Por Helton Lucinda Ribeiro, no site Outras Palavras:
O semblante duro lembra Lex Luthor, o vilão das histórias do Super-Homem. O estilo? Feito sob medida para agradar à classe média com fetiche por Estado policial. Assim é o ministro da Justiça Alexandre de Moraes (PSDB), a face mais truculenta do governo interino. Cacifou-se para o cargo ao comandar, do alto da secretaria de Segurança Pública de São Paulo, a repressão aos estudantes secundaristas, além de ter no currículo uma escalada de violência praticada pela Polícia Militar, incluindo as chacinas ocorridas em 2015. São credenciais atípicas para quem foi considerado, ainda jovem, referência em Direito Constitucional. Como pode, hoje, parecer tão pouco reverente aos direitos e garantias fundamentais consagrados na Constituição?
Talvez nada explique melhor a “persona” de Alexandre de Moraes do que o marketing fascista da atualidade, o mesmo que garantiu uma sobrevida pública a gente como Lobão e Alexandre Frota. Basta comparar o ministro de hoje com o secretário da Justiça do governo Alckmin entre 2002 e 2005 para perceber não uma mudança ideológica, mas de discurso.
Enquanto isso, na Secretaria da Justiça…
Moraes tem passagem por vários cargos públicos. Alguns foram alcançados por mérito, como o primeiro lugar no concurso do Ministério Público de São Paulo. Outros, por indicação política, como a secretaria estadual da Justiça e da Defesa da Cidadania, a vaga no Conselho Nacional de Justiça, a Secretaria de Transportes da prefeitura de São Paulo e a secretaria estadual de Segurança Pública.
Então filiado ao PFL (atual DEM), Alexandre de Moraes chegou à Secretaria da Justiça e da Defesa da Cidadania em 2002 pelas mãos do vice-governador Cláudio Lembo, um sujeito de ares aristocráticos, notoriamente conservador, mas que se saiu, anos depois, com declarações contra a “elite branca”. Moraes, contudo, não era destituído de brilho próprio. Com pouco mais de 30 anos, já havia publicado um livro sobre Direito Constitucional que veio a integrar a bibliografia básica na área.
Assumiu a pasta da Justiça em um momento particularmente conturbado, pelo menos na área de atuação de um de seus órgãos vinculados, a Fundação Instituto de Terras do Estado de São Paulo (Itesp). Estaria sob a responsabilidade direta de Moraes, portanto, a política agrária do governo estadual e a interlocução com os movimentos sociais.
Durante todo o governo de Fernando Henrique Cardoso, o MST manteve relação tensa com o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), mas um diálogo razoável com o Itesp. Afinal, o órgão estadual, durante o governo Mário Covas, fora mais sensível às reivindicações dos trabalhadores rurais e destinara um grande estoque de terras devolutas à criação de assentamentos rurais na região do Pontal do Paranapanema. Além disso, havia na direção do Itesp um grupo de militantes egressos do movimento estudantil e herdeiros políticos de José Gomes da Silva, o respeitado fundador da Associação Brasileira de Reforma Agrária (Abra).
Com a chegada de Lula à Presidência da República, em 2003, a relação se inverteu. O Incra tornou-se aliado e o MST voltou suas baterias contra o governo de Geraldo Alckmin, a ponto de reivindicar que os assentamentos estaduais fossem transferidos para o governo federal. Para complicar o relacionamento com os movimentos, Alckmin – governador desde 2001, após a morte de Covas – promovera mudanças na direção do Itesp: saíram os militantes históricos da reforma agrária e assumiu um grupo mais organicamente vinculado ao PSDB.
Concomitantemente, os conflitos se agravaram na região do Pontal, com a formação de milícias armadas por parte dos fazendeiros e a criação de um gigantesco acampamento em Presidente Epitácio, sob a liderança de José Rainha Júnior (então, ainda ligado ao MST).
Como o hoje truculento Alexandre de Moraes lidaria com isso? Houve pelo menos duas situações em que o secretário foi posto à prova e seu desempenho teria surpreendido a quem conhecesse apenas seu histórico recente como secretário de Segurança Pública de Alckmin.
Em defesa do direito de ir e vir
Em 29 de janeiro de 2002, poucos dias após a posse de Moraes como titular da pasta da Justiça e da Defesa da Cidadania, o folclórico (no mau sentido) prefeito Agripino Lima, de Presidente Prudente, usou tratores, máquinas e funcionários da prefeitura para bloquear a rodovia Assis Chateaubriand e impedir a entrada de uma marcha do MST na cidade. Os sem-terra, sob liderança de José Rainha, haviam saído do município de Pirapozinho de madrugada. Temia-se o conflito, mas representantes de órgãos governamentais e do Ministério Público concentravam-se mais em convencer Rainha a desistir da manifestação do que fazer o prefeito suspender o bloqueio ilegal da rodovia.
O ato tresloucado de Agripino Lima causou alvoroço e, como não poderia deixar de ser, a imprensa tratou de repercutir o assunto com o secretário da Justiça, principal interlocutor entre o governo do Estado e os movimentos de luta pela terra. Moraes condenou o bloqueio e defendeu o direito constitucional de ir e vir dos manifestantes, desde que exercido pacificamente. Em momento algum considerou a marcha “criminosa” ou mencionou uma “guerrilha urbana” do MST, como fez recentemente.
Mas, naquele momento, Fernando Henrique Cardoso ainda era o presidente e o Incra estava sob o comando do PSDB. No ano seguinte, o PT estaria no poder, Lula vestiria o boné do MST e José Rainha daria início a uma intensa mobilização de trabalhadores sem-terra no Pontal do Paranapanema. Moraes daria conta do recado?
Sem mandado, não!
Pois o segundo episódio se deu no final da tarde de 10 de setembro de 2003. Moraes presidia uma reunião do conselho curador do Itesp, no auditório do órgão, quando seu celular tocou. Era o advogado do MST, Juvelino Strozake, que, aflito, pedia intervenção urgente do secretário da Justiça para deter uma arbitrariedade: o escritório do MST em São Paulo acabara de ser cercado e invadido por uma equipe do Grupo de Operações Especiais (GOE) da polícia civil. Na época, havia sido decretada a prisão de 11 integrantes do movimento. Nenhum deles estava no escritório. Mesmo assim, os policiais se puseram a revirar móveis e apreender documentos.
Moraes pediu a Strozake para passar o telefone ao delegado que comandava a operação. Perguntou se os policiais tinham um mandado de busca e apreensão. Diante da negativa, determinou que saíssem imediatamente do escritório e devolvessem qualquer documento apreendido. Ao desligar o celular, comentou com os funcionários do Itesp, em tom de brincadeira, que o secretário de Segurança Pública, Saulo de Castro Abreu Filho, não iria gostar nada dessa intromissão em sua área.
Quem diria que, ao assumir a pasta de Abreu Filho anos depois, mandaria a polícia militar invadir uma escola sem mandado judicial?
Marketing agressivo
Não que Alexandre de Moraes tenha sido sempre equilibrado antes de se render à tentação de construir uma persona pública claramente fascista. Com poucos dias à frente da pasta da Justiça e da Defesa da Cidadania, em janeiro de 2002, protagonizou um bate-boca com Delwek Matheus, dirigente do MST, diante dos cinegrafistas das principais emissoras de televisão. Para desespero de sua assessoria, ele interrompera a entrevista de Matheus e o desmentira sobre os termos do acordo recém-firmado para a reintegração de posse de duas fazendas ocupadas pelo movimento.
Quando a assessora de imprensa da Secretaria, a jornalista Silvia Jabur, ponderou que aquele tipo de atitude não ficava bem para um secretário de governo, ouviu o seguinte: “Do meu marketing pessoal, cuido eu!” Não imaginava, então, que seu assessorado sairia um dia, de facão em punho, a cortar pés de maconha sob a mira das câmeras de TV.
Esse é Alexandre de Moraes. O estudo da Constituição Federal poderia ter lhe trazido reconhecimento, talvez até notoriedade, mas não poder. Buscou-o, então, por outros meios. E, no caminho escolhido por ele, os direitos constitucionais não passam de obstáculos a serem vencidos.
Na transição entre o secretário da Justiça de 2002 e o ministro da Justiça de 2016, ficaram para trás, além de 14 anos e todo o cabelo, os últimos pudores de constitucionalista. Assim como celebridades à beira do ostracismo agarraram-se a discursos reacionários para não despencar no esquecimento (cada vez mais merecido), Alexandre de Moraes adotou a brutalidade pura e simples para conquistar um lugar ao sol na política. Até agora, está dando certo para ele. Azar o nosso.
O semblante duro lembra Lex Luthor, o vilão das histórias do Super-Homem. O estilo? Feito sob medida para agradar à classe média com fetiche por Estado policial. Assim é o ministro da Justiça Alexandre de Moraes (PSDB), a face mais truculenta do governo interino. Cacifou-se para o cargo ao comandar, do alto da secretaria de Segurança Pública de São Paulo, a repressão aos estudantes secundaristas, além de ter no currículo uma escalada de violência praticada pela Polícia Militar, incluindo as chacinas ocorridas em 2015. São credenciais atípicas para quem foi considerado, ainda jovem, referência em Direito Constitucional. Como pode, hoje, parecer tão pouco reverente aos direitos e garantias fundamentais consagrados na Constituição?
Talvez nada explique melhor a “persona” de Alexandre de Moraes do que o marketing fascista da atualidade, o mesmo que garantiu uma sobrevida pública a gente como Lobão e Alexandre Frota. Basta comparar o ministro de hoje com o secretário da Justiça do governo Alckmin entre 2002 e 2005 para perceber não uma mudança ideológica, mas de discurso.
Enquanto isso, na Secretaria da Justiça…
Moraes tem passagem por vários cargos públicos. Alguns foram alcançados por mérito, como o primeiro lugar no concurso do Ministério Público de São Paulo. Outros, por indicação política, como a secretaria estadual da Justiça e da Defesa da Cidadania, a vaga no Conselho Nacional de Justiça, a Secretaria de Transportes da prefeitura de São Paulo e a secretaria estadual de Segurança Pública.
Então filiado ao PFL (atual DEM), Alexandre de Moraes chegou à Secretaria da Justiça e da Defesa da Cidadania em 2002 pelas mãos do vice-governador Cláudio Lembo, um sujeito de ares aristocráticos, notoriamente conservador, mas que se saiu, anos depois, com declarações contra a “elite branca”. Moraes, contudo, não era destituído de brilho próprio. Com pouco mais de 30 anos, já havia publicado um livro sobre Direito Constitucional que veio a integrar a bibliografia básica na área.
Assumiu a pasta da Justiça em um momento particularmente conturbado, pelo menos na área de atuação de um de seus órgãos vinculados, a Fundação Instituto de Terras do Estado de São Paulo (Itesp). Estaria sob a responsabilidade direta de Moraes, portanto, a política agrária do governo estadual e a interlocução com os movimentos sociais.
Durante todo o governo de Fernando Henrique Cardoso, o MST manteve relação tensa com o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), mas um diálogo razoável com o Itesp. Afinal, o órgão estadual, durante o governo Mário Covas, fora mais sensível às reivindicações dos trabalhadores rurais e destinara um grande estoque de terras devolutas à criação de assentamentos rurais na região do Pontal do Paranapanema. Além disso, havia na direção do Itesp um grupo de militantes egressos do movimento estudantil e herdeiros políticos de José Gomes da Silva, o respeitado fundador da Associação Brasileira de Reforma Agrária (Abra).
Com a chegada de Lula à Presidência da República, em 2003, a relação se inverteu. O Incra tornou-se aliado e o MST voltou suas baterias contra o governo de Geraldo Alckmin, a ponto de reivindicar que os assentamentos estaduais fossem transferidos para o governo federal. Para complicar o relacionamento com os movimentos, Alckmin – governador desde 2001, após a morte de Covas – promovera mudanças na direção do Itesp: saíram os militantes históricos da reforma agrária e assumiu um grupo mais organicamente vinculado ao PSDB.
Concomitantemente, os conflitos se agravaram na região do Pontal, com a formação de milícias armadas por parte dos fazendeiros e a criação de um gigantesco acampamento em Presidente Epitácio, sob a liderança de José Rainha Júnior (então, ainda ligado ao MST).
Como o hoje truculento Alexandre de Moraes lidaria com isso? Houve pelo menos duas situações em que o secretário foi posto à prova e seu desempenho teria surpreendido a quem conhecesse apenas seu histórico recente como secretário de Segurança Pública de Alckmin.
Em defesa do direito de ir e vir
Em 29 de janeiro de 2002, poucos dias após a posse de Moraes como titular da pasta da Justiça e da Defesa da Cidadania, o folclórico (no mau sentido) prefeito Agripino Lima, de Presidente Prudente, usou tratores, máquinas e funcionários da prefeitura para bloquear a rodovia Assis Chateaubriand e impedir a entrada de uma marcha do MST na cidade. Os sem-terra, sob liderança de José Rainha, haviam saído do município de Pirapozinho de madrugada. Temia-se o conflito, mas representantes de órgãos governamentais e do Ministério Público concentravam-se mais em convencer Rainha a desistir da manifestação do que fazer o prefeito suspender o bloqueio ilegal da rodovia.
O ato tresloucado de Agripino Lima causou alvoroço e, como não poderia deixar de ser, a imprensa tratou de repercutir o assunto com o secretário da Justiça, principal interlocutor entre o governo do Estado e os movimentos de luta pela terra. Moraes condenou o bloqueio e defendeu o direito constitucional de ir e vir dos manifestantes, desde que exercido pacificamente. Em momento algum considerou a marcha “criminosa” ou mencionou uma “guerrilha urbana” do MST, como fez recentemente.
Mas, naquele momento, Fernando Henrique Cardoso ainda era o presidente e o Incra estava sob o comando do PSDB. No ano seguinte, o PT estaria no poder, Lula vestiria o boné do MST e José Rainha daria início a uma intensa mobilização de trabalhadores sem-terra no Pontal do Paranapanema. Moraes daria conta do recado?
Sem mandado, não!
Pois o segundo episódio se deu no final da tarde de 10 de setembro de 2003. Moraes presidia uma reunião do conselho curador do Itesp, no auditório do órgão, quando seu celular tocou. Era o advogado do MST, Juvelino Strozake, que, aflito, pedia intervenção urgente do secretário da Justiça para deter uma arbitrariedade: o escritório do MST em São Paulo acabara de ser cercado e invadido por uma equipe do Grupo de Operações Especiais (GOE) da polícia civil. Na época, havia sido decretada a prisão de 11 integrantes do movimento. Nenhum deles estava no escritório. Mesmo assim, os policiais se puseram a revirar móveis e apreender documentos.
Moraes pediu a Strozake para passar o telefone ao delegado que comandava a operação. Perguntou se os policiais tinham um mandado de busca e apreensão. Diante da negativa, determinou que saíssem imediatamente do escritório e devolvessem qualquer documento apreendido. Ao desligar o celular, comentou com os funcionários do Itesp, em tom de brincadeira, que o secretário de Segurança Pública, Saulo de Castro Abreu Filho, não iria gostar nada dessa intromissão em sua área.
Quem diria que, ao assumir a pasta de Abreu Filho anos depois, mandaria a polícia militar invadir uma escola sem mandado judicial?
Marketing agressivo
Não que Alexandre de Moraes tenha sido sempre equilibrado antes de se render à tentação de construir uma persona pública claramente fascista. Com poucos dias à frente da pasta da Justiça e da Defesa da Cidadania, em janeiro de 2002, protagonizou um bate-boca com Delwek Matheus, dirigente do MST, diante dos cinegrafistas das principais emissoras de televisão. Para desespero de sua assessoria, ele interrompera a entrevista de Matheus e o desmentira sobre os termos do acordo recém-firmado para a reintegração de posse de duas fazendas ocupadas pelo movimento.
Quando a assessora de imprensa da Secretaria, a jornalista Silvia Jabur, ponderou que aquele tipo de atitude não ficava bem para um secretário de governo, ouviu o seguinte: “Do meu marketing pessoal, cuido eu!” Não imaginava, então, que seu assessorado sairia um dia, de facão em punho, a cortar pés de maconha sob a mira das câmeras de TV.
Esse é Alexandre de Moraes. O estudo da Constituição Federal poderia ter lhe trazido reconhecimento, talvez até notoriedade, mas não poder. Buscou-o, então, por outros meios. E, no caminho escolhido por ele, os direitos constitucionais não passam de obstáculos a serem vencidos.
Na transição entre o secretário da Justiça de 2002 e o ministro da Justiça de 2016, ficaram para trás, além de 14 anos e todo o cabelo, os últimos pudores de constitucionalista. Assim como celebridades à beira do ostracismo agarraram-se a discursos reacionários para não despencar no esquecimento (cada vez mais merecido), Alexandre de Moraes adotou a brutalidade pura e simples para conquistar um lugar ao sol na política. Até agora, está dando certo para ele. Azar o nosso.
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