Por Paulo Moreira Leite, em seu blog:
Liderada pelo senador José Serra, nenhuma das propostas colocadas à mesa pelo grupo político que pretende assumir Presidência sem um voto sequer é tão reveladora de seus objetivos como a ressurreição parlamentarista. Trata-se de uma ofensa obvia a maioria de brasileiros que, nos últimos 50 anos, foi duas vezes às urnas para se manifestar em defesa do presidencialismo.
Em 2016, com um descaramento que só a arrogância de quem executa uma tentativa de golpe de Estado imaginando que os brasileiros não serão capazes de entender a natureza nefasta da mudança em curso, pretende-se um segundo absurdo, que é aprovar a mudança sem passar pelo plebiscito – até porque não é difícil imaginar o resultado, caso a população seja chamada a decidir.
Você pode ser favorável – em tese – ao regime parlamentarista. Ou pode ser presidencialista. Não é uma posição pura de princípio, sem levar em conta as condições de tempo e lugar.
Minha opinião é que, nas condições concretas da política brasileira, o parlamentarismo é a forma segura para um confisco permanente da soberania popular. Isso que explica o particular apreço que lhe devotam os eternos derrotados em campanhas presidenciais, assumindo que são realmente incapazes de convencer a maioria dos brasileiros do acerto de suas ideias e propostas para o país. Os dois plebiscitos realizados no país revelavam um casuísmo vergonhoso.
Em 1961, pretendia-se impedir, após a renúncia de Jânio Quadros, que o vice João Goulart assumisse o governo com direito a fazer o que julgasse melhor para o país. O problema é que Jango tinha a legitimidade de um suplente que, conforme as leis da época, recebera o voto nominal em urna, no mesmo dia e hora em que se escolhia o titular do cargo.
Em 1997, o plebiscito se realizou num período em que a ascensão política de um certo Luiz Inácio Lula da Silva indicava que, certo ou tarde, ele acabaria derrotando o amplo acordo da elite dominante que fez a Nova República e assim, com base na escolha do povo, poderia chegar ao Planalto.
Dezenove anos mais tarde, Lula continua o favorito para a proxima eleição presidencial, apesar do massacre brutal e covarde que enfrenta. Será simples coincidência?
Claro que não. Em 2016, a formula parlamentarista tenta impedir a recuperação, nas urnas da próxima eleição presidencial, das conquistas que podem vir a derrotadas pelo golpe parlamentar iniciado em 17 de abril. Trocando em miúdos, o que se planeja é uma presidencia de fachada, que permita eternizar impeachment, agora de forma preventiva, pelo congelamento de uma relação de forças política que, no Congresso, sempre foi desfavorável aos mais pobres e menos protegidos, por uma série de razões conhecidas por todos. Mesmo num ambiente relativamente progressista, como Assembleia Constituinte de 1987-1988, avanços promissores na área social, economica e política acabaram esterelizados por um Centrão conservador.
Na prática, o parlamentarismo é o fim de qualquer chance real de alternância de poder, típica dos regimes democráticos. Teremos uma grande geléia, um empate que na melhor das hipóteses permite negociar migalhas, com alterações pouco significativas à direita ou à esquerda, sem qualquer possibilidade das mudanças profundas e amplas que uma sociedade como a brasileira necessita.
A mensagem é: Cunhas, Bolsonaros, Felicianos, Skafs, Temers, Serras, Jucás e etc, o poder agora é para sempre e inclui as delícias do Executivo num só pacote!
Se a emenda for aprovada, o povo nem terá direito a escolher o verdadeiro chefe de governo. Este será definido indiretamente pelas mesmas forças que controlam o Congresso, planejaram a derrubada de Dilma sem crime de responsabilidade – e poderá ser trocado sempre que a maioria de deputados e senadores e julgar conveniente a seus interesses e acordos, cuja natureza dispensa comentários, não é mesmo?
As situações de crise política costumam ser o momento preferido para a reaparição de emendas parlamentaristas. O argumento é mecânico. Alega-se que o sistema presidencialista dificulta as saídas para uma crise, pois apresenta inúmeras exigências, nem sempre fáceis de atender – como a prova de crime de responsabilidade, o apoio de dois terços – para uma mudança de governo. É uma questão de ponto de vista, vamos combinar.
As crises não nascem de obra divina, mas expressam choques de interesse que expressam vontades profundas de uma sociedade. A questão é política portanto.
Em 1961, o parlamentarismo tentava impedir que um presidente de ideias progressistas pudesse levar seu projeto de governo adiante. Só para lembrar. Não foi Jango quem criou a crise, mas os chefes militares que queriam impedir que tomasse posse.
Em 2016, a crise tem outra fisionomia e outra cronologia mas guarda semelhanças essenciais. Sua origem está no inconformismo da elite dirigente diante da quarta vitória eleitoral consecutiva do governo Lula-Dilma, que abriu a possibilidade de dar nova sequência no processo de mudanças sociais e econômicas de interesse da maioria da população iniciado a partir de 2003.
Por maiores que tenham sido os erros cometidos pelo segundo governo Dilma, e eles foram imensos, cabe reconhecer que os movimentos que produziram o atual pedido de impeachment tem uma origem mais do que reveladora. Tiveram início antes que o novo governo tivesse sido empossado. Ou seja: do ponto de vista dos adversários, haveria "crise" mesmo que o governo fosse nota 10. E é óbvio que, agindo pela crise, essa camada superior do Estado e da sociedade ajudou -- e muito -- para que ela se tornasse realidade, naquele classico processo da profecia que se autorealiza.
Os primeiros traços de uma medonha face golpista foram exibidos quando o resultado final sequer fora reconhecido oficialmente pelo TSE. A crise é produto da falta de compromisso dos vencidos com a democracia. Ele chamavam os aliados para a rua e fechavam os olhos e ouvidos para quem pedia golpe militar. Corriam para os tribunais. Bajulavam Sergio Moro e o Ministério Público. Esta é a “crise.”
Não é Petrobras, não são pedaladas fiscais. É uma profunda, histórica, incurável dificuldade dessa camada social minoritária para derrotar um governo que, eleito democraticamente, promoveu melhorias reais, ainda que limitadas, na condição de vida da maioria.
Filho do golpe de 17 de abril, o parlamentarismo vem daí
Nesse contexto, as mudanças exigidas para troca de governo podem ser chamadas de “difíceis,” “traumáticas”, como você quiser. Essa classificação depende do ponto de vista de quem tem interesse para substituir o governo fora do prazo regulamentar.
Do ponto de vista de quem reconhece a necessidade de apoiar um governo que no tempo adequado conseguiu a vitória nas urnas e nada cometeu que justifique seu afastamento, trata-se de uma garantia de respeito a vontade da maioria. Do ponto de vista de uma elite dirigente, desligada da maioria dos brasileiros, que enfrenta dificuldades crescentes para garantir sua vitória em eleições limpas e democráticas – realidade que está na origem de uma quase permanente instabilidade política, que hipocritamente lamentam entre um golpe e outro-- trata-se de um entrave.
A questão real é outra, na verdade. Num sistema de divisão de poderes, a Presidência da República é o único poder que é controlado diretamente pela vontade popular. Aquele candidato que conseguiu a maioria dos votos diretos, em urna, assume o governo – e não há o que discutir. O Judiciário é um poder nomeado e o Legislativo, um poder indireto.
Você vota no parlamentar de sua preferência mas a orientação do Congresso irá depender de uma negociação entre os próprios deputados e senadores eleitos, num universo de movimentos indiretos, por trás das cortinas, sem controle do eleitor, que distorce, modifica e até inverte a vontade das urnas.
Berço do regime parlamentar, a Europa criou este sistema como uma forma de acomodar as forças sociais sem voto – a começar pela aristocracia, mais do que nunca interessada em preservar seus privilégios depois de 1789 num acordo com a burguesia, como demonstra Arno Meyer num livro inesquecível, a Força da Tradição.
Essa é a questão. Com o golpe iniciado em 17 de abril, um retrocesso teve início. Com o parlamentarismo, ocorrerá sua consolidação.
Liderada pelo senador José Serra, nenhuma das propostas colocadas à mesa pelo grupo político que pretende assumir Presidência sem um voto sequer é tão reveladora de seus objetivos como a ressurreição parlamentarista. Trata-se de uma ofensa obvia a maioria de brasileiros que, nos últimos 50 anos, foi duas vezes às urnas para se manifestar em defesa do presidencialismo.
Em 2016, com um descaramento que só a arrogância de quem executa uma tentativa de golpe de Estado imaginando que os brasileiros não serão capazes de entender a natureza nefasta da mudança em curso, pretende-se um segundo absurdo, que é aprovar a mudança sem passar pelo plebiscito – até porque não é difícil imaginar o resultado, caso a população seja chamada a decidir.
Você pode ser favorável – em tese – ao regime parlamentarista. Ou pode ser presidencialista. Não é uma posição pura de princípio, sem levar em conta as condições de tempo e lugar.
Minha opinião é que, nas condições concretas da política brasileira, o parlamentarismo é a forma segura para um confisco permanente da soberania popular. Isso que explica o particular apreço que lhe devotam os eternos derrotados em campanhas presidenciais, assumindo que são realmente incapazes de convencer a maioria dos brasileiros do acerto de suas ideias e propostas para o país. Os dois plebiscitos realizados no país revelavam um casuísmo vergonhoso.
Em 1961, pretendia-se impedir, após a renúncia de Jânio Quadros, que o vice João Goulart assumisse o governo com direito a fazer o que julgasse melhor para o país. O problema é que Jango tinha a legitimidade de um suplente que, conforme as leis da época, recebera o voto nominal em urna, no mesmo dia e hora em que se escolhia o titular do cargo.
Em 1997, o plebiscito se realizou num período em que a ascensão política de um certo Luiz Inácio Lula da Silva indicava que, certo ou tarde, ele acabaria derrotando o amplo acordo da elite dominante que fez a Nova República e assim, com base na escolha do povo, poderia chegar ao Planalto.
Dezenove anos mais tarde, Lula continua o favorito para a proxima eleição presidencial, apesar do massacre brutal e covarde que enfrenta. Será simples coincidência?
Claro que não. Em 2016, a formula parlamentarista tenta impedir a recuperação, nas urnas da próxima eleição presidencial, das conquistas que podem vir a derrotadas pelo golpe parlamentar iniciado em 17 de abril. Trocando em miúdos, o que se planeja é uma presidencia de fachada, que permita eternizar impeachment, agora de forma preventiva, pelo congelamento de uma relação de forças política que, no Congresso, sempre foi desfavorável aos mais pobres e menos protegidos, por uma série de razões conhecidas por todos. Mesmo num ambiente relativamente progressista, como Assembleia Constituinte de 1987-1988, avanços promissores na área social, economica e política acabaram esterelizados por um Centrão conservador.
Na prática, o parlamentarismo é o fim de qualquer chance real de alternância de poder, típica dos regimes democráticos. Teremos uma grande geléia, um empate que na melhor das hipóteses permite negociar migalhas, com alterações pouco significativas à direita ou à esquerda, sem qualquer possibilidade das mudanças profundas e amplas que uma sociedade como a brasileira necessita.
A mensagem é: Cunhas, Bolsonaros, Felicianos, Skafs, Temers, Serras, Jucás e etc, o poder agora é para sempre e inclui as delícias do Executivo num só pacote!
Se a emenda for aprovada, o povo nem terá direito a escolher o verdadeiro chefe de governo. Este será definido indiretamente pelas mesmas forças que controlam o Congresso, planejaram a derrubada de Dilma sem crime de responsabilidade – e poderá ser trocado sempre que a maioria de deputados e senadores e julgar conveniente a seus interesses e acordos, cuja natureza dispensa comentários, não é mesmo?
As situações de crise política costumam ser o momento preferido para a reaparição de emendas parlamentaristas. O argumento é mecânico. Alega-se que o sistema presidencialista dificulta as saídas para uma crise, pois apresenta inúmeras exigências, nem sempre fáceis de atender – como a prova de crime de responsabilidade, o apoio de dois terços – para uma mudança de governo. É uma questão de ponto de vista, vamos combinar.
As crises não nascem de obra divina, mas expressam choques de interesse que expressam vontades profundas de uma sociedade. A questão é política portanto.
Em 1961, o parlamentarismo tentava impedir que um presidente de ideias progressistas pudesse levar seu projeto de governo adiante. Só para lembrar. Não foi Jango quem criou a crise, mas os chefes militares que queriam impedir que tomasse posse.
Em 2016, a crise tem outra fisionomia e outra cronologia mas guarda semelhanças essenciais. Sua origem está no inconformismo da elite dirigente diante da quarta vitória eleitoral consecutiva do governo Lula-Dilma, que abriu a possibilidade de dar nova sequência no processo de mudanças sociais e econômicas de interesse da maioria da população iniciado a partir de 2003.
Por maiores que tenham sido os erros cometidos pelo segundo governo Dilma, e eles foram imensos, cabe reconhecer que os movimentos que produziram o atual pedido de impeachment tem uma origem mais do que reveladora. Tiveram início antes que o novo governo tivesse sido empossado. Ou seja: do ponto de vista dos adversários, haveria "crise" mesmo que o governo fosse nota 10. E é óbvio que, agindo pela crise, essa camada superior do Estado e da sociedade ajudou -- e muito -- para que ela se tornasse realidade, naquele classico processo da profecia que se autorealiza.
Os primeiros traços de uma medonha face golpista foram exibidos quando o resultado final sequer fora reconhecido oficialmente pelo TSE. A crise é produto da falta de compromisso dos vencidos com a democracia. Ele chamavam os aliados para a rua e fechavam os olhos e ouvidos para quem pedia golpe militar. Corriam para os tribunais. Bajulavam Sergio Moro e o Ministério Público. Esta é a “crise.”
Não é Petrobras, não são pedaladas fiscais. É uma profunda, histórica, incurável dificuldade dessa camada social minoritária para derrotar um governo que, eleito democraticamente, promoveu melhorias reais, ainda que limitadas, na condição de vida da maioria.
Filho do golpe de 17 de abril, o parlamentarismo vem daí
Nesse contexto, as mudanças exigidas para troca de governo podem ser chamadas de “difíceis,” “traumáticas”, como você quiser. Essa classificação depende do ponto de vista de quem tem interesse para substituir o governo fora do prazo regulamentar.
Do ponto de vista de quem reconhece a necessidade de apoiar um governo que no tempo adequado conseguiu a vitória nas urnas e nada cometeu que justifique seu afastamento, trata-se de uma garantia de respeito a vontade da maioria. Do ponto de vista de uma elite dirigente, desligada da maioria dos brasileiros, que enfrenta dificuldades crescentes para garantir sua vitória em eleições limpas e democráticas – realidade que está na origem de uma quase permanente instabilidade política, que hipocritamente lamentam entre um golpe e outro-- trata-se de um entrave.
A questão real é outra, na verdade. Num sistema de divisão de poderes, a Presidência da República é o único poder que é controlado diretamente pela vontade popular. Aquele candidato que conseguiu a maioria dos votos diretos, em urna, assume o governo – e não há o que discutir. O Judiciário é um poder nomeado e o Legislativo, um poder indireto.
Você vota no parlamentar de sua preferência mas a orientação do Congresso irá depender de uma negociação entre os próprios deputados e senadores eleitos, num universo de movimentos indiretos, por trás das cortinas, sem controle do eleitor, que distorce, modifica e até inverte a vontade das urnas.
Berço do regime parlamentar, a Europa criou este sistema como uma forma de acomodar as forças sociais sem voto – a começar pela aristocracia, mais do que nunca interessada em preservar seus privilégios depois de 1789 num acordo com a burguesia, como demonstra Arno Meyer num livro inesquecível, a Força da Tradição.
Essa é a questão. Com o golpe iniciado em 17 de abril, um retrocesso teve início. Com o parlamentarismo, ocorrerá sua consolidação.
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