Conhecido pela ferocidade permanente exibida nos interrogatórios televisivos das CPIs do Congresso, o deputado Onyx Lorenzoni (DEM-RS) exibia mansidão de cordeiro ao final de um encontro com lideranças do Ministério Público Federal, segunda-feira passada. Relator na Câmara do projeto de 10 medidas contra corrupção apresentadas pelo Ministério Público em ambiente de salvação da lavoura ética, Lorenzoni chegou a receber merecidos aplausos quando anunciou a decisão de incluir no mesmo pacote medidas que punem crimes de responsabilidade de juízes, procuradores e promotores, uma velha ferida da Justiça brasileira, motivo de duas Propostas de Emenda Constitucional em debate em Brasília. A iniciativa durou pouco. Na segunda-feira, após conversa na presença de lideranças do MP, inclusive de Deltan Dallagnol, chefe da força-tarefa que investiga a Lava Jato, o deputado anunciou que desistia dos artigos que punem crimes das autoridades que deveriam combatê-los.
- Estamos afastando toda e qualquer remota referência à tentativa de constrangimento às investigações que estão sendo feitas. As medidas que vamos aprovar não podem nem de longe estar ao lado de medidas que possam passar a impressão de cerceamento de investigadores e juízes, explicou Lorenzoni.
A decisão é lamentável, pelo aspecto superficial ("passar a impressão") e pelo substancial. As denúncias contra juízes, procuradores e promotores são um dado relevante da vida brasileira e merecem um tratamento à altura, à margem de conveniências políticas que apenas ajudam a encobrir atividades criminosas. Isso acontece - essencialmente - porque os integrantes do Judiciário são falíveis, como todo ser humano - médicos, advogados, políticos, jogadores de futebol e também jornalistas.
A criação de uma casta acima do bem e do mal, com poderes para julgar, punir e mandar prender, decisões preciosas em toda civilização que aprendeu o valor da liberdade, é um passo inaceitável rumo à consolidação de um regime de exceção. O esforço para proteger um debate com o manto de popularidade da Lava Jato, em grande parte construído pela cobertura adulatoria da mídia grande, é um truque publicitário, que apenas impede uma discussão equilibrada.
A noção de que a aprovação de leis contra crimes de responsabilidade no Judiciário pode se tornar uma "tentativa de constrangimento" ou mesmo "dar a impressão de cerceamento de investigadores e juízes" não obedece a uma lógica aceitável. Ou não passa de uma vergonhosa confissão de culpa e aí é bom dar nomes e endereços. Ou se quer convencer o país de que métodos ilícitos de investigação são inevitáveis, não há nada que se possa fazer contra eles e o melhor é ir se acostumando. Sabemos aonde essa lógica costuma levar.
Em 2008, julgando um caso anterior a Lava Jato, mas quando era possível enxergar as grandes linhas do debate já em curso, o ministro Eros Grau deixou uma definição precisa: "Pior que a ditadura das fardas é a ditadura das togas, pelo crédito que dispõe na sociedade," sentenciou, com a experiência de quem chegou ao STF, nomeado por Lula, depois de conhecer a justiça da ditadura, preso e torturado como adversário do regime militar.
O combate atual do Ministério Público aos crimes de responsabilidade é um desses movimentos típicos de quem atua em causa própria.
No pacote enviado ao Congresso, consta pelo menos uma medida abertamente contrária aos direitos fundamentais: a aceitação de provas ilícitas, garantia incluída na Constituição de 1988 tanto para impedir a tortura dos interrogatórios, como a violação da privacidade do cidadão, como escutas telefônicas clandestinas.
Num projeto cuja finalidade é autorizar novos avanços dos poderes de investigação do Estado sobre o cidadão, que sempre trazem o risco de ataque a direitos reconhecidos, a definição de crimes de responsabilidade de juízes, promotores e promotores é mais do que uma opção descartável. Equivale defesa de um sistema pesos e contrapesos que distinguem uma democracia de uma ditadura.
Para dar um exemplo entre vários. Troféu estratégico da Operação Lava Jato, a perseguição política-jurídica a Luiz Inácio Lula da Silva tem como principal matéria prima uma investigação do Ministério Público de São Paulo, responsável pelas denúncias em torno do triplex do Guarujá e o Sítio de Atibaia. Em fevereiro, em voto unânime, o Conselho Nacional do Ministério Público realizou um debate antológico sobre as acusações contra Lula. Empregando uma linguagem jurídica normalmente utilizada para apontar um viés político, o CNMP deixou claro aquilo que era fácil adivinhar: que a investigação contra Lula já nascera contaminada pelo "casuísmo" empregado na escolha do procurador responsável pelo caso. Com base no voto do relator Valter Shuenquener, que é juiz, a decisão do Conselho assume que: "o princípio do promotor natural impõe que todo cidadão tem o direito de ser investigado e acusado por um órgão independente do MP escolhido segundo prévios critérios abstratos e não casuisticamente."
Se houvesse uma lei de crime de responsabilidade, seria menos complicado rever a investigação e refazer seus passos, como seria correto depois que o organismo responsável para julgar a atuação do MP concluiu que não havia ocorrido uma apuração isenta. Sem essa lei, foi fácil encerrar o debate através de um jogo de aparências, algo que, parodiando o empreiteiro Ricardo Pessoa, um dos delatores da Lava Jato, um observador abusado poderia chamar de "clube do Ministério Público." Numa decisão cujo resultado não punia nem manchava a reputação de nenhum responsável, decidiu-se perdoar o que havia sido feito até ali, cobrando apenas que o princípio basilar do promotor natural fosse respeitado dali para a frente, em outros casos.
Vamos combinar que era uma recomendação dispensável, já que este conceito, que remete ao chamado juiz natural, está presente inclusive na primeira de nossas constituições, sob Pedro I. Quanto a Lula, o principal interessado, a vítima do casuísmo, nada se fez a título de reparação. A perseguição prosseguiu e até se intensificou, como se nada de grave tivesse sido descoberto, numa caçada cujo lance mais recente envolveu a piscina do Alvorada, aquela onde Michel Temer, familiares e convidados tem direito a mergulhar sob o sol inclemente de Brasília mas que pode ser a nova tentativa de incriminar o presidente.
Vivemos num país onde mais de 40 juízes foram afastados de suas funções após variadas denúncias de corrupção, além de outros delitos. Salvo escândalos de envergadura, como o de Nicolau dos Santos Neto, condenado por desvios milionários num edifício do TSE em São Paulo, a punição envolve a perda das funções e aposentadoria com vencimentos integrais. Há casos notáveis de abuso. Em 2014, no aeroporto de São Luiz, o juiz Marcelo Baldochi, deu voz de prisão aos funcionários da TAM que se recusaram a permitir seu embarque num voo já encerrado. Em 2015, o magistrado Flavio Ribeiro de Souza assumiu o volante de um Porsche, propriedade do empresário Eike Batista, para fazer o trajeto de casa para o trabalho. Perdeu o cargo mas o pedido de prisão foi negado.
Demitido de suas funções em 2010 o procurador-geral de Justiça do DF, Leonardo Bandarra, acabou acusado nas investigações sobre o mensalão do DEM. No mesmo caso, a promotora Debora Guerner também foi acusada e afastada. Conforme o jornal Correio Braziliense de 03/05/2015, "investigação dos procuradores concluiu que, entre outros crimes, Bandarra e Deborah Guerner tentaram extorquir R$ 2 milhões do ex-governador José Roberto Arruda. Eles teriam ainda vazado informações sigilosas para favorecer o ex-secretário de Relações Institucionais Durval Barbosa, delator do esquema de corrupção." (03/05/2015). Em três anos, Bandarra embolsou R$ 830.329,05 a título de vencimentos. A promotora Debora recebeu R$ 666. 434,50.
Em 2004, investigando a atuação de uma gigantesco cartel de drogas de origem mexicana no Paraná, responsável por faturamento anual de US$ 200 milhões, a Polícia Federal encontrou a ação cúmplice de investigadores policiais. Conforme a PF, um dos chefes locais do tráfico, Lucio Rueda Bustos, conhecido como "Mexicano", foi levado a uma sala da Promotoria de Investigações Criminais (PIC), e ali acabou negociando um suborno de R$ 1 milhão ("Tribuna do Paraná, 28/12/2011). Pai de um dos policiais condenados por corrupção passiva, usurpação de função e lavagem de dinheiro, o promotor Dartagnan Cadilhe Abilhoa era o responsável pela PIC, na época. Acabou colocado em disponibilidade pelo Conselho Nacional do Ministério Público, aposentando-se com vencimentos proporcionais, pela máxima prevista pela Lei Orgânica do MP-PR.
Uma das teorias mais sedutoras para justificar a adaptação da Justiça ao Ibope de cada momento político diz que "situações excepcionais exigem uma justiça excepcional." Assim, tempos de Lava Jato exigiriam uma Justiça de Lava Jato, certo? Errado. Esta fórmula, construída pelo jurista alemão Carl Smith, o criador da jurisprudência de Adolf Hitler, transformou a democrática República de Weimar em 12 anos de ditadura.
Causa preocupação, nessa situação, que o principal adversário da lei de crimes de responsabilidade, Deltan Dallagnol, seja um assumido admirador da Justiça de Hong Kong, uma antiga colônia britânica recuperada pela China Comunista, até uma das mais cruéis ditaduras do planeta. Em artigo recente, Dallagnol repetiu a ideia que o Brasil poderia imitar os métodos de Hong Kong no combate a corrupção. É um exemplo infeliz. Embora desfrute de uma administração especial em relação ao país, em Hong Kong a população sequer tem o direito de escolher seus governantes pelo voto.
- Estamos afastando toda e qualquer remota referência à tentativa de constrangimento às investigações que estão sendo feitas. As medidas que vamos aprovar não podem nem de longe estar ao lado de medidas que possam passar a impressão de cerceamento de investigadores e juízes, explicou Lorenzoni.
A decisão é lamentável, pelo aspecto superficial ("passar a impressão") e pelo substancial. As denúncias contra juízes, procuradores e promotores são um dado relevante da vida brasileira e merecem um tratamento à altura, à margem de conveniências políticas que apenas ajudam a encobrir atividades criminosas. Isso acontece - essencialmente - porque os integrantes do Judiciário são falíveis, como todo ser humano - médicos, advogados, políticos, jogadores de futebol e também jornalistas.
A criação de uma casta acima do bem e do mal, com poderes para julgar, punir e mandar prender, decisões preciosas em toda civilização que aprendeu o valor da liberdade, é um passo inaceitável rumo à consolidação de um regime de exceção. O esforço para proteger um debate com o manto de popularidade da Lava Jato, em grande parte construído pela cobertura adulatoria da mídia grande, é um truque publicitário, que apenas impede uma discussão equilibrada.
A noção de que a aprovação de leis contra crimes de responsabilidade no Judiciário pode se tornar uma "tentativa de constrangimento" ou mesmo "dar a impressão de cerceamento de investigadores e juízes" não obedece a uma lógica aceitável. Ou não passa de uma vergonhosa confissão de culpa e aí é bom dar nomes e endereços. Ou se quer convencer o país de que métodos ilícitos de investigação são inevitáveis, não há nada que se possa fazer contra eles e o melhor é ir se acostumando. Sabemos aonde essa lógica costuma levar.
Em 2008, julgando um caso anterior a Lava Jato, mas quando era possível enxergar as grandes linhas do debate já em curso, o ministro Eros Grau deixou uma definição precisa: "Pior que a ditadura das fardas é a ditadura das togas, pelo crédito que dispõe na sociedade," sentenciou, com a experiência de quem chegou ao STF, nomeado por Lula, depois de conhecer a justiça da ditadura, preso e torturado como adversário do regime militar.
O combate atual do Ministério Público aos crimes de responsabilidade é um desses movimentos típicos de quem atua em causa própria.
No pacote enviado ao Congresso, consta pelo menos uma medida abertamente contrária aos direitos fundamentais: a aceitação de provas ilícitas, garantia incluída na Constituição de 1988 tanto para impedir a tortura dos interrogatórios, como a violação da privacidade do cidadão, como escutas telefônicas clandestinas.
Num projeto cuja finalidade é autorizar novos avanços dos poderes de investigação do Estado sobre o cidadão, que sempre trazem o risco de ataque a direitos reconhecidos, a definição de crimes de responsabilidade de juízes, promotores e promotores é mais do que uma opção descartável. Equivale defesa de um sistema pesos e contrapesos que distinguem uma democracia de uma ditadura.
Para dar um exemplo entre vários. Troféu estratégico da Operação Lava Jato, a perseguição política-jurídica a Luiz Inácio Lula da Silva tem como principal matéria prima uma investigação do Ministério Público de São Paulo, responsável pelas denúncias em torno do triplex do Guarujá e o Sítio de Atibaia. Em fevereiro, em voto unânime, o Conselho Nacional do Ministério Público realizou um debate antológico sobre as acusações contra Lula. Empregando uma linguagem jurídica normalmente utilizada para apontar um viés político, o CNMP deixou claro aquilo que era fácil adivinhar: que a investigação contra Lula já nascera contaminada pelo "casuísmo" empregado na escolha do procurador responsável pelo caso. Com base no voto do relator Valter Shuenquener, que é juiz, a decisão do Conselho assume que: "o princípio do promotor natural impõe que todo cidadão tem o direito de ser investigado e acusado por um órgão independente do MP escolhido segundo prévios critérios abstratos e não casuisticamente."
Se houvesse uma lei de crime de responsabilidade, seria menos complicado rever a investigação e refazer seus passos, como seria correto depois que o organismo responsável para julgar a atuação do MP concluiu que não havia ocorrido uma apuração isenta. Sem essa lei, foi fácil encerrar o debate através de um jogo de aparências, algo que, parodiando o empreiteiro Ricardo Pessoa, um dos delatores da Lava Jato, um observador abusado poderia chamar de "clube do Ministério Público." Numa decisão cujo resultado não punia nem manchava a reputação de nenhum responsável, decidiu-se perdoar o que havia sido feito até ali, cobrando apenas que o princípio basilar do promotor natural fosse respeitado dali para a frente, em outros casos.
Vamos combinar que era uma recomendação dispensável, já que este conceito, que remete ao chamado juiz natural, está presente inclusive na primeira de nossas constituições, sob Pedro I. Quanto a Lula, o principal interessado, a vítima do casuísmo, nada se fez a título de reparação. A perseguição prosseguiu e até se intensificou, como se nada de grave tivesse sido descoberto, numa caçada cujo lance mais recente envolveu a piscina do Alvorada, aquela onde Michel Temer, familiares e convidados tem direito a mergulhar sob o sol inclemente de Brasília mas que pode ser a nova tentativa de incriminar o presidente.
Vivemos num país onde mais de 40 juízes foram afastados de suas funções após variadas denúncias de corrupção, além de outros delitos. Salvo escândalos de envergadura, como o de Nicolau dos Santos Neto, condenado por desvios milionários num edifício do TSE em São Paulo, a punição envolve a perda das funções e aposentadoria com vencimentos integrais. Há casos notáveis de abuso. Em 2014, no aeroporto de São Luiz, o juiz Marcelo Baldochi, deu voz de prisão aos funcionários da TAM que se recusaram a permitir seu embarque num voo já encerrado. Em 2015, o magistrado Flavio Ribeiro de Souza assumiu o volante de um Porsche, propriedade do empresário Eike Batista, para fazer o trajeto de casa para o trabalho. Perdeu o cargo mas o pedido de prisão foi negado.
Demitido de suas funções em 2010 o procurador-geral de Justiça do DF, Leonardo Bandarra, acabou acusado nas investigações sobre o mensalão do DEM. No mesmo caso, a promotora Debora Guerner também foi acusada e afastada. Conforme o jornal Correio Braziliense de 03/05/2015, "investigação dos procuradores concluiu que, entre outros crimes, Bandarra e Deborah Guerner tentaram extorquir R$ 2 milhões do ex-governador José Roberto Arruda. Eles teriam ainda vazado informações sigilosas para favorecer o ex-secretário de Relações Institucionais Durval Barbosa, delator do esquema de corrupção." (03/05/2015). Em três anos, Bandarra embolsou R$ 830.329,05 a título de vencimentos. A promotora Debora recebeu R$ 666. 434,50.
Em 2004, investigando a atuação de uma gigantesco cartel de drogas de origem mexicana no Paraná, responsável por faturamento anual de US$ 200 milhões, a Polícia Federal encontrou a ação cúmplice de investigadores policiais. Conforme a PF, um dos chefes locais do tráfico, Lucio Rueda Bustos, conhecido como "Mexicano", foi levado a uma sala da Promotoria de Investigações Criminais (PIC), e ali acabou negociando um suborno de R$ 1 milhão ("Tribuna do Paraná, 28/12/2011). Pai de um dos policiais condenados por corrupção passiva, usurpação de função e lavagem de dinheiro, o promotor Dartagnan Cadilhe Abilhoa era o responsável pela PIC, na época. Acabou colocado em disponibilidade pelo Conselho Nacional do Ministério Público, aposentando-se com vencimentos proporcionais, pela máxima prevista pela Lei Orgânica do MP-PR.
Uma das teorias mais sedutoras para justificar a adaptação da Justiça ao Ibope de cada momento político diz que "situações excepcionais exigem uma justiça excepcional." Assim, tempos de Lava Jato exigiriam uma Justiça de Lava Jato, certo? Errado. Esta fórmula, construída pelo jurista alemão Carl Smith, o criador da jurisprudência de Adolf Hitler, transformou a democrática República de Weimar em 12 anos de ditadura.
Causa preocupação, nessa situação, que o principal adversário da lei de crimes de responsabilidade, Deltan Dallagnol, seja um assumido admirador da Justiça de Hong Kong, uma antiga colônia britânica recuperada pela China Comunista, até uma das mais cruéis ditaduras do planeta. Em artigo recente, Dallagnol repetiu a ideia que o Brasil poderia imitar os métodos de Hong Kong no combate a corrupção. É um exemplo infeliz. Embora desfrute de uma administração especial em relação ao país, em Hong Kong a população sequer tem o direito de escolher seus governantes pelo voto.
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