Ilustração: Alfredo Martirena/Cartoon Movement |
Diante de dois péssimos candidatos, o eleitorado norte-americano, dividido ideologicamente como jamais esteve, escolheu, após campanha do mais baixo nível, aquele que lhe pareceu a negação do establishment, exatamente Donald Trump, figura heterodoxa do sistema (não fôra ele um bilionário de Walt Street), o único ‘não político’, multimilionário desde o berço, outsider na política, devedor do fisco e ao mesmo tempo defensor de menos impostos para os ricos, e militante contra a política de saúde social de seu antecessor.
O 45ª presidente norte-americano, depois de derrotar de forma avassaladora o Partido Republicano e suas lideranças mais conspícuas, impondo-se como candidato contra a vontade da máquina, fez de sua campanha uma plataforma do reacionarismo mais primário, da xenofobia e do protecionismo (uma ameaça não só à União Europeia mas a países como o Brasil, a Índia e a China, entre outros grandes exportadores).
Mas prometeu isolacionismo, o que soa como música aos ouvidos de todos, porque pode ser traduzido como menos intervencionismo político na América Latina (apesar de suas ameaças ao Mexico) e menos invasões militares no resto do mundo. A propósito, nos últimos anos de Bush e Obama, os EUA intervieram e destruíram o Iraque, a Líbia e a Síria, depois de destruírem o Afeganistão, e por essas tragédias estamos todos pagando – enquanto cada vez mais aufere lucros a miserável indústria da guerra.
De outra parte, na disputa dentro do Partido Democrata, a ex-secretária de Estado, que sempre simbolizou o continuísmo (com republicanos ou democratas) era o nome da máquina contra o senador Bernie Sanders, que representava, ele sim, o sentimento de mudança.
A vitória de Trump representa, nas circunstâncias, a derrota do neoliberalismo ortodoxo, da financeirização da economia, a derrota da mídia americana (segundo ele “desonesta e enviesada”) e da mídia mundial, como dos institutos de pesquisa em todo o globo.
Mas o presidente eleito é, ao mesmo tempo, o candidato grotesco que desmoralizou os partidos, a política, seus ritos, seus fins, sua teleologia, reduzindo-a à insignificância da inutilidade. Esse Trump, antes das eleições rejeitado por 59% do eleitorado, candidato populista de extrema-direita que nos lembra uma composição que misturasse Maluf e um Bolsonaro qualquer com uma pitada de Sílvio Santos, não é, porém, obra do acaso, fruto que é da crise política dos EUA, da crise econômica e da crise ética, e de seu sistema político; é a falência do processo eleitoral e da democracia representativa nos EUA, o esgotamento de um ciclo que se encerra sem anunciar novos tempos, senão a promessa de muita apreensão.
É a falência do sistema eleitoral, inepto, como demonstrou a eleição do Bush filho, fundada na fraude e no desrespeito à vontade majoritária, desrespeito que se repete nas pouco representativas eleições deste mês: 231 milhões de eleitores numa população de 320 milhões; 46,9% dos habilitados não votaram; 25,6% votaram em Hillary e 25,5%, em Trump.
A derrotada recebeu 250 mil votos a mais que o vencedor. É a agonia do bipartidarismo, a falência do Partido Democrata, derrotado na política e nas urnas, e a derrota do Partido Republicano, que teve se assimilar um candidato imposto de fora para dentro e com o qual não se identificou na campanha.
Mas essa eleição não pode ficar no grotesco nem pode demonizar o poder da soberania do voto, como querem analistas apressados dos dois lados do Atlântico. Como em nossa crise cabocla, é preciso considerar ingredientes tradicionais como o desemprego, a queda da renda individual, a pauperização das grandes massas (hoje, 46 milhões de norte-americanos dependem do food stamp, o ‘bolsa família’ deles) o endividamento, a moradia precária, a violência e, em país beligerante, permanentemente em guerra, o cansaço ante tantas intervenções e tantas invasões e tantas bases militares cobrindo a Terra.
Além disso, o medo em face do terrorismo difuso, o legado dos 16 anos de Bush-Obama, por seu turno a continuidade política da beligerância de Clinton, sucessor de Bush-pai, herdeiro de Nixon e Reagan, herdeiro de Johnson, herdeiro de Kennedy...
É evidente que está sob comentário fenômeno recente embora há muito anunciado – aguda guinada direitista dos EUA – e qualquer análise não passará de tentativa de antevisão, com todos os riscos inerentes. Se é possível antever o frustrado governo Hillary – preeminência do establishment, do complexo militar-industrial, dos falcões da política externa, do fortalecimento da OTAN e do crescimento das dificuldades com a Rússia e tudo o que de tudo isso é mero desdobramento –, relativamente a Trump qualquer previsão é mais insegura.
Dir-se-á, e apostamos nessa hipótese, que a complexidade do sistema político governante, com seus pesos e contrapesos que promovem o controle social e político, absorvendo as crises – o complexo militar-industrial de que nos falava Eisenhower, o Congresso, Wall Street, o Pentágono, CIA e FBI, a Suprema Corte – estaria vacinada contra aventureiros.
Mas nada disso impediu a loucura democrata no Vietnã nem a irresponsabilidade republicana no Iraque. De outra parte, Trump assume contando com o apoio (que faltou a Obama) tanto da Câmara dos Representantes quanto do Senado (o Partido Republicano renovou sua maioria em ambas as Casas) e com reais possibilidades (preencherá três vagas) de influir na composição da Suprema Corte.
Diz um comentarista nativo que Trump venceu por haver convencido o eleitorado de que era sincero, ou seja, que ele próprio acreditava em suas ideias, mais precisamente nas ideias que expunha como suas.
Ora a questão central é o fato de essas ideias impregnadas de ódio e discriminação (sinceras ou não, bem ou mal transmitidas), haverem encontrado eco nos EUA profundos: o discurso contra os latinos de um modo geral e os mexicanos de forma particular (“Quando o México envia suas pessoas [para os EUA], eles não estão mandando seus melhores [...] Eles estão trazendo drogas, crime. São estupradores. [...] Eu vou construir um grandioso muro em nossas fronteiras. E vou fazer o México pagar por ele”), o discurso contra os imigrantes de um modo geral (promete expulsar 11 milhões de imigrantes em situação irregular) mas contra os muçulmanos de um modo particular, dos deficientes, dos intelectuais, das mulheres ‘modernas’, pós-feministas e independentes, a ladainha contra aliados políticos e militares dos EUA e da OTAN em especial, as ameaças (por enquanto comerciais) à China, a quem acusa de haver deflagrado uma espécie de guerra econômica contra seu país.
Observe-se, de passagem, que a China, com um caixa de 1,244 trilhão de dólares de títulos da dívida publica dos EUA, é seu principal credor.
Como já foi observado, o problema não é Donald Trump, mas o fato de parcela considerável do eleitorado dos EUA, após quase dois anos de campanha eleitoral, se haverem convencido de que tal personagem podia ser presidente da República.
O problema não é esse personagem, mas a fragilidade do sistema democrático dos EUA que – depois de Reagan e Bush – enseja sua emergência, a partir de uma campanha fundada no ódio, na exclusão, na divisão, na segregação, na política de terra arrasada (para anunciar um novo EUA teve de primeiro decretar a derrocada do atual).
O fato objetivo, desagradável mas real, é que o novo presidente reflete uma sociedade dividida, clivada em seus valores mais profundos, falando mais alto que todos (nas eleições) os valores majoritários do americano branco classe-média, principalmente aquele que vive na América rural, a qual assegurou a Trump vitórias decisivas em Estados chamados "pêndulo" (por indicarem nas eleições uma tendência para a qual se inclinaria o eleitorado nacional), como Flórida, Ohio e Carolina do Norte, ressentido com os efeitos da globalização e da imigração.
Não é fato novo, porém, esse avanço da direita e da extrema-direita em sociedades desenvolvidas: assim marcha a política na Alemanha, na Polônia, na França, na Áustria, na Hungria, na Turquia e no Reino Unido, de que constitui eloquente sintoma a rejeição inglesa à Comunidade Europeia, como símbolo de unificação e globalização. Em ambos os casos, nas vitórias de Trump e do Brexit, houve a clara derrota das elites locais.
Mesmo entre nós, inclusive na América do Sul (a eleição de Macri, na Argentina, o "não" ao acordo de Paz na Colômbia, a crise na Venezuela) e no Brasil, essa ameaça reacionária não é fato nem novo nem isolado. E agora se instala no cume do poder político mundial, do poder econômico e do poder militar (tudo isso ao mesmo tempo), compreendendo o controle do mais poderoso arsenal atômico jamais conhecido pela humanidade.
Não é, pois, uma ameaça trivial. A questão não é Donald Trump, mas os EUA que estão emergindo desse 8 de novembro (o resultado chocante veio a lume em 9/11 o que sugere um curioso, e um tanto sinistro, espelhamento com o 11/9).
Donald Trump, porém, na presidência, poderá ser algo diverso do candidato grotesco, e dessa metamorfose já deu sinais em seu discurso logo após o reconhecimento da eleição. Metade dele foi de uma frivolidade e de um vazio dolorosos. Outra é ambígua: ele faz o discurso conciliatório de todo vencedor (e não menos de alguém preocupado com o bom funcionamento dos mercados), mas ao mesmo tempo cria imagens de reconstrução de um pais devastado. Poderá mesmo ser um acelerador do processo histórico, acentuado contradições.
Há ainda pouco indicadores de como será Donald Trump instalado no salão oval da Casa Branca, aí então à mercê de suas circunstâncias. Por enquanto, um enigma.
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