Por Guilherme Boulos, na revista CartaCapital:
Na história recente do Brasil, será difícil encontrar um período tão marcado pelo retrocesso como 2016. Num curto espaço de tempo, a democracia e os direitos sociais foram atacados de modo selvagem. Foi o ano em que a relação entre as forças sociais perdeu qualquer equilíbrio, em uma guinada a favor do 1%, sem sistema de freios.
A consumação do golpe parlamentar, em abril-maio, e sua confirmação, em agosto, abriu a caixa de Pandora, que estava à espera de uma oportunidade adequada. Velhos projetos foram desengavetados. O atrevimento da casa-grande, contido por algum tempo, voltou com força redobrada.
Empolgado, o presidente da Confederação Nacional da Indústria expressou publicamente suas saudades do século XIX, com jornadas de 12 horas diárias, e a propôs como marco para uma reforma trabalhista.
Para compreender 2016 e pensar 2017, é preciso ter a dimensão das razões que levaram ao golpe parlamentar no Brasil. Com o agravamento da crise econômica, o capital passou a exigir medidas duras para garantir sua rentabilidade: atacar direitos trabalhistas, por meio da redução do custo da força de trabalho, e secar investimentos públicos, para assegurar o pagamento dos juros da dívida.
O novo cenário mundial, associado a mudanças na correlação de forças internas, levou a burguesia a fazer forte pressão nesse sentido.
Compreenderam rapidamente que o País estava numa encruzilhada. Não era mais possível manter a estratégia do “ganha-ganha” do período anterior, baseada na acomodação de interesses opostos pelo manejo orçamentário.
Com a desaceleração do crescimento chinês e a drástica redução no preço das commodities, a margem de manobra financeira para assegurar seus interesses e, ao mesmo tempo, garantir pesados investimentos sociais havia se reduzido muito. O cobertor encurtou e alguém ficaria descoberto. A casa-grande atuou rapidamente para garantir que não fosse ela.
Após sua reeleição, Dilma Rousseff fez gestos expressivos de que poderia atender a esses interesses. O desastroso ajuste de 2015, a proposta de reforma da Previdência e as reiteradas tentativas de recompor com setores já acomodados na oposição se inscrevem nesse registro. Mas não foi suficiente. Eles queriam mais.
Além do que guardavam uma profunda desconfiança em relação à presidenta pelo ensaio de mudança na política econômica feito em 2012, com a redução de juros e do spread bancário. O projeto desejado necessitava de um novo governo ou, nas palavras de FHC, de um “novo bloco de poder”.
Isso os levou, após certa indecisão, a apoiar maciçamente o impeachment. É claro que não teriam podido sair vitoriosos sem outros componentes, políticos e sociais. A Operação Lava Jato, com sua condução seletiva e vazamentos calculados, foi decisiva para criar a instabilidade política necessária.
Quando Sergio Moro vaza ilegalmente a conversa entre Lula e Dilma, coloca-se como ator do golpe. Quando o ministro Teori Zavascki decide afastar Eduardo Cunha apenas após este ter conduzido a destituição de Dilma, mesmo com o pedido há quatro meses em sua mesa, envolve o STF na trama.
As manifestações de rua, estimuladas abertamente pela mídia, também tiveram papel de destaque no processo. Assim como a condução de Cunha à presidência da Câmara, que desestruturou a governabilidade parlamentar de Dilma. E, é claro, as próprias políticas erráticas do governo, que minaram sua base de apoio na sociedade, contribuindo para desarmar as condições de resistência.
Michel Temer, o vice, tomou posse em maio com a promessa de pacificar o País. Longe disso, seu governo representa a abertura de um período longo de instabilidade na sociedade brasileira.
O governo Temer representa o maior risco de retrocessos ao povo brasileiro desde o fim da ditadura. Por não ter sido eleito e por não pretender a reeleição, pode praticar as maiores atrocidades sem precisar prestar contas à sociedade, sem qualquer preço político-eleitoral.
Nenhum governo na Nova República esteve tão à vontade para realizar maldades. No caso de Itamar Franco, o contexto político e o nível de resistência social não permitiam tantas ousadias.
A proposta de regressão encampada por Temer, iniciada neste ano, mas que terá sua prova de fogo em 2017, condensa-se em três grandes medidas: a PEC do Teto e as reformas da Previdência e trabalhista.
A esse programa ultraliberal soma-se ainda um recrudescimento do conservadorismo político, com retrocessos em várias áreas e ataques às atuais pautas negras, feministas e LGBT, além do aumento da criminalização das lutas populares.
A PEC, subestimada por muitos da esquerda, representa uma verdadeira “desconstituinte”. Fere mortalmente o que a Constituição de 1988 tem de mais avançado, sua rede de proteção social.
Note-se ainda que é uma medida inédita em termos internacionais: nem Carlos Menen, nem Alberto Fujimori, muito menos os magos do FMI chegaram a propor a inclusão como cláusula constitucional de uma política de austeridade por 20 anos.
Isso implica ainda uma completa desmoralização da democracia brasileira, pois predefine a política econômica para os próximos quatro presidentes que vierem a ser eleitos pelo voto popular.
Na verdade, se levado a cabo, o regime fiscal da PEC conduzirá a um colapso da política social e dos serviços públicos. Está em curso a desidratação dos programas sociais criados nos governos petistas, com a perspectiva de sangria gradual até morrerem de inanição.
No caso dos serviços públicos, simplesmente perderão as condições de funcionamento no médio prazo, o que decerto está no roteiro associado a um forte discurso privatista, disposto a eliminar a noção de direitos universais, inclusive na educação e saúde.
No caso da saúde, é possível prever um colapso no curto prazo. Vivemos em meio a um choque entre redução da oferta e aumento da demanda, a chamada tempestade perfeita.
Com a recessão e o desemprego, cerca de 1,7 milhão de brasileiros deixaram os planos de saúde privados entre o segundo semestre de 2015 e meados deste ano. Voltaram, portanto, ao SUS. Exatamente no momento em que a política de ajuste, brutalmente aprofundada com a PEC, reduz os recursos para investimento.
O aumento da pobreza e da precariedade nas relações de trabalho, visível a olho nu, será redobrado com a eventual aprovação das reformas da Previdência e trabalhista. Nesse último caso, são duas as medidas principais: generalizar a terceirização e sobrepor o negociado ao legislado.
Se concretrizadas, a CLT será reduzida a ornamento, pois haverá amplo espaço para os contratos à margem dos direitos assegurados por ela. Aqui vale dizer que nem a ditadura, em seus 21 anos, atreveu-se a mexer na CLT. Temer, em poucos meses, aventura-se a fazê-lo.
Não há régua para medir o retrocesso. A resistência, evidentemente, existe. Não se deve subestimar a importante luta dos estudantes, com ocupações de escolas e universidades em todo o Brasil, nem o expressivo aumento das ocupações dos sem-teto na luta por moradia nas grandes cidades.
Assim como a luta dos servidores públicos contra os pacotes de ajuste, com destaque para o Rio de Janeiro. Além disso, nas mobilizações contra o golpe, foram às ruas em várias ocasiões centenas de milhares de cidadãos. É preciso reconhecer, no entanto, que estamos muito aquém do necessário para bloquear esse processo.
Quem aposta na pacificação social precisará revê-la. Se há alguma certeza em relação a 2017, é o fato de ele ser um ano de profunda instabilidade. A receita de lidar com a recessão por meio da redução dos investimentos, além de economicamente burra, é socialmente explosiva.
O Rio de Janeiro de hoje é o anúncio do Brasil de amanhã. Do ponto de vista do endurecimento dos ataques, mas também do fortalecimento da resistência. A ficha começa a cair. Dificilmente será possível contar com a passividade de amplos setores populares quando o efeito dessa receita amarga se fizer sentir com mais força.
Será também difícil sustentar por muito tempo o discurso de que tudo é culpa do PT e de que Temer e sua junta financeira estão apenas “tirando o Brasil do vermelho”.
O próximo ano deverá ser também o da delação da Odebrecht, que tende a aprofundar a crise política e reforçar o poder da República de Curitiba. Seus efeitos são imprevisíveis.
Não se deve descartar a possibilidade de Temer ser forçado a deixar o cargo, abrindo espaço para uma eleição indireta por um Parlamento desmoralizado pela corrupção e pela velhacaria. Aliás, um certo morador do bairro de Higienópolis tem colocado as asinhas de fora.
Instabilidade política, instabilidade social. O tempo desse desencadeamento não está claro, mas é muito provável que ondas de reação popular, espontâneas ou organizadas, marquem a realidade brasileira. Para onde isso vai e se a esquerda e os movimentos sociais conseguirão canalizar esse caldo para um projeto contra-hegemônico, é algo incerto. Depende ainda de muitas variáveis.
Definitivamente, não será um ano de marasmo. A casa-grande tem motivos para se assustar com a incerteza política e ainda mais com o potencial de ampliação dos conflitos sociais. Por ironia da história, a violência dos ataques de seu próprio governo é o principal combustível para o Brasil pegar fogo.
A consumação do golpe parlamentar, em abril-maio, e sua confirmação, em agosto, abriu a caixa de Pandora, que estava à espera de uma oportunidade adequada. Velhos projetos foram desengavetados. O atrevimento da casa-grande, contido por algum tempo, voltou com força redobrada.
Empolgado, o presidente da Confederação Nacional da Indústria expressou publicamente suas saudades do século XIX, com jornadas de 12 horas diárias, e a propôs como marco para uma reforma trabalhista.
Para compreender 2016 e pensar 2017, é preciso ter a dimensão das razões que levaram ao golpe parlamentar no Brasil. Com o agravamento da crise econômica, o capital passou a exigir medidas duras para garantir sua rentabilidade: atacar direitos trabalhistas, por meio da redução do custo da força de trabalho, e secar investimentos públicos, para assegurar o pagamento dos juros da dívida.
O novo cenário mundial, associado a mudanças na correlação de forças internas, levou a burguesia a fazer forte pressão nesse sentido.
Compreenderam rapidamente que o País estava numa encruzilhada. Não era mais possível manter a estratégia do “ganha-ganha” do período anterior, baseada na acomodação de interesses opostos pelo manejo orçamentário.
Com a desaceleração do crescimento chinês e a drástica redução no preço das commodities, a margem de manobra financeira para assegurar seus interesses e, ao mesmo tempo, garantir pesados investimentos sociais havia se reduzido muito. O cobertor encurtou e alguém ficaria descoberto. A casa-grande atuou rapidamente para garantir que não fosse ela.
Após sua reeleição, Dilma Rousseff fez gestos expressivos de que poderia atender a esses interesses. O desastroso ajuste de 2015, a proposta de reforma da Previdência e as reiteradas tentativas de recompor com setores já acomodados na oposição se inscrevem nesse registro. Mas não foi suficiente. Eles queriam mais.
Além do que guardavam uma profunda desconfiança em relação à presidenta pelo ensaio de mudança na política econômica feito em 2012, com a redução de juros e do spread bancário. O projeto desejado necessitava de um novo governo ou, nas palavras de FHC, de um “novo bloco de poder”.
Isso os levou, após certa indecisão, a apoiar maciçamente o impeachment. É claro que não teriam podido sair vitoriosos sem outros componentes, políticos e sociais. A Operação Lava Jato, com sua condução seletiva e vazamentos calculados, foi decisiva para criar a instabilidade política necessária.
Quando Sergio Moro vaza ilegalmente a conversa entre Lula e Dilma, coloca-se como ator do golpe. Quando o ministro Teori Zavascki decide afastar Eduardo Cunha apenas após este ter conduzido a destituição de Dilma, mesmo com o pedido há quatro meses em sua mesa, envolve o STF na trama.
As manifestações de rua, estimuladas abertamente pela mídia, também tiveram papel de destaque no processo. Assim como a condução de Cunha à presidência da Câmara, que desestruturou a governabilidade parlamentar de Dilma. E, é claro, as próprias políticas erráticas do governo, que minaram sua base de apoio na sociedade, contribuindo para desarmar as condições de resistência.
Michel Temer, o vice, tomou posse em maio com a promessa de pacificar o País. Longe disso, seu governo representa a abertura de um período longo de instabilidade na sociedade brasileira.
O governo Temer representa o maior risco de retrocessos ao povo brasileiro desde o fim da ditadura. Por não ter sido eleito e por não pretender a reeleição, pode praticar as maiores atrocidades sem precisar prestar contas à sociedade, sem qualquer preço político-eleitoral.
Nenhum governo na Nova República esteve tão à vontade para realizar maldades. No caso de Itamar Franco, o contexto político e o nível de resistência social não permitiam tantas ousadias.
A proposta de regressão encampada por Temer, iniciada neste ano, mas que terá sua prova de fogo em 2017, condensa-se em três grandes medidas: a PEC do Teto e as reformas da Previdência e trabalhista.
A esse programa ultraliberal soma-se ainda um recrudescimento do conservadorismo político, com retrocessos em várias áreas e ataques às atuais pautas negras, feministas e LGBT, além do aumento da criminalização das lutas populares.
A PEC, subestimada por muitos da esquerda, representa uma verdadeira “desconstituinte”. Fere mortalmente o que a Constituição de 1988 tem de mais avançado, sua rede de proteção social.
Note-se ainda que é uma medida inédita em termos internacionais: nem Carlos Menen, nem Alberto Fujimori, muito menos os magos do FMI chegaram a propor a inclusão como cláusula constitucional de uma política de austeridade por 20 anos.
Isso implica ainda uma completa desmoralização da democracia brasileira, pois predefine a política econômica para os próximos quatro presidentes que vierem a ser eleitos pelo voto popular.
Na verdade, se levado a cabo, o regime fiscal da PEC conduzirá a um colapso da política social e dos serviços públicos. Está em curso a desidratação dos programas sociais criados nos governos petistas, com a perspectiva de sangria gradual até morrerem de inanição.
No caso dos serviços públicos, simplesmente perderão as condições de funcionamento no médio prazo, o que decerto está no roteiro associado a um forte discurso privatista, disposto a eliminar a noção de direitos universais, inclusive na educação e saúde.
No caso da saúde, é possível prever um colapso no curto prazo. Vivemos em meio a um choque entre redução da oferta e aumento da demanda, a chamada tempestade perfeita.
Com a recessão e o desemprego, cerca de 1,7 milhão de brasileiros deixaram os planos de saúde privados entre o segundo semestre de 2015 e meados deste ano. Voltaram, portanto, ao SUS. Exatamente no momento em que a política de ajuste, brutalmente aprofundada com a PEC, reduz os recursos para investimento.
O aumento da pobreza e da precariedade nas relações de trabalho, visível a olho nu, será redobrado com a eventual aprovação das reformas da Previdência e trabalhista. Nesse último caso, são duas as medidas principais: generalizar a terceirização e sobrepor o negociado ao legislado.
Se concretrizadas, a CLT será reduzida a ornamento, pois haverá amplo espaço para os contratos à margem dos direitos assegurados por ela. Aqui vale dizer que nem a ditadura, em seus 21 anos, atreveu-se a mexer na CLT. Temer, em poucos meses, aventura-se a fazê-lo.
Não há régua para medir o retrocesso. A resistência, evidentemente, existe. Não se deve subestimar a importante luta dos estudantes, com ocupações de escolas e universidades em todo o Brasil, nem o expressivo aumento das ocupações dos sem-teto na luta por moradia nas grandes cidades.
Assim como a luta dos servidores públicos contra os pacotes de ajuste, com destaque para o Rio de Janeiro. Além disso, nas mobilizações contra o golpe, foram às ruas em várias ocasiões centenas de milhares de cidadãos. É preciso reconhecer, no entanto, que estamos muito aquém do necessário para bloquear esse processo.
Quem aposta na pacificação social precisará revê-la. Se há alguma certeza em relação a 2017, é o fato de ele ser um ano de profunda instabilidade. A receita de lidar com a recessão por meio da redução dos investimentos, além de economicamente burra, é socialmente explosiva.
O Rio de Janeiro de hoje é o anúncio do Brasil de amanhã. Do ponto de vista do endurecimento dos ataques, mas também do fortalecimento da resistência. A ficha começa a cair. Dificilmente será possível contar com a passividade de amplos setores populares quando o efeito dessa receita amarga se fizer sentir com mais força.
Será também difícil sustentar por muito tempo o discurso de que tudo é culpa do PT e de que Temer e sua junta financeira estão apenas “tirando o Brasil do vermelho”.
O próximo ano deverá ser também o da delação da Odebrecht, que tende a aprofundar a crise política e reforçar o poder da República de Curitiba. Seus efeitos são imprevisíveis.
Não se deve descartar a possibilidade de Temer ser forçado a deixar o cargo, abrindo espaço para uma eleição indireta por um Parlamento desmoralizado pela corrupção e pela velhacaria. Aliás, um certo morador do bairro de Higienópolis tem colocado as asinhas de fora.
Instabilidade política, instabilidade social. O tempo desse desencadeamento não está claro, mas é muito provável que ondas de reação popular, espontâneas ou organizadas, marquem a realidade brasileira. Para onde isso vai e se a esquerda e os movimentos sociais conseguirão canalizar esse caldo para um projeto contra-hegemônico, é algo incerto. Depende ainda de muitas variáveis.
Definitivamente, não será um ano de marasmo. A casa-grande tem motivos para se assustar com a incerteza política e ainda mais com o potencial de ampliação dos conflitos sociais. Por ironia da história, a violência dos ataques de seu próprio governo é o principal combustível para o Brasil pegar fogo.
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