Por Celso Amorim, na revista CartaCapital:
O Mercosul passa pela maior crise desde a sua criação, em 1991. O aspecto mais imediato é o risco de vacância da presidência, uma vez encerrado o período em que o Uruguai esteve à frente do bloco.
Corretamente, Montevidéu declarou encerrado seu papel na coordenação, ao completar-se o semestre que lhe cabia. Seu ministro do Exterior, o ex-vice-presidente Nin Novoa, declarou que “não via impedimento” a que a Venezuela assumisse o comando.
De acordo com os documentos constitutivos do Mercosul, especialmente o Protocolo de Ouro Preto, cujo dispositivo a esse respeito (artigo 5) ganhou, ademais, a força da tradição, a transferência ocorre por ordem alfabética. Assim é e assim deve seguir sendo.
Os outros membros do bloco, sobretudo Brasil e Paraguai, não aceitam, porém, ver Caracas na presidência. No caso do Paraguai, além do elemento ideológico, pesa o ressentimento decorrente do fato de a adesão da Venezuela, que vinha sendo adiada pela não ratificação pelo Parlamento em Assunção, ter-se concretizado em um momento em que o governo paraguaio estava com sua participação suspensa, em virtude do golpe parlamentar que derrubou o presidente Fernando Lugo.
O substrato da posição paraguaia, entretanto, consiste no fato de que a Venezuela não seria um país plenamente democrático. Preocupações semelhantes foram verbalizadas pelo presidente Mauricio Macri, da Argentina, sobretudo no início do seu mandato.
De lá para cá, a oposição de Buenos Aires ao governo de Nicolás Maduro parece ter sido algo suavizada, mas essa pode ser uma falsa impressão, decorrente da candidatura da chanceler Susana Malcorra ao posto de secretária-geral da ONU.
E o Brasil? A explicação para o nosso “veto” ao traslado da presidência à Venezuela tem oscilado. Embora existam críticas à natureza do regime de Nicolás Maduro e à situação interna do país, Brasília, inclusive pela voz do presidente interino, tem insistido mais na alegada inadimplência por parte de Caracas com relação às obrigações contraídas por ocasião do ingresso no bloco.
Formalismos à parte, a ojeriza ideológica pelo chavismo ou bolivarianismo (este, por vezes, atribuído, de forma absurda, aos governos Lula e Dilma) parece ser o fator dominante.
A situação na Venezuela é objeto de preocupação legítima para toda a América do Sul. Aplica-se aí, ao lado do princípio da não intervenção, a norma de comportamento que, quando ministro das Relações Exteriores entre 2003 e 2010, qualifiquei como “não indiferença”.
O caos econômico que vive aquela nação irmã, combinado à dissensão política extremada, na qual os dois lados têm sua parcela de responsabilidade, tem o potencial de levar o país a um conflito de extrema gravidade.
É natural que outros países – sobretudo os vizinhos, sócios da Venezuela no Mercosul e/ou na Unasul – busquem ajudar os venezuelanos a superar a crise atual.
É, aliás, o que a Unasul está fazendo com propostas econômicas ousadas, com apoio de economistas renomados. Caso adotadas, poderão ajudar a mitigar os efeitos mais graves da crise.
No plano político, igualmente, a Unasul, por meio do seu secretário-geral, o ex-presidente colombiano Ernesto Samper tem mobilizado ex-chefes de governo, como José Luis Zapatero, da Espanha e Leonel Fernández, da República Dominicana. A Santa Sé também poderia, com sua autoridade moral, contribuir para o diálogo, e – sendo algo otimista –, no mais longo prazo, para algum grau de reconciliação nacional.
Afinal, até Estados Unidos e Cuba restabeleceram relações, depois de décadas de antagonismo e um malsucedido bloqueio. E o governo colombiano, comandado pelo ex-ministro da Defesa Juan Manuel Santos, e as Farc chegaram a um entendimento sobre a pacificação. Por que então desesperar, por mais difícil que seja a tarefa, de um encaminhamento pacífico para a situação venezuelana?
Para tanto, a meu ver, será necessário encontrar denominador comum não apenas para questões estritamente políticas, mas também garantir que avanços sociais sejam mantidos. A Venezuela, diga-se, antes de Chávez, não era um modelo de equidade e boa distribuição da riqueza.
Diferentemente de 2002-2003, a situação interna do Brasil não favorece a que tenhamos um papel central na busca desse diálogo. Mas podemos, sim, evitar ações que agravem a crise ou levem ao isolamento do governo, aparentemente solidamente ancorado em sua base militar, além de razoável popularidade, que apenas contribuiria para a radicalização de posições.
Um pouco de bom senso e ausência de rompantes condenatórios, que visam satisfazer uma parte da opinião pública (ou “opinião publicada”), já seriam uma ajuda. Nesse contexto, privar a Venezuela da presidência do Mercosul em nada contribuiria para melhorar a situação no país vizinho. A psicologia do “cerco” nunca produziu bons resultados.
Isso não quer dizer que não seja legítimo pressionar, por meios diplomáticos normais – como ocorre em tantas outras “inadimplências” no Mercosul – para que Caracas gradualmente vá cumprindo com suas obrigações junto ao bloco.
A menos que o objetivo seja outro: o de contribuir para uma desestabilização maior da Venezuela, sem atentar para as terríveis consequências que isso acarretaria.
De quebra, o Mercosul sairia debilitado, correndo o risco de implodir a maior empreitada de integração (não confundir com meras áreas de livre-comércio) no mundo em desenvolvimento.
Corretamente, Montevidéu declarou encerrado seu papel na coordenação, ao completar-se o semestre que lhe cabia. Seu ministro do Exterior, o ex-vice-presidente Nin Novoa, declarou que “não via impedimento” a que a Venezuela assumisse o comando.
De acordo com os documentos constitutivos do Mercosul, especialmente o Protocolo de Ouro Preto, cujo dispositivo a esse respeito (artigo 5) ganhou, ademais, a força da tradição, a transferência ocorre por ordem alfabética. Assim é e assim deve seguir sendo.
Os outros membros do bloco, sobretudo Brasil e Paraguai, não aceitam, porém, ver Caracas na presidência. No caso do Paraguai, além do elemento ideológico, pesa o ressentimento decorrente do fato de a adesão da Venezuela, que vinha sendo adiada pela não ratificação pelo Parlamento em Assunção, ter-se concretizado em um momento em que o governo paraguaio estava com sua participação suspensa, em virtude do golpe parlamentar que derrubou o presidente Fernando Lugo.
O substrato da posição paraguaia, entretanto, consiste no fato de que a Venezuela não seria um país plenamente democrático. Preocupações semelhantes foram verbalizadas pelo presidente Mauricio Macri, da Argentina, sobretudo no início do seu mandato.
De lá para cá, a oposição de Buenos Aires ao governo de Nicolás Maduro parece ter sido algo suavizada, mas essa pode ser uma falsa impressão, decorrente da candidatura da chanceler Susana Malcorra ao posto de secretária-geral da ONU.
E o Brasil? A explicação para o nosso “veto” ao traslado da presidência à Venezuela tem oscilado. Embora existam críticas à natureza do regime de Nicolás Maduro e à situação interna do país, Brasília, inclusive pela voz do presidente interino, tem insistido mais na alegada inadimplência por parte de Caracas com relação às obrigações contraídas por ocasião do ingresso no bloco.
Formalismos à parte, a ojeriza ideológica pelo chavismo ou bolivarianismo (este, por vezes, atribuído, de forma absurda, aos governos Lula e Dilma) parece ser o fator dominante.
A situação na Venezuela é objeto de preocupação legítima para toda a América do Sul. Aplica-se aí, ao lado do princípio da não intervenção, a norma de comportamento que, quando ministro das Relações Exteriores entre 2003 e 2010, qualifiquei como “não indiferença”.
O caos econômico que vive aquela nação irmã, combinado à dissensão política extremada, na qual os dois lados têm sua parcela de responsabilidade, tem o potencial de levar o país a um conflito de extrema gravidade.
É natural que outros países – sobretudo os vizinhos, sócios da Venezuela no Mercosul e/ou na Unasul – busquem ajudar os venezuelanos a superar a crise atual.
É, aliás, o que a Unasul está fazendo com propostas econômicas ousadas, com apoio de economistas renomados. Caso adotadas, poderão ajudar a mitigar os efeitos mais graves da crise.
No plano político, igualmente, a Unasul, por meio do seu secretário-geral, o ex-presidente colombiano Ernesto Samper tem mobilizado ex-chefes de governo, como José Luis Zapatero, da Espanha e Leonel Fernández, da República Dominicana. A Santa Sé também poderia, com sua autoridade moral, contribuir para o diálogo, e – sendo algo otimista –, no mais longo prazo, para algum grau de reconciliação nacional.
Afinal, até Estados Unidos e Cuba restabeleceram relações, depois de décadas de antagonismo e um malsucedido bloqueio. E o governo colombiano, comandado pelo ex-ministro da Defesa Juan Manuel Santos, e as Farc chegaram a um entendimento sobre a pacificação. Por que então desesperar, por mais difícil que seja a tarefa, de um encaminhamento pacífico para a situação venezuelana?
Para tanto, a meu ver, será necessário encontrar denominador comum não apenas para questões estritamente políticas, mas também garantir que avanços sociais sejam mantidos. A Venezuela, diga-se, antes de Chávez, não era um modelo de equidade e boa distribuição da riqueza.
Diferentemente de 2002-2003, a situação interna do Brasil não favorece a que tenhamos um papel central na busca desse diálogo. Mas podemos, sim, evitar ações que agravem a crise ou levem ao isolamento do governo, aparentemente solidamente ancorado em sua base militar, além de razoável popularidade, que apenas contribuiria para a radicalização de posições.
Um pouco de bom senso e ausência de rompantes condenatórios, que visam satisfazer uma parte da opinião pública (ou “opinião publicada”), já seriam uma ajuda. Nesse contexto, privar a Venezuela da presidência do Mercosul em nada contribuiria para melhorar a situação no país vizinho. A psicologia do “cerco” nunca produziu bons resultados.
Isso não quer dizer que não seja legítimo pressionar, por meios diplomáticos normais – como ocorre em tantas outras “inadimplências” no Mercosul – para que Caracas gradualmente vá cumprindo com suas obrigações junto ao bloco.
A menos que o objetivo seja outro: o de contribuir para uma desestabilização maior da Venezuela, sem atentar para as terríveis consequências que isso acarretaria.
De quebra, o Mercosul sairia debilitado, correndo o risco de implodir a maior empreitada de integração (não confundir com meras áreas de livre-comércio) no mundo em desenvolvimento.
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