Por Lúcia Rodrigues, na revista Caros Amigos:
Os direitos dos trabalhadores, das minorias e a soberania do País estão sob ataque no Congresso Nacional, em Brasília. Tramita nas duas Casas, Câmara e Senado, um rol de projetos que se forem aprovados e se virarem leis vão representar um duro golpe nos avanços conquistados ao longo de décadas. O Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar (Diap) identificou 55 projetos com essas características. Os retrocessos propostos no Parlamento podem fazer com que os trabalhadores percam todos os direitos previstos na Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), criada em 1943 por Getúlio Vargas. Por trás dos retrocessos no Congresso está o grupo do impeachment da presidente Dilma Rousseff, ao lado de quem o vice, Michel Temer, optou em ficar ao romper a aliança.
O leque de projetos que atacam os interesses da classe trabalhadora é amplo. Mas alguns deles chamam a atenção pelo grau de arcaísmo a que querem fazer retroagir a legislação trabalhista. É possível encontrar propostas que defendem que o trabalhador seja impedido de reclamar seus direitos na Justiça do Trabalho em caso de demissão. Há ainda quem queira escamotear o trabalho escravo, suprimindo a jornada exaustiva e o trabalho degradante das penalidades previstas no Código Penal. A eliminação da norma que regulamenta a segurança no trabalho em máquinas e equipamentos é outra proposta que tramita no Parlamento. A redução da idade laboral para 14 anos e a ampliação da terceirização para todas as etapas do processo de trabalho são alguns dos golpes desferidos pelas canetas dos parlamentares.
Mas há também projetos camuflados sob o manto da modernidade que na verdade são a bala de prata nos direitos conquistados ao longo de dezenas de anos. Os projetos que preveem que o negociado vigore sobre o legislado abrem a porteira definitiva para o passado, ao permitirem a supressão de todos os direitos adquiridos pela classe trabalhadora.
Luta de Classes
A Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp), principal entidade patronal do setor industrial do País, encabeça o ataque aos direitos trabalhistas. Seus dirigentes defendem abertamente a flexibilização da legislação sob o argumento de que o negociado entre patrão e empregado deve prevalecer sobre o legislado. Na prática, isso significa acabar com todas as conquistas históricas: os empresários entram com a corda, e os trabalhadores, com o pescoço.
Se a proposta for transformada em lei, os direitos trabalhistas cairão: férias, décimo terceiro salário, Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS), descanso semanal remunerado, vale-transporte, vale-refeição, vale-alimentação etc. Até o intervalo para almoço durante a jornada de trabalho deixará de existir.
O vice-presidente da Fiesp e empresário do setor do aço, Benjamin Steinbruch, já assumiu isso publicamente em entrevista a um portal de notícias da velha mídia empresarial. “Aqui (no Brasil) a gente tem uma hora de almoço. Normalmente não precisa de uma hora. Porque o cara não almoça em uma hora. Você vai nos Estados Unidos e vê o cara comendo sanduíche com a mão esquerda e operando a máquina com a direita, e tem quinze minutos para o almoço”, enfatiza. O dono da Companhia Siderúrgica Nacional (CSN) afirma com todas as letras que todos os direitos podem ser revistos.
O perfil conservador do Congresso permite que descalabros dessa natureza avancem. A atual bancada é, também segundo avaliação do Diap, a mais conservadora desde o fim da ditadura militar. Conhecida como BBB, de Boi, Bala e Bíblia, por representar o que há de mais reacionário no País, a bancada integrada por esses parlamentares ganhou mais projeção com a não reeleição de deputados que atuavam como um contraponto às suas investidas.
Para o cientista político e professor da Universidade de São Paulo (USP), Antonio Carlos Mazzeo, o crescimento do conservadorismo no Parlamento está diretamente ligado aos episódios que ocorreram em junho de 2013. O movimento popular que foi às ruas para pressionar pela redução no preço da passagem do transporte público nas principais capitais, acabou sendo capitalizado por forças reacionárias. Mídia e partidos de direita usaram a seu favor a insatisfação popular para surfar nessa onda.
“As chamadas ‘Jornadas de Junho de 2013’ acabaram reforçando no âmbito das representações parlamentares a presença de deputados e alguns senadores afinados com discursos conservadores e, porque não dizer, de extrema-direita. A presença de setores despolitizados nas manifestações acabou criando objetivamente um caldo de cultura em que o discurso moralista conquistou esse eleitorado com baixa politização”, avalia.
Segundo ele, a conjunção desses fatores possibilitou que se atingisse esse nível de conservadorismo que se expressa no Legislativo federal. “A explicação para a presença de um significativo contingente conservador e reacionário no Parlamento se deve ao baixo debate político. Isso acabou sendo o mote do processo eleitoral que elegeu um conjunto de deputados débeis do ponto de vista cidadão e político”.
Mazzeo enfatiza que a parceria entre a mídia empresarial e os partidos direitistas foi decisiva para o avanço do conservadorismo no Congresso Nacional. “As investidas de uma mídia comprometida com a oposição de direita, especialmente com o PSDB, foram fundamentais para a formação de uma opinião pública que repudia qualquer política relacionada aos projetos governamentais. O resultado foi catastrófico”.
A jornalista e ativista pela democratização da mídia, Bia Barbosa, não tem dúvida sobre o papel desempenhado pela mídia para o fortalecimento do conservadorismo no País. Estudiosa da comunicação, ela considera que os avanços da direita só serão combatidos com a mobilização popular nas ruas e a pressão sobre os parlamentares no Congresso. “O cenário é preocupante e a mobilização dos movimentos sociais é fundamental para evitar retrocessos.”
Ela cita os ataques do presidente da Câmara, Eduardo Cunha (PMDB-RJ), contra os pequenos avanços conquistados pela sociedade civil no campo da democratização da comunicação, como a aprovação do Marco Civil da internet. “O Cunha perdeu a votação do Marco Civil, em 2014, mas em 2015 já havia dezenas de projetos tramitando para derrubar os aspectos em que ele foi derrotado”, adverte.
A CPI dos crimes cibernéticos também teve seu objetivo alterado pelos parlamentares liderados por Cunha, de acordo com ela. “Era para discutir crimes de pedofilia, crimes de racismo, crimes financeiros, mas foi tomada pelos conservadores que deram a tônica para reprimir e monitorar as pessoas na rede.”
No campo da radiodifusão, a situação é ainda mais crítica. A chance de se aprovar neste momento um projeto que coloque em xeque monopólios de comunicação, como o da Rede Globo que instiga o golpismo 24 horas por dia nas suas diversas plataformas, é quase zero. “A luta, neste momento, é para não perder o que se conseguiu conquistar”, ressalta Bia.
Democracia em xeque
O Brasil ainda não encerrou o ciclo histórico que deveria ter sido concluído com o fim da ditadura militar. A redemocratização que se estende há mais de trinta anos, apesar de avanços, não conseguiu romper com a mentalidade conservadora e reacionária disseminada pelos donos do poder econômico que continuaram a dar as cartas no País.
Nem mesmo a chegada de um operário à Presidência da República foi capaz de reverter essa triste realidade. Em nome da governabilidade foi feito um pacto de classes que ignorou pontos nevrálgicos que deveriam ter sido atacados para se avançar rumo a uma democracia de fato e de direito. Neste momento, os interesses nacionais estão sob ataque e os trabalhadores e as minorias – mulheres, jovens, negros, indígenas, quilombolas, sem-terra, sem-teto, LGBTs – correm o risco de terem suas pautas esmagadas por um Congresso em que a maioria dos parlamentares está a serviço dos do andar de cima.
Caros Amigos elencou alguns dos principais projetos que tramitam no Parlamento e que representam graves retrocessos tanto nos campos político, quanto econômico e social. As propostas de emendas constitucionais, as chamadas PECs, tornam a situação ainda mais delicada, pois uma vez aprovadas pelos deputados e senadores, não poderão ser barradas pelo veto presidencial. O texto passa a integrar a redação da Constituição Federal.
A redução da maioridade penal é um desses exemplos. Se o Senado chancelar o texto aprovado após manobra de Eduardo Cunha, que havia perdido em primeira votação e reapresentou a proposta revertendo a decisão anterior, a redação será apensada diretamente à Carta Magna e a idade mínima para se mandar um jovem para a cadeia passará a ser 16 anos.
“É como se no Brasil houvesse impunidade. Isso é uma farsa. O que está em jogo é a cultura do encarceramento em massa da juventude negra e pobre. Por isso, somos radicalmente contra a redução da maioridade penal. Precisamos garantir a integridade das crianças e dos adolescentes”, reage Joselicio Junior, conhecido como Juninho, ativista do movimento negro e militante do Círculo Palmarino.
Crítico do Estatuto do Desarmamento que está em discussão no Congresso, ele antecipa que se o texto for aprovado a violência aumentará de maneira exponencial. “Porque permitirá o acesso às armas de forma descontrolada. Isso só interessa a quem é financiado pela indústria armamentista, como a Bancada da Bala. Para nós é um grande retrocesso, porque vai aumentar a violência contra a juventude pobre, negra e que mora na periferia, onde já há um genocídio em curso.”
O juiz e presidente da Associação Juízes para a Democracia (AJD), André Bezerra, concorda com Juninho. Crítico da redução da maioridade penal e do Estatuto do Desarmamento, ele também enfatiza o caráter autoritário de outros projetos na área de segurança pública que tramitam em Brasília. Um deles é o que permite a privatização dos presídios. “Isso é um absurdo. O sistema penitenciário privado passaria a ter interesse direto no aumento do número de pessoas encarceradas”, diz o juiz, se referindo à relação de quanto maior o número de detentos, maior será o lucro desses presídios.
André antecipa os desdobramentos de uma eventual aprovação do projeto que tramita no Senado. “Esse projeto que privatiza o sistema carcerário e retira do Estado o monopólio da força, que é uma conquista civilizatória do estado de direito, legitimará o uso da mão de obra do encarcerado, como um verdadeiro trabalhador escravo.”
A Associação Juízes para a Democracia, de acordo com ele, refuta veementemente esse ataque. “Entendemos que é preciso sair da posição defensiva e intensificar a luta pelos direitos, porque sem essa luta, sem essa mobilização, continuaremos a testemunhar a onda conservadora de violações que estamos vivendo”. O rosário de sandices que avança no centro da Esplanada é longo. A Lei Maria da Penha, de combate à violência contra as mulheres, é uma das que corre riscos. “Há vários projetos que querem fazer retroceder a Lei Maria da Penha”, alerta a militante feminista e dirigente da Marcha Mundial de Mulheres, Nalu Faria.
Ela explica que as mulheres além de serem atingidas pelo retrocesso dos projetos contra a classe trabalhadora, também são atacadas por propostas que incidem diretamente na questão de gênero. “O projeto do Eduardo Cunha retrocede no atendimento do aborto legal praticado pelas mulheres”. O PL 5049/2013 criminaliza as mulheres vítimas de estupro ao dificultar o acesso à pílula do dia seguinte. O texto de Cunha ergue uma barreira ao aborto legal. Em 2014, foram 1.613 procedimentos dessa natureza em todo o País. Destes, 94% ocorreram em função de estupros.
Mas Cunha quer modificar a Lei 12.845, que garante atendimento imediato e obrigatório às mulheres vítimas de estupro no Sistema Único de Saúde. Ele também faculta aos profissionais da área de saúde a decisão sobre não oferecer o medicamento abortivo às mulheres, se isto for contra suas convicções religiosas ou pessoais, contrariando a legislação que impõe a obrigatoriedade ao corpo médico de fazê-lo.
O Estatuto do Nascituro é outro retrocesso que tramita no Parlamento e está nas mãos de Eduardo Cunha. Se aprovado, poderá barrar, inclusive, a pesquisa com células-tronco. Já o Estatuto da Família atingirá de forma incisiva famílias monoparentais e casais do mesmo sexo, ao não reconhecê-los como uma família padrão. “Esse estatuto visa padronizar o conceito de família. É uma violência”, critica o presidente da Comissão de Direitos Humanos da Câmara, Paulo Pimenta (PT-RS).
O deputado tem na mira outro projeto, contra o qual diz que irá ao Supremo Tribunal Federal (STF) se for aprovado. É a PEC 215, que retrocede na demarcação das terras indígenas e quilombolas e interfere no ambiente. Por ser o presidente da Casa, e apesar de recaírem sobre ele uma série de denúncias de corrupção e desmandos, cabe a Cunha a prerrogativa de dar a celeridade que julgar conveniente aos projetos que tramitam na Câmara dos Deputados.
Agenda entreguista
No Senado, o ataque é mais refinado, mas não menos contundente. Os projetos colocam em risco a soberania nacional, segundo o senador Roberto Requião (PMDB-PR). O texto do tucano José Serra (PSDB-SP), aprovado na Casa, que retira da Petrobras a exclusividade nas atividades do pré-sal e acaba com a obrigatoriedade da petroleira de atuar com pelo menos 30% dos investimentos em todos os consórcios de exploração, é um deles.
“Fica claro o acordo do Serra com a Chevron”, afirma, se referindo aos documentos divulgados pelo WikiLeaks que revelaram as ligações entre o tucano e a petrolífera estadunidense. Requião considera que o ataque da mídia à Petrobras é uma artimanha planejada para desqualificar a companhia brasileira e deixá-la fragilizada ao ataque voraz do capital privado. “Há um ataque orquestrado na mídia e no Congresso contra a Petrobras.”
A Agenda Brasil, apresentada pelo senador e presidente da Casa, Renan Calheiros (PMDB-AL), em agosto do ano passado, como uma das saídas para a crise, além de não ter debelado nenhum dos focos do problema, serviu para que o neoliberalismo avançasse dentro do Parlamento. Propostas como a independência do Banco Central e o fim das estatais ganharam impulso no último período. “O que está sendo proposto é uma violência. Essas pautas são a favor do capital financeiro, um ataque contra os trabalhadores. A população não tem ideia do que está ocorrendo”, adverte Requião, que tem erguido a voz contra a entrega do patrimônio nacional.
“Essa agenda é conservadora e visa o desmonte do Estado”, classifica o assessor do Diap, Antonio Queiroz, que acompanha e analisa as votações no Congresso. “No Estatuto das Estatais, Tasso Jereissati (PSDB-CE), autor do projeto, restringe, por exemplo, que as empresas sejam utilizadas para dar suporte às políticas públicas. Limita seu papel”, critica.
O caráter público dos Correios, da Caixa, do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) também está sob ataque, com a abertura de pelo menos 25% de seu capital à iniciativa privada. “O Congresso está sequestrado por lobistas”, considera Carina Vitral, presidente da União Nacional dos Estudantes (UNE), entidade que atua para que os recursos dos royalties do pré-sal sejam destinados para a educação.
No plano político, os senadores da oposição também não dão trégua. Uma das pautas mais recentes trata sobre a mudança no sistema de governo. A medida, segundo seus articuladores, serviria para atenuar a crise política. Sem grande alarde na mídia, uma comissão especial estuda há algum tempo o assunto. A proposta teria partido do presidente da Casa, Renan Calheiros, que teria afinado o texto em conversas com o tucano José Serra. O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso teria chancelado a proposta, que introduz o semipresidencialismo como sistema de governo. Na prática, seria a volta do parlamentarismo ao Brasil.
Trata-se de mais um golpe branco, semelhante ao usado em 1961, após a renúncia do então presidente Jânio Quadros para impedir que seu vice, João Goulart, considerado comunista pelos direitistas da época, assumisse a Presidência com plenos poderes. Na época não chegaram ao requinte de propor um prefixo antes do substantivo. Agora, mais pomposos, inventam essa prerrogativa para tentar retirar o direito de governar de uma presidente legitimamente eleita com o voto de mais de 54 milhões de brasileiros. Mas seja qual for o resultado do embate político, a direita deixa claro que manterá o fantasma do retrocesso em todas as áreas, como uma espada de Dâmocles pairando sobre a cabeça da população.
Os direitos dos trabalhadores, das minorias e a soberania do País estão sob ataque no Congresso Nacional, em Brasília. Tramita nas duas Casas, Câmara e Senado, um rol de projetos que se forem aprovados e se virarem leis vão representar um duro golpe nos avanços conquistados ao longo de décadas. O Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar (Diap) identificou 55 projetos com essas características. Os retrocessos propostos no Parlamento podem fazer com que os trabalhadores percam todos os direitos previstos na Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), criada em 1943 por Getúlio Vargas. Por trás dos retrocessos no Congresso está o grupo do impeachment da presidente Dilma Rousseff, ao lado de quem o vice, Michel Temer, optou em ficar ao romper a aliança.
O leque de projetos que atacam os interesses da classe trabalhadora é amplo. Mas alguns deles chamam a atenção pelo grau de arcaísmo a que querem fazer retroagir a legislação trabalhista. É possível encontrar propostas que defendem que o trabalhador seja impedido de reclamar seus direitos na Justiça do Trabalho em caso de demissão. Há ainda quem queira escamotear o trabalho escravo, suprimindo a jornada exaustiva e o trabalho degradante das penalidades previstas no Código Penal. A eliminação da norma que regulamenta a segurança no trabalho em máquinas e equipamentos é outra proposta que tramita no Parlamento. A redução da idade laboral para 14 anos e a ampliação da terceirização para todas as etapas do processo de trabalho são alguns dos golpes desferidos pelas canetas dos parlamentares.
Mas há também projetos camuflados sob o manto da modernidade que na verdade são a bala de prata nos direitos conquistados ao longo de dezenas de anos. Os projetos que preveem que o negociado vigore sobre o legislado abrem a porteira definitiva para o passado, ao permitirem a supressão de todos os direitos adquiridos pela classe trabalhadora.
Luta de Classes
A Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp), principal entidade patronal do setor industrial do País, encabeça o ataque aos direitos trabalhistas. Seus dirigentes defendem abertamente a flexibilização da legislação sob o argumento de que o negociado entre patrão e empregado deve prevalecer sobre o legislado. Na prática, isso significa acabar com todas as conquistas históricas: os empresários entram com a corda, e os trabalhadores, com o pescoço.
Se a proposta for transformada em lei, os direitos trabalhistas cairão: férias, décimo terceiro salário, Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS), descanso semanal remunerado, vale-transporte, vale-refeição, vale-alimentação etc. Até o intervalo para almoço durante a jornada de trabalho deixará de existir.
O vice-presidente da Fiesp e empresário do setor do aço, Benjamin Steinbruch, já assumiu isso publicamente em entrevista a um portal de notícias da velha mídia empresarial. “Aqui (no Brasil) a gente tem uma hora de almoço. Normalmente não precisa de uma hora. Porque o cara não almoça em uma hora. Você vai nos Estados Unidos e vê o cara comendo sanduíche com a mão esquerda e operando a máquina com a direita, e tem quinze minutos para o almoço”, enfatiza. O dono da Companhia Siderúrgica Nacional (CSN) afirma com todas as letras que todos os direitos podem ser revistos.
O perfil conservador do Congresso permite que descalabros dessa natureza avancem. A atual bancada é, também segundo avaliação do Diap, a mais conservadora desde o fim da ditadura militar. Conhecida como BBB, de Boi, Bala e Bíblia, por representar o que há de mais reacionário no País, a bancada integrada por esses parlamentares ganhou mais projeção com a não reeleição de deputados que atuavam como um contraponto às suas investidas.
Para o cientista político e professor da Universidade de São Paulo (USP), Antonio Carlos Mazzeo, o crescimento do conservadorismo no Parlamento está diretamente ligado aos episódios que ocorreram em junho de 2013. O movimento popular que foi às ruas para pressionar pela redução no preço da passagem do transporte público nas principais capitais, acabou sendo capitalizado por forças reacionárias. Mídia e partidos de direita usaram a seu favor a insatisfação popular para surfar nessa onda.
“As chamadas ‘Jornadas de Junho de 2013’ acabaram reforçando no âmbito das representações parlamentares a presença de deputados e alguns senadores afinados com discursos conservadores e, porque não dizer, de extrema-direita. A presença de setores despolitizados nas manifestações acabou criando objetivamente um caldo de cultura em que o discurso moralista conquistou esse eleitorado com baixa politização”, avalia.
Segundo ele, a conjunção desses fatores possibilitou que se atingisse esse nível de conservadorismo que se expressa no Legislativo federal. “A explicação para a presença de um significativo contingente conservador e reacionário no Parlamento se deve ao baixo debate político. Isso acabou sendo o mote do processo eleitoral que elegeu um conjunto de deputados débeis do ponto de vista cidadão e político”.
Mazzeo enfatiza que a parceria entre a mídia empresarial e os partidos direitistas foi decisiva para o avanço do conservadorismo no Congresso Nacional. “As investidas de uma mídia comprometida com a oposição de direita, especialmente com o PSDB, foram fundamentais para a formação de uma opinião pública que repudia qualquer política relacionada aos projetos governamentais. O resultado foi catastrófico”.
A jornalista e ativista pela democratização da mídia, Bia Barbosa, não tem dúvida sobre o papel desempenhado pela mídia para o fortalecimento do conservadorismo no País. Estudiosa da comunicação, ela considera que os avanços da direita só serão combatidos com a mobilização popular nas ruas e a pressão sobre os parlamentares no Congresso. “O cenário é preocupante e a mobilização dos movimentos sociais é fundamental para evitar retrocessos.”
Ela cita os ataques do presidente da Câmara, Eduardo Cunha (PMDB-RJ), contra os pequenos avanços conquistados pela sociedade civil no campo da democratização da comunicação, como a aprovação do Marco Civil da internet. “O Cunha perdeu a votação do Marco Civil, em 2014, mas em 2015 já havia dezenas de projetos tramitando para derrubar os aspectos em que ele foi derrotado”, adverte.
A CPI dos crimes cibernéticos também teve seu objetivo alterado pelos parlamentares liderados por Cunha, de acordo com ela. “Era para discutir crimes de pedofilia, crimes de racismo, crimes financeiros, mas foi tomada pelos conservadores que deram a tônica para reprimir e monitorar as pessoas na rede.”
No campo da radiodifusão, a situação é ainda mais crítica. A chance de se aprovar neste momento um projeto que coloque em xeque monopólios de comunicação, como o da Rede Globo que instiga o golpismo 24 horas por dia nas suas diversas plataformas, é quase zero. “A luta, neste momento, é para não perder o que se conseguiu conquistar”, ressalta Bia.
Democracia em xeque
O Brasil ainda não encerrou o ciclo histórico que deveria ter sido concluído com o fim da ditadura militar. A redemocratização que se estende há mais de trinta anos, apesar de avanços, não conseguiu romper com a mentalidade conservadora e reacionária disseminada pelos donos do poder econômico que continuaram a dar as cartas no País.
Nem mesmo a chegada de um operário à Presidência da República foi capaz de reverter essa triste realidade. Em nome da governabilidade foi feito um pacto de classes que ignorou pontos nevrálgicos que deveriam ter sido atacados para se avançar rumo a uma democracia de fato e de direito. Neste momento, os interesses nacionais estão sob ataque e os trabalhadores e as minorias – mulheres, jovens, negros, indígenas, quilombolas, sem-terra, sem-teto, LGBTs – correm o risco de terem suas pautas esmagadas por um Congresso em que a maioria dos parlamentares está a serviço dos do andar de cima.
Caros Amigos elencou alguns dos principais projetos que tramitam no Parlamento e que representam graves retrocessos tanto nos campos político, quanto econômico e social. As propostas de emendas constitucionais, as chamadas PECs, tornam a situação ainda mais delicada, pois uma vez aprovadas pelos deputados e senadores, não poderão ser barradas pelo veto presidencial. O texto passa a integrar a redação da Constituição Federal.
A redução da maioridade penal é um desses exemplos. Se o Senado chancelar o texto aprovado após manobra de Eduardo Cunha, que havia perdido em primeira votação e reapresentou a proposta revertendo a decisão anterior, a redação será apensada diretamente à Carta Magna e a idade mínima para se mandar um jovem para a cadeia passará a ser 16 anos.
“É como se no Brasil houvesse impunidade. Isso é uma farsa. O que está em jogo é a cultura do encarceramento em massa da juventude negra e pobre. Por isso, somos radicalmente contra a redução da maioridade penal. Precisamos garantir a integridade das crianças e dos adolescentes”, reage Joselicio Junior, conhecido como Juninho, ativista do movimento negro e militante do Círculo Palmarino.
Crítico do Estatuto do Desarmamento que está em discussão no Congresso, ele antecipa que se o texto for aprovado a violência aumentará de maneira exponencial. “Porque permitirá o acesso às armas de forma descontrolada. Isso só interessa a quem é financiado pela indústria armamentista, como a Bancada da Bala. Para nós é um grande retrocesso, porque vai aumentar a violência contra a juventude pobre, negra e que mora na periferia, onde já há um genocídio em curso.”
O juiz e presidente da Associação Juízes para a Democracia (AJD), André Bezerra, concorda com Juninho. Crítico da redução da maioridade penal e do Estatuto do Desarmamento, ele também enfatiza o caráter autoritário de outros projetos na área de segurança pública que tramitam em Brasília. Um deles é o que permite a privatização dos presídios. “Isso é um absurdo. O sistema penitenciário privado passaria a ter interesse direto no aumento do número de pessoas encarceradas”, diz o juiz, se referindo à relação de quanto maior o número de detentos, maior será o lucro desses presídios.
André antecipa os desdobramentos de uma eventual aprovação do projeto que tramita no Senado. “Esse projeto que privatiza o sistema carcerário e retira do Estado o monopólio da força, que é uma conquista civilizatória do estado de direito, legitimará o uso da mão de obra do encarcerado, como um verdadeiro trabalhador escravo.”
A Associação Juízes para a Democracia, de acordo com ele, refuta veementemente esse ataque. “Entendemos que é preciso sair da posição defensiva e intensificar a luta pelos direitos, porque sem essa luta, sem essa mobilização, continuaremos a testemunhar a onda conservadora de violações que estamos vivendo”. O rosário de sandices que avança no centro da Esplanada é longo. A Lei Maria da Penha, de combate à violência contra as mulheres, é uma das que corre riscos. “Há vários projetos que querem fazer retroceder a Lei Maria da Penha”, alerta a militante feminista e dirigente da Marcha Mundial de Mulheres, Nalu Faria.
Ela explica que as mulheres além de serem atingidas pelo retrocesso dos projetos contra a classe trabalhadora, também são atacadas por propostas que incidem diretamente na questão de gênero. “O projeto do Eduardo Cunha retrocede no atendimento do aborto legal praticado pelas mulheres”. O PL 5049/2013 criminaliza as mulheres vítimas de estupro ao dificultar o acesso à pílula do dia seguinte. O texto de Cunha ergue uma barreira ao aborto legal. Em 2014, foram 1.613 procedimentos dessa natureza em todo o País. Destes, 94% ocorreram em função de estupros.
Mas Cunha quer modificar a Lei 12.845, que garante atendimento imediato e obrigatório às mulheres vítimas de estupro no Sistema Único de Saúde. Ele também faculta aos profissionais da área de saúde a decisão sobre não oferecer o medicamento abortivo às mulheres, se isto for contra suas convicções religiosas ou pessoais, contrariando a legislação que impõe a obrigatoriedade ao corpo médico de fazê-lo.
O Estatuto do Nascituro é outro retrocesso que tramita no Parlamento e está nas mãos de Eduardo Cunha. Se aprovado, poderá barrar, inclusive, a pesquisa com células-tronco. Já o Estatuto da Família atingirá de forma incisiva famílias monoparentais e casais do mesmo sexo, ao não reconhecê-los como uma família padrão. “Esse estatuto visa padronizar o conceito de família. É uma violência”, critica o presidente da Comissão de Direitos Humanos da Câmara, Paulo Pimenta (PT-RS).
O deputado tem na mira outro projeto, contra o qual diz que irá ao Supremo Tribunal Federal (STF) se for aprovado. É a PEC 215, que retrocede na demarcação das terras indígenas e quilombolas e interfere no ambiente. Por ser o presidente da Casa, e apesar de recaírem sobre ele uma série de denúncias de corrupção e desmandos, cabe a Cunha a prerrogativa de dar a celeridade que julgar conveniente aos projetos que tramitam na Câmara dos Deputados.
Agenda entreguista
No Senado, o ataque é mais refinado, mas não menos contundente. Os projetos colocam em risco a soberania nacional, segundo o senador Roberto Requião (PMDB-PR). O texto do tucano José Serra (PSDB-SP), aprovado na Casa, que retira da Petrobras a exclusividade nas atividades do pré-sal e acaba com a obrigatoriedade da petroleira de atuar com pelo menos 30% dos investimentos em todos os consórcios de exploração, é um deles.
“Fica claro o acordo do Serra com a Chevron”, afirma, se referindo aos documentos divulgados pelo WikiLeaks que revelaram as ligações entre o tucano e a petrolífera estadunidense. Requião considera que o ataque da mídia à Petrobras é uma artimanha planejada para desqualificar a companhia brasileira e deixá-la fragilizada ao ataque voraz do capital privado. “Há um ataque orquestrado na mídia e no Congresso contra a Petrobras.”
A Agenda Brasil, apresentada pelo senador e presidente da Casa, Renan Calheiros (PMDB-AL), em agosto do ano passado, como uma das saídas para a crise, além de não ter debelado nenhum dos focos do problema, serviu para que o neoliberalismo avançasse dentro do Parlamento. Propostas como a independência do Banco Central e o fim das estatais ganharam impulso no último período. “O que está sendo proposto é uma violência. Essas pautas são a favor do capital financeiro, um ataque contra os trabalhadores. A população não tem ideia do que está ocorrendo”, adverte Requião, que tem erguido a voz contra a entrega do patrimônio nacional.
“Essa agenda é conservadora e visa o desmonte do Estado”, classifica o assessor do Diap, Antonio Queiroz, que acompanha e analisa as votações no Congresso. “No Estatuto das Estatais, Tasso Jereissati (PSDB-CE), autor do projeto, restringe, por exemplo, que as empresas sejam utilizadas para dar suporte às políticas públicas. Limita seu papel”, critica.
O caráter público dos Correios, da Caixa, do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) também está sob ataque, com a abertura de pelo menos 25% de seu capital à iniciativa privada. “O Congresso está sequestrado por lobistas”, considera Carina Vitral, presidente da União Nacional dos Estudantes (UNE), entidade que atua para que os recursos dos royalties do pré-sal sejam destinados para a educação.
No plano político, os senadores da oposição também não dão trégua. Uma das pautas mais recentes trata sobre a mudança no sistema de governo. A medida, segundo seus articuladores, serviria para atenuar a crise política. Sem grande alarde na mídia, uma comissão especial estuda há algum tempo o assunto. A proposta teria partido do presidente da Casa, Renan Calheiros, que teria afinado o texto em conversas com o tucano José Serra. O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso teria chancelado a proposta, que introduz o semipresidencialismo como sistema de governo. Na prática, seria a volta do parlamentarismo ao Brasil.
Trata-se de mais um golpe branco, semelhante ao usado em 1961, após a renúncia do então presidente Jânio Quadros para impedir que seu vice, João Goulart, considerado comunista pelos direitistas da época, assumisse a Presidência com plenos poderes. Na época não chegaram ao requinte de propor um prefixo antes do substantivo. Agora, mais pomposos, inventam essa prerrogativa para tentar retirar o direito de governar de uma presidente legitimamente eleita com o voto de mais de 54 milhões de brasileiros. Mas seja qual for o resultado do embate político, a direita deixa claro que manterá o fantasma do retrocesso em todas as áreas, como uma espada de Dâmocles pairando sobre a cabeça da população.
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