente intacta, com altíssimo grau de dependência do petróleo e baixo grau de diversificação. Era esse o atalho mais rápido, ironicamente, para oferecer prosperidade imediata à maioria dos venezuelanos, antes estrangulada pela apropriação da principal riqueza do país pelas famílias oligárquicas.
A revolução produtiva, conceito do próprio chavismo, significava caminho mais lento e difícil, além de pressionar por boa fatia dos recursos aplicados na construção acelerada de sistema de bem-estar.
O símbolo maior desta política provavelmente seja o preço da gasolina: mantido inalterado há muitos anos, equivale a 2% da média mundial, gerando um prejuízo anual de 8 a 12 bilhões de dólares, ao redor de 2,5% do PIB nacional.
Sem mudanças de largo alcance, o país continuou importando grande parte do que consome, mas em escala várias vezes superior que no passado, por conta da expansão de demanda.
Enquanto o movimento ascensional do petróleo custeou esse modelo, o voo era de cruzeiro. A terrível baixa dos últimos anos, no entanto, levou à uma situação de bancarrota, expondo fragilidades que acabaram aproveitadas pelo terrorismo econômico, instrumento oposicionista para sabotar o governo e leva-lo às cordas.
O governo nacionalizou empresas, criou redes de distribuição, buscou incentivar a agricultura e tentou enfrentar a chantagem burguesa com medidas administrativas. Quando o preço dos barris despencou, nada disso se mostrou suficiente ou eficaz.
O resultado, na soma entre esgotamento e sabotagem, foi uma gravíssima crise inflacionária e de escassez mercantil, além de cambial, duradoura a ponto de minar até as bases históricas do eleitorado chavista.
O problema não é novo. Durante vários anos, as formidáveis conquistas sociais, a disposição do chavismo para a disputa político-ideológica e a construção de forte identidade popular com o projeto permitiram substituir a economia pela política.
Ontem esta estratégia se revelou terminal.
O presidente Nicolás Maduro, em mensagem de reconhecimento democrático das urnas, claramente identificou o cenário e assumiu compromisso de enfrentá-lo.
Mas terá que fazê-lo em uma correlação de forças bastante diferente.
As eleições empurram o chavismo, se quiser ter alguma chance de sobrevivência, para a necessidade de estabelecer novas alianças e tentar dividir a oposição, agora majoritária no parlamento.
Não apenas por razões produtivas, mas também políticas, terá de reconstruir canais de diálogo e concessão com frações do empresariado.
A empreitada será dificílima: enfrentará uma direita que se sente muito perto de recuperar o poder e a galope de uma ofensiva aparentemente imparável.
O fato, porém, é que inexiste espaço real, interno ou internacional, para qualquer outra alternativa. As circunstâncias são parecidas com a derrota sandinista na Nicarágua, em 1990.
A revolução, para continuar respirando, mesmo por aparelhos, está diante da obrigação de dar vários passos atrás.
Daqui a alguns meses, haverá a batalha final, com convocação de referendo revogatório do mandato presidencial, previsto na Constituição.
A areia na ampulheta é rala, mas o chavismo sempre se destacou pelo fôlego de gato, como se sete vidas tivesse.
A saber se ontem perdeu a sexta ou a sétima de suas existências.
As urnas foram implacáveis com o Grande Polo Patriótico, frente eleitoral comandada pelo Partido Socialista Unificado da Venezuela.
A oposição conservadora, organizada ao redor da Mesa de Unidade Democrática, segundo estimativas parciais, alcançou 99 entre 167 cadeiras da Assembleia Nacional, enquanto o governismo ficou reduzido a 46. Ainda restam para escrutinar 22 vagas.
O resultado é incontestável, com a participação eleitoral batendo nos 75%.
A revolução bolivariana, pela primeira vez em 17 anos, perdeu maioria. Ainda que já tivesse sido derrotada no referendo de 2007 e no número de votos totais das eleições parlamentares de 2010, o inédito é a conformação de uma onda eleitoral negativa que altera estruturalmente um dos poderes da república.
Ao contrário do que propalavam aos quatros ventos os inimigos do chavismo, dentro e fora do país, as eleições ocorreram dentro da normalidade e o presidente Nicolás Maduro reconheceu prontamente a voz das urnas, sem qualquer esboço de desrespeito à Constituição ou virada de mesa.
As forças de esquerda, no entanto, estão obrigadas a compreender, dentro e fora da Venezuela, o que se passou. Os chavistas terão igualmente que decidir o rumo a tomar.
Talvez o principal erro tenha sido o esquecimento de uma velha lição sobre o colapso do socialismo na União Soviética: nenhum processo revolucionário sobrevive, a longo prazo, com esgotamento do sistema produtivo.
A China extraiu todas as conclusões do aprendizado. A esquerda latino-americana ainda patina neste capítulo do manual.
O problema não é somente venezuelano, tem dimensões mais universais.
Governos progressistas, em regimes capitalistas, podem impulsionar fortemente a geração de emprego e renda, reduzir a desigualdade social, universalizar direitos, ampliar serviços públicos e aumentar a participação dos trabalhadores na renda nacional.
O fortalecimento da demanda, em um primeiro momento, se transforma em contagiante força propulsora da economia, pois a ampliação do mercado interno estimula a produção e atrai novos investimentos.
Mas se reformas estruturais não são feitas a tempo, expandindo a oferta de bens e serviços em ritmo sincrônico ao aumento da renda, abre-se uma contradição de fundo que potencialmente conduz à crise inflacionária, ao desajuste cambial e ao esgotamento fiscal.
As alavancas de estimulo ao consumo são predominantemente públicas, vale lembrar, mas o capital de investimento continua concentrado nas corporações privadas, nacionais e estrangeiras. Esses setores tomam decisões a partir da taxa de lucro, da segurança jurídica e de interesses político-ideológicos claramente definidos.
Pouco alvissareiro é o cenário se o Estado mostra-se incapaz de reordenar a economia, colocando sobre seu controle ou regulação ferramentas fundamentais para o desenvolvimento, particularmente as riquezas naturais e o sistema de crédito, ao mesmo tempo que estimula pacto produtivo com o empreendedorismo, os setores não monopolistas do capital e até mesmo grupos empresariais de grande porte.
A Venezuela é o maior exemplo continental de sucesso em distribuição de renda, avanço dos direitos populares, melhoria do padrão de vida e turbinagem dos principais indicadores de bem-estar.
Isso somente foi possível porque o governo passou a dirigir efetivamente a PDVSA e reorientou a renda petroleira, em período altista nos preços do ouro negro, para custear amplos programas sociais.
A estrutura econômica, porém, manteve-se praticamente intacta, com altíssimo grau de dependência do petróleo e baixo grau de diversificação. Era esse o atalho mais rápido, ironicamente, para oferecer prosperidade imediata à maioria dos venezuelanos, antes estrangulada pela apropriação da principal riqueza do país pelas famílias oligárquicas.
A revolução produtiva, conceito do próprio chavismo, significava caminho mais lento e difícil, além de pressionar por boa fatia dos recursos aplicados na construção acelerada de sistema de bem-estar.
O símbolo maior desta política provavelmente seja o preço da gasolina: mantido inalterado há muitos anos, equivale a 2% da média mundial, gerando um prejuízo anual de 8 a 12 bilhões de dólares, ao redor de 2,5% do PIB nacional.
Sem mudanças de largo alcance, o país continuou importando grande parte do que consome, mas em escala várias vezes superior que no passado, por conta da expansão de demanda.
Enquanto o movimento ascensional do petróleo custeou esse modelo, o voo era de cruzeiro. A terrível baixa dos últimos anos, no entanto, levou à uma situação de bancarrota, expondo fragilidades que acabaram aproveitadas pelo terrorismo econômico, instrumento oposicionista para sabotar o governo e leva-lo às cordas.
O governo nacionalizou empresas, criou redes de distribuição, buscou incentivar a agricultura e tentou enfrentar a chantagem burguesa com medidas administrativas. Quando o preço dos barris despencou, nada disso se mostrou suficiente ou eficaz.
O resultado, na soma entre esgotamento e sabotagem, foi uma gravíssima crise inflacionária e de escassez mercantil, além de cambial, duradoura a ponto de minar até as bases históricas do eleitorado chavista.
O problema não é novo. Durante vários anos, as formidáveis conquistas sociais, a disposição do chavismo para a disputa político-ideológica e a construção de forte identidade popular com o projeto permitiram substituir a economia pela política.
Ontem esta estratégia se revelou terminal.
O presidente Nicolás Maduro, em mensagem de reconhecimento democrático das urnas, claramente identificou o cenário e assumiu compromisso de enfrentá-lo.
Mas terá que fazê-lo em uma correlação de forças bastante diferente.
As eleições empurram o chavismo, se quiser ter alguma chance de sobrevivência, para a necessidade de estabelecer novas alianças e tentar dividir a oposição, agora majoritária no parlamento.
Não apenas por razões produtivas, mas também políticas, terá de reconstruir canais de diálogo e concessão com frações do empresariado.
A empreitada será dificílima: enfrentará uma direita que se sente muito perto de recuperar o poder e a galope de uma ofensiva aparentemente imparável.
O fato, porém, é que inexiste espaço real, interno ou internacional, para qualquer outra alternativa. As circunstâncias são parecidas com a derrota sandinista na Nicarágua, em 1990.
A revolução, para continuar respirando, mesmo por aparelhos, está diante da obrigação de dar vários passos atrás.
Daqui a alguns meses, haverá a batalha final, com convocação de referendo revogatório do mandato presidencial, previsto na Constituição.
A areia na ampulheta é rala, mas o chavismo sempre se destacou pelo fôlego de gato, como se sete vidas tivesse.
A saber se ontem perdeu a sexta ou a sétima de suas existências.
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