Por Paulo Moreira Leite, em seu blog:
Num país indignado com a perseguição a Lula, o processo que levou à cassação de Juscelino Kubitschek, meio século atrás, merece uma reflexão. Políticos diferentes pela origem de classe e pela visão de mundo, Lula e JK possuíam importantes traços em comum, a começar pelo apego aos ideais desenvolvimentistas. Tanto Lula como JK foram os políticos mais populares de seu período histórico e enfrentaram um ambiente de caça política quando exibiam a condição de candidatos favoritos à uma eleição presidencial já em seu horizonte político. Se o destino de Lula permanece uma incógnita, a perda dos direitos políticos de JK, em junho de 1964, dois meses depois do golpe militar de abril, eliminou um dos principais obstáculos à consolidação da ditadura nascida no 1 de abril de 1964, abrindo caminho para novas cassações e à consolidação de um regime de força que se prolongou por duas décadas.
Cinquenta e dois anos depois do golpe de 1 de abril de 1964, é possível reconhecer curiosas semelhanças entre o esforço dos generais e civis que se mobilizaram para consolidar a ditadura após a queda de João Goulart e o trabalho atual das forças que articularam a queda de Dilma, consumada em 31 de agosto, para cimentar um regime de exceção. Um ponto em comum dos dois processos se encontra no destino oferecido aos dois políticos que, em 1964 e em 2016, encarnavam a resistência em nome da democracia e das garantias constitucionais: Juscelino Kubitschek e Luiz Inácio Lula da Silva, os dois políticos mais populares de seu tempo.
Candidato oficial a presidente, lançado em convenção o do PSD, seu partido, dias antes do golpe, JK teve o mandato cassado três meses e 8 dias depois da queda de Goulart. Marcada para 1965, data que parecia inquestionável aos olhos da maioria dos analistas políticos da época, a primeira eleição presidencial só iria ocorrer em 1989. Depois que Goulart e Brizola partiram para o exílio e Miguel Arraes foi preso, ao se recusar a renunciar a um governo que havia recebido pelo voto popular, mais tarde exilando-se na Argélia, JK tornou-se alvo imediato do Comando Supremo Revolucionário. Embora Castello Branco tenha lhe pedido -- e obtido -- apoio nos momentos iniciais do novo regime, a exclusão de JK da cena política estava na ordem do dia desde o primeiro momento.
Partidário de uma política de desenvolvimento que estimulava a industrialização -- projeto combatido pelo conservadorismo medular de seus adversários --, arquiteto de uma aliança política que incluía lideranças operárias e o Partido Comunista, então na ilegalidade, Juscelino era um velho inimigo das forças que derrubaram João Goulart. Elas haviam tentado impedir sua posse em 1955 e tumultuaram o mandato obtido nas urnas através de dois levantes militares fracassados. Em 1961, foi solidário com João Goulart, quando os ministros militares tentaram impedir a posse depois da renúncia de Jânio Quadros.
Alvo de frequentes denúncias de corrupção, o desenvolvimento econômico ocorrido no país entre 1956-1961 garantiu alta popularidade a JK. Semanas antes da queda de Goulart, quando anunciou a candidatura ao pleito presidencial que deveria realizar-se em outubro de 1965, ninguém duvidava de suas chances. Se o regime democrático tivesse sido preservado, a popularidade de JK seria vista como aquilo que era: sinal de boa saúde política. Numa ditadura em construção, era um risco.
Autora de uma obra importante sobre período, a professora Paula Beiguelman (1926-2009) lembra que a pressão militar contra Juscelino tinha como base "o argumento de que sempre mantivera aberto o caminho para uma aliança eleitoral com João Goulart; sua candidatura (e por isso deveria ser descartada) seria o instrumento através do qual correntes proscritas poderiam retornar ao comando da vida pública." ("O Pingo de Azeite -- Estudo sobre a instauração da ditadura").
A campanha aberta pela cassação de JK, liderada por Costa e Silva, a principal liderança do golpe e pretendente assumido à presidência da República desde o primeiro dia, enfrentava uma dificuldade essencial.
Ao contrário das demais lideranças civis do período, JK não poderia ser encaixado na fantasia favorita do momento, "subversivo." Tinha uma visão política moderada e uma história baseada em acordos e concessões, boa parte justificáveis, outra de caráter imprudente e mesmo temerário.
Em 1958, JK ignorou conselhos de aliados fiéis que possuía nos quartéis, a começar pelo ministro da Guerra Henrique Lott, que havia assegurado sua posse. Nessa situação, usou as atribuições de presidente da República para garantir a promoção de Castello Branco a general de divisão. Embora não fosse possível prevenir todas as consequências naquele momento, foi uma decisão com nefastas consequências para o futuro do país, de Castello e dele próprio.
Pelo regimento militar, Castello Branco -- já um admirador assumido de Carlos Lacerda, um dos líderes da conspiração para impedir a posse do próprio Juscelino três anos antes -- seria forçado a pedir passagem para a reserva se não tivesse sido promovido. Aposentado, deixaria de ser personagem relevante nas articulações políticas dos anos seguintes, inclusive o golpe de 64. JK também assinou a promoção de Olímpio Mourão e Silva, o general que, a partir de Juiz de Fora, realizou os primeiros movimentos para depor João Goulart.
Dias depois da queda de Jango, JK chegou a reunir-se com o próprio Castello Branco, num apartamento no Rio de Janeiro, quando garantiu apoio na votação indireta para a escolha do general que iria assumir o governo. presidente A candidatura de Castello envolvia uma dupla ilegalidade. A primeira era óbvia pela origem -- a usurpação do mandato constitucional de Jango, deposto sem bases legais. A segunda esbarrava num veto constitucional. O artigo 139 da Constituição exigia que oficiais em função de chefe de Estado Maior, como Castello, tivessem renunciado ao posto com pelo menos três meses de antecedência para ter o direito de se candidatar a presidência da República ou mesmo a vice-presidente. Sem isso, eram considerados inelegíveis -- numa exigência que traduzia a vontade de manter a influencia militar longe dos assuntos de governo. No livro "Juscelino Kubitschek", que oferece um bom relato sobre a pressão militar contra JK, Ronaldo Costa Couto descreve um encontro onde o ex-presidente foi tratado com frieza e distanciamento, embora aguardasse uma manifestação de gratidão pela promoção de 1958. Mesmo assim, Juscelino não só concordou em dar apoio a Castello, mas saiu em busca de novos votos. Chegou a solicitar o voto de Tancredo Neves, mas este recusou.
Maior bancada do Congresso, o apoio do PSD ajudou a garantir uma vitória tranquila para Castello: 361 votos a favor, 72 abstenções, 5 votos para outros candidatos. Para limpar o terreno para a candidatura ilegal de Castello, o Comando Supremo da Revolução baixou um ato institucional número 1 no qual, entre várias providências, estabelecia que, para aquela eleição, "não haverá inelegibilidades."
Um dos mais influentes líderes do PSD, que era a maior bancada do Congresso e poderia ter desestabilizado a votação, JK moveu-se por um cálculo que parecia lógico mas estava errado -- proteger a própria candidatura, que parecia longe de qualquer ameaça em 11 de abril de 64. Detalhando o diálogo entre o senador e o candidato a presidente, o jornalista Carlos Heitor Cony escreveu que "Castello ouviu as condições impostas por JK e respondeu que dava sua palavra de honra, pessoal e militar, de que respeitaria o calendário eleitoral e faria o Brasil retornar brevemente ao primado da democracia". Para Cony, neste julgamento Juscelino cometeu o maior erro de sua carreira de homem público.
Na verdade, não era a candidatura de JK que estava em debate -- mas uma questão anterior, seus direitos políticos. Diante da incapacidade de uma condenação por subversão, procurou-se o atalho da corrupção.
Um mês depois da votação favorável a Castello Branco, o cerco se fechava com a produção de um dossiê preparado por uma equipe de 60 oficiais, que levantou sua vida pelo avesso. Vasculhou a compra de um carro importado para dona Sarah, denunciou compra de votos em troca de apoio do Partido Comunista, gastos sem controle na construção de Brasília, e até uma cirurgia de apendicite, décadas atrás, num hospital de Belo Horizonte. Sentindo a corda apertar, em 25 de maio, JK foi a tribuna para denunciar "o processo terrorista" empregado pelo regime. Num pronunciamento histórico, disse: "não recuarei em hipótese alguma. Não me intimidarei. Não deixarei de lutar, como um homem cuja força repousa apenas na identificação com ideias de ponderável parte da opinião nacional ".
Em 8 de junho, Juscelino foi cassado, sem direito de apresentar sua defesa. A consistência do dossiê contra ele era tão frágil que nem Roberto Campos -- o principal cérebro econômico da nova ordem, homem de ligação com o governo norte americano e interlocutor frequente nos debates num Congresso que era pressionado a aprovar um pacote de medidas que revogavam a política econômica anterior -- ficou convencido. Campos recusou-se a votar a a favor da medida. Crítico do governo Juscelino, denunciava o que chamava de "irresponsabilidade financeira" da gestão JK. Mas não encontrou no dossiê um único crime para cassar o mandato. "A base documental me pareceu insatisfatória para a gravidade das penas," revela em suas memórias. Em vez de dar o voto contra JK, como era esperado, colocou o cargo a disposição de Castello, que apenas pediu que ficasse no ministério e mantivesse sua opinião em segredo. "Seu voto deve ficar confidencial," disse-lhe, construindo uma unidade de fachada. "O ministério deve assumir a responsabilidade coletiva," explicou.
A pressão contra os direitos de JK era enorme entre as vozes que operavam as decisões do poder de Estado a partir de 1 de abril. Líder real do movimento militar, Costa Silva batalhava para cassar JK aonde quer que encontrasse quem tivesse disposição para ouvir seus argumentos -- inclusive em conversas indiscretas, presenciadas por autoridades que gostavam de transmitir inconfidências a jornalistas.
A opinião de Costa e Silva era partilhada pela maioria dos militares que haviam liderado a conspiração contra Jango, e não por acaso chamavam o golpe de "revolução". Também era assumida por civis ligados ao golpe, que reconheciam nele um concorrente temível na eleição de 1965 -- a ser disputada num ambiente de crescimento baixo e desemprego alto, obviamente favorável a oposição. Cassar JK não era apenas uma decisão abusiva. Era uma necessidade da nova ordem.
Num erro típico de quem prefere fechar os olhos para convicções e compromissos reais de quem comandava a situação, a fileira civil de golpistas imaginava que seu candidato, Carlos Lacerda, seria poupado. Também acreditava que o calendário eleitoral seria respeitado.
Na realidade, a cassação de Juscelino removeu o último obstáculo para a consolidação da ditadura como um poder à margem do voto popular. Os meses seguintes foram cenário de um avanço de medidas autoritária, inaceitáveis. Poucos meses depois ocorriam as primeiras denúncias sistemáticas de tortura de presos políticos. Embora a Constituição proibisse que parlamentares fossem chamados a prestar depoimento na condição de acusados, os interrogatórios no DOPS tornaram-se rotina. O ato institucional que instituiu o novo regime havia dado um prazo de seis meses para a investigação de contra cidadãos suspeitos. Mas o prazo venceu e os inquéritos de natureza política prosseguiram.
A exclusão política de JK atendeu a agenda do comando militar, interessado em construir seu próprio poder e dar posse a Costa e Silva. Este já tinha uma cadeira reservada no terceiro andar do Planalto desde o primeiro dia - e só não emplacou a presidência logo de saída em consideração a um numeroso contingente de políticos e empresários que não haviam se dado conta de que, após o golpe, o eixo do poder havia mudado de lugar e em vez de girar em torno das urnas, dançava conforme as baionetas e tanques dos quartéis.
Como lembra Paula Beiguelman, naquele período inicial "o grupo prestes a empalmar o poder" empregou a "tática de autoproclamar-se moderado. Não, não pretendia atingir o Congresso nem as liberdades públicas. Apenas necessitava de um aval 'jurídico' que lhe permitisse praticar uma cirurgia que a todos deveria parecer 'necessária', apesar de desagradável." Em 22 de julho, pouco mais de 100 dias depois do golpe, o Congresso aprovou por 205 votos a favor, 96 conta, uma PEC que prorrogava o mandato de Castello -- originalmente de Jango -- até 15 de março de 1967, dando ao general-presidente um mandato mais longo do que o usufruído por seu antecessor, derrubado pelo golpe. Numa coreografia patética, os pretendentes a presidência se mantiveram em atividade, como se o pleito fosse se realizar. A última eleição direta, para determinados governos estaduais, ocorreu em 1965. Mesmo assim, foi um pleito tumultuado.
Monitorados pelos senhores da situação, que já possuía um SNI estruturado para seguir seus movimentos, os primeiros candidatos foram impedidos de concorrer, com base em regras sob encomenda para garantir a escolha de nomes de confiança. Em Minas Gerais, o empresário Sebastião Paes de Almeida, que era amigo de JK, não pode entrar na disputa. Acabou substituído por Israel Pinheiro, considerado mais confiável. Negrão de Lima, candidato ao governo na Guanabara teve o direito de entrar na disputa depois que outros dois nomes foram eliminados como suspeitos. Um deles, o marechal Henrique Lott, ficou de fora depois que se criou -- por casuísmo -- a exigência de residir há pelo menos quatro anos no domicílio eleitoral onde iria concorrer. A campanha de Negrão de Lima possuía uma agenda dupla. Ao mesmo que percorria a Guanabara para pedir votos, era convocado de modo permanente para responder aos IPMs iniciados contra ele por coronéis do Exército, inclusive para apurar alianças subversivas realizadas em 1955, isto é, dez anos antes. "A continuada convocação de Negrão de Lima visava convencê-lo a desistir,"observa Paula Beiguelman.
Apesar das pressões, os dois concorrentes oposicionistas venceram as eleições no Rio e em Minas Gerais, demonstrando um regime cada vez mais isolado. Em novas manobras institucionais, as eleições para governador, em outros estados, se tornaram indiretas. Se as diretas para presidente só seriam restabelecidas em 1989, as diretas para governador foram realizadas em 1982.
Num país indignado com a perseguição a Lula, o processo que levou à cassação de Juscelino Kubitschek, meio século atrás, merece uma reflexão. Políticos diferentes pela origem de classe e pela visão de mundo, Lula e JK possuíam importantes traços em comum, a começar pelo apego aos ideais desenvolvimentistas. Tanto Lula como JK foram os políticos mais populares de seu período histórico e enfrentaram um ambiente de caça política quando exibiam a condição de candidatos favoritos à uma eleição presidencial já em seu horizonte político. Se o destino de Lula permanece uma incógnita, a perda dos direitos políticos de JK, em junho de 1964, dois meses depois do golpe militar de abril, eliminou um dos principais obstáculos à consolidação da ditadura nascida no 1 de abril de 1964, abrindo caminho para novas cassações e à consolidação de um regime de força que se prolongou por duas décadas.
Cinquenta e dois anos depois do golpe de 1 de abril de 1964, é possível reconhecer curiosas semelhanças entre o esforço dos generais e civis que se mobilizaram para consolidar a ditadura após a queda de João Goulart e o trabalho atual das forças que articularam a queda de Dilma, consumada em 31 de agosto, para cimentar um regime de exceção. Um ponto em comum dos dois processos se encontra no destino oferecido aos dois políticos que, em 1964 e em 2016, encarnavam a resistência em nome da democracia e das garantias constitucionais: Juscelino Kubitschek e Luiz Inácio Lula da Silva, os dois políticos mais populares de seu tempo.
Candidato oficial a presidente, lançado em convenção o do PSD, seu partido, dias antes do golpe, JK teve o mandato cassado três meses e 8 dias depois da queda de Goulart. Marcada para 1965, data que parecia inquestionável aos olhos da maioria dos analistas políticos da época, a primeira eleição presidencial só iria ocorrer em 1989. Depois que Goulart e Brizola partiram para o exílio e Miguel Arraes foi preso, ao se recusar a renunciar a um governo que havia recebido pelo voto popular, mais tarde exilando-se na Argélia, JK tornou-se alvo imediato do Comando Supremo Revolucionário. Embora Castello Branco tenha lhe pedido -- e obtido -- apoio nos momentos iniciais do novo regime, a exclusão de JK da cena política estava na ordem do dia desde o primeiro momento.
Partidário de uma política de desenvolvimento que estimulava a industrialização -- projeto combatido pelo conservadorismo medular de seus adversários --, arquiteto de uma aliança política que incluía lideranças operárias e o Partido Comunista, então na ilegalidade, Juscelino era um velho inimigo das forças que derrubaram João Goulart. Elas haviam tentado impedir sua posse em 1955 e tumultuaram o mandato obtido nas urnas através de dois levantes militares fracassados. Em 1961, foi solidário com João Goulart, quando os ministros militares tentaram impedir a posse depois da renúncia de Jânio Quadros.
Alvo de frequentes denúncias de corrupção, o desenvolvimento econômico ocorrido no país entre 1956-1961 garantiu alta popularidade a JK. Semanas antes da queda de Goulart, quando anunciou a candidatura ao pleito presidencial que deveria realizar-se em outubro de 1965, ninguém duvidava de suas chances. Se o regime democrático tivesse sido preservado, a popularidade de JK seria vista como aquilo que era: sinal de boa saúde política. Numa ditadura em construção, era um risco.
Autora de uma obra importante sobre período, a professora Paula Beiguelman (1926-2009) lembra que a pressão militar contra Juscelino tinha como base "o argumento de que sempre mantivera aberto o caminho para uma aliança eleitoral com João Goulart; sua candidatura (e por isso deveria ser descartada) seria o instrumento através do qual correntes proscritas poderiam retornar ao comando da vida pública." ("O Pingo de Azeite -- Estudo sobre a instauração da ditadura").
A campanha aberta pela cassação de JK, liderada por Costa e Silva, a principal liderança do golpe e pretendente assumido à presidência da República desde o primeiro dia, enfrentava uma dificuldade essencial.
Ao contrário das demais lideranças civis do período, JK não poderia ser encaixado na fantasia favorita do momento, "subversivo." Tinha uma visão política moderada e uma história baseada em acordos e concessões, boa parte justificáveis, outra de caráter imprudente e mesmo temerário.
Em 1958, JK ignorou conselhos de aliados fiéis que possuía nos quartéis, a começar pelo ministro da Guerra Henrique Lott, que havia assegurado sua posse. Nessa situação, usou as atribuições de presidente da República para garantir a promoção de Castello Branco a general de divisão. Embora não fosse possível prevenir todas as consequências naquele momento, foi uma decisão com nefastas consequências para o futuro do país, de Castello e dele próprio.
Pelo regimento militar, Castello Branco -- já um admirador assumido de Carlos Lacerda, um dos líderes da conspiração para impedir a posse do próprio Juscelino três anos antes -- seria forçado a pedir passagem para a reserva se não tivesse sido promovido. Aposentado, deixaria de ser personagem relevante nas articulações políticas dos anos seguintes, inclusive o golpe de 64. JK também assinou a promoção de Olímpio Mourão e Silva, o general que, a partir de Juiz de Fora, realizou os primeiros movimentos para depor João Goulart.
Dias depois da queda de Jango, JK chegou a reunir-se com o próprio Castello Branco, num apartamento no Rio de Janeiro, quando garantiu apoio na votação indireta para a escolha do general que iria assumir o governo. presidente A candidatura de Castello envolvia uma dupla ilegalidade. A primeira era óbvia pela origem -- a usurpação do mandato constitucional de Jango, deposto sem bases legais. A segunda esbarrava num veto constitucional. O artigo 139 da Constituição exigia que oficiais em função de chefe de Estado Maior, como Castello, tivessem renunciado ao posto com pelo menos três meses de antecedência para ter o direito de se candidatar a presidência da República ou mesmo a vice-presidente. Sem isso, eram considerados inelegíveis -- numa exigência que traduzia a vontade de manter a influencia militar longe dos assuntos de governo. No livro "Juscelino Kubitschek", que oferece um bom relato sobre a pressão militar contra JK, Ronaldo Costa Couto descreve um encontro onde o ex-presidente foi tratado com frieza e distanciamento, embora aguardasse uma manifestação de gratidão pela promoção de 1958. Mesmo assim, Juscelino não só concordou em dar apoio a Castello, mas saiu em busca de novos votos. Chegou a solicitar o voto de Tancredo Neves, mas este recusou.
Maior bancada do Congresso, o apoio do PSD ajudou a garantir uma vitória tranquila para Castello: 361 votos a favor, 72 abstenções, 5 votos para outros candidatos. Para limpar o terreno para a candidatura ilegal de Castello, o Comando Supremo da Revolução baixou um ato institucional número 1 no qual, entre várias providências, estabelecia que, para aquela eleição, "não haverá inelegibilidades."
Um dos mais influentes líderes do PSD, que era a maior bancada do Congresso e poderia ter desestabilizado a votação, JK moveu-se por um cálculo que parecia lógico mas estava errado -- proteger a própria candidatura, que parecia longe de qualquer ameaça em 11 de abril de 64. Detalhando o diálogo entre o senador e o candidato a presidente, o jornalista Carlos Heitor Cony escreveu que "Castello ouviu as condições impostas por JK e respondeu que dava sua palavra de honra, pessoal e militar, de que respeitaria o calendário eleitoral e faria o Brasil retornar brevemente ao primado da democracia". Para Cony, neste julgamento Juscelino cometeu o maior erro de sua carreira de homem público.
Na verdade, não era a candidatura de JK que estava em debate -- mas uma questão anterior, seus direitos políticos. Diante da incapacidade de uma condenação por subversão, procurou-se o atalho da corrupção.
Um mês depois da votação favorável a Castello Branco, o cerco se fechava com a produção de um dossiê preparado por uma equipe de 60 oficiais, que levantou sua vida pelo avesso. Vasculhou a compra de um carro importado para dona Sarah, denunciou compra de votos em troca de apoio do Partido Comunista, gastos sem controle na construção de Brasília, e até uma cirurgia de apendicite, décadas atrás, num hospital de Belo Horizonte. Sentindo a corda apertar, em 25 de maio, JK foi a tribuna para denunciar "o processo terrorista" empregado pelo regime. Num pronunciamento histórico, disse: "não recuarei em hipótese alguma. Não me intimidarei. Não deixarei de lutar, como um homem cuja força repousa apenas na identificação com ideias de ponderável parte da opinião nacional ".
Em 8 de junho, Juscelino foi cassado, sem direito de apresentar sua defesa. A consistência do dossiê contra ele era tão frágil que nem Roberto Campos -- o principal cérebro econômico da nova ordem, homem de ligação com o governo norte americano e interlocutor frequente nos debates num Congresso que era pressionado a aprovar um pacote de medidas que revogavam a política econômica anterior -- ficou convencido. Campos recusou-se a votar a a favor da medida. Crítico do governo Juscelino, denunciava o que chamava de "irresponsabilidade financeira" da gestão JK. Mas não encontrou no dossiê um único crime para cassar o mandato. "A base documental me pareceu insatisfatória para a gravidade das penas," revela em suas memórias. Em vez de dar o voto contra JK, como era esperado, colocou o cargo a disposição de Castello, que apenas pediu que ficasse no ministério e mantivesse sua opinião em segredo. "Seu voto deve ficar confidencial," disse-lhe, construindo uma unidade de fachada. "O ministério deve assumir a responsabilidade coletiva," explicou.
A pressão contra os direitos de JK era enorme entre as vozes que operavam as decisões do poder de Estado a partir de 1 de abril. Líder real do movimento militar, Costa Silva batalhava para cassar JK aonde quer que encontrasse quem tivesse disposição para ouvir seus argumentos -- inclusive em conversas indiscretas, presenciadas por autoridades que gostavam de transmitir inconfidências a jornalistas.
A opinião de Costa e Silva era partilhada pela maioria dos militares que haviam liderado a conspiração contra Jango, e não por acaso chamavam o golpe de "revolução". Também era assumida por civis ligados ao golpe, que reconheciam nele um concorrente temível na eleição de 1965 -- a ser disputada num ambiente de crescimento baixo e desemprego alto, obviamente favorável a oposição. Cassar JK não era apenas uma decisão abusiva. Era uma necessidade da nova ordem.
Num erro típico de quem prefere fechar os olhos para convicções e compromissos reais de quem comandava a situação, a fileira civil de golpistas imaginava que seu candidato, Carlos Lacerda, seria poupado. Também acreditava que o calendário eleitoral seria respeitado.
Na realidade, a cassação de Juscelino removeu o último obstáculo para a consolidação da ditadura como um poder à margem do voto popular. Os meses seguintes foram cenário de um avanço de medidas autoritária, inaceitáveis. Poucos meses depois ocorriam as primeiras denúncias sistemáticas de tortura de presos políticos. Embora a Constituição proibisse que parlamentares fossem chamados a prestar depoimento na condição de acusados, os interrogatórios no DOPS tornaram-se rotina. O ato institucional que instituiu o novo regime havia dado um prazo de seis meses para a investigação de contra cidadãos suspeitos. Mas o prazo venceu e os inquéritos de natureza política prosseguiram.
A exclusão política de JK atendeu a agenda do comando militar, interessado em construir seu próprio poder e dar posse a Costa e Silva. Este já tinha uma cadeira reservada no terceiro andar do Planalto desde o primeiro dia - e só não emplacou a presidência logo de saída em consideração a um numeroso contingente de políticos e empresários que não haviam se dado conta de que, após o golpe, o eixo do poder havia mudado de lugar e em vez de girar em torno das urnas, dançava conforme as baionetas e tanques dos quartéis.
Como lembra Paula Beiguelman, naquele período inicial "o grupo prestes a empalmar o poder" empregou a "tática de autoproclamar-se moderado. Não, não pretendia atingir o Congresso nem as liberdades públicas. Apenas necessitava de um aval 'jurídico' que lhe permitisse praticar uma cirurgia que a todos deveria parecer 'necessária', apesar de desagradável." Em 22 de julho, pouco mais de 100 dias depois do golpe, o Congresso aprovou por 205 votos a favor, 96 conta, uma PEC que prorrogava o mandato de Castello -- originalmente de Jango -- até 15 de março de 1967, dando ao general-presidente um mandato mais longo do que o usufruído por seu antecessor, derrubado pelo golpe. Numa coreografia patética, os pretendentes a presidência se mantiveram em atividade, como se o pleito fosse se realizar. A última eleição direta, para determinados governos estaduais, ocorreu em 1965. Mesmo assim, foi um pleito tumultuado.
Monitorados pelos senhores da situação, que já possuía um SNI estruturado para seguir seus movimentos, os primeiros candidatos foram impedidos de concorrer, com base em regras sob encomenda para garantir a escolha de nomes de confiança. Em Minas Gerais, o empresário Sebastião Paes de Almeida, que era amigo de JK, não pode entrar na disputa. Acabou substituído por Israel Pinheiro, considerado mais confiável. Negrão de Lima, candidato ao governo na Guanabara teve o direito de entrar na disputa depois que outros dois nomes foram eliminados como suspeitos. Um deles, o marechal Henrique Lott, ficou de fora depois que se criou -- por casuísmo -- a exigência de residir há pelo menos quatro anos no domicílio eleitoral onde iria concorrer. A campanha de Negrão de Lima possuía uma agenda dupla. Ao mesmo que percorria a Guanabara para pedir votos, era convocado de modo permanente para responder aos IPMs iniciados contra ele por coronéis do Exército, inclusive para apurar alianças subversivas realizadas em 1955, isto é, dez anos antes. "A continuada convocação de Negrão de Lima visava convencê-lo a desistir,"observa Paula Beiguelman.
Apesar das pressões, os dois concorrentes oposicionistas venceram as eleições no Rio e em Minas Gerais, demonstrando um regime cada vez mais isolado. Em novas manobras institucionais, as eleições para governador, em outros estados, se tornaram indiretas. Se as diretas para presidente só seriam restabelecidas em 1989, as diretas para governador foram realizadas em 1982.
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