Por Joaquim Carvalho, no blog Diário do Centro do Mundo:
A história do avião que caiu nas águas de Paraty com um ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) a bordo tem força para fazer emergir um lado do Brasil em que não cabe a Teori Zavascki o papel de herói.
Pelo contrário. E, para entender o que está por trás da última viagem do ministro, é preciso conhecer quem o colocou naquele voo, e com que propósito.
Carlos Alberto Fernandes Filgueiras era um milionário com múltiplos negócios e uma habilidade em particular: fazer amizade com gente poderosa e às vezes famosa, como Roberto Carlos no passado e Eike Batista mais recentemente, mas sem deixar de viver na sombra, sempre longe de holofotes.
Logo depois do acidente, no dia 19 de janeiro, a coluna de Lauro Jardim no jornal O Globo publicou uma nota em que relaciona a amizade entre Teori e Filgueiras a um episódio trágico: os dois teriam se conhecido em 2012, quando o ministro se hospedava no hotel para acompanhar o tratamento da mulher contra um câncer, no Hospital Sírio Libanês.
Estive no hotel Emiliano segunda-feira, dia 23, e conversei com alguns funcionários, sem me apresentar como jornalista. Nenhum deles se lembra de ter visto Teori por ali, embora o ministro fosse uma personalidade conhecida nacionalmente.
Teori pode ter estado lá, mesmo que recepcionistas e garçons não o tenham visto e ele pudesse fazer frente a uma das diárias de hotel mais caras do Brasil.
A tarifa de balcão fixada para o apartamento luxo, a mais barata, sai por R$ 2.130,00, mas, fazendo a reserva pelo telefone, o hóspede paga R$ 1.750,00.
Um dia no Emiliano consome quase 5% do salário de um ministro do Supremo – e é razoável supor que vir de Brasília a São Paulo para o tratamento de uma doença grave como o câncer não seja jornada para um único dia.
Unidos em vida pela tragédia de uma doença, a da esposa de Teori, mortos em outro tragédia, a da queda do avião. Este é um enredo que combina com a versão de herói. Diz a nota do jornal O Globo: “Carlos Alberto era um frequente companheiro de papo de Teori, com quem conversava sobretudo depois das visitas do hospital.”
Na mesma linha, a revista Época, da mesma editora do jornal, na capa da edição que noticiou a morte do ministro, destacou: “Obrigado, Vossa Excelência - a trajetória e o legado do discreto juiz que se revelou um herói silencioso da Lava Jato”.
Não era necessário muito esforço jornalístico para ver que a versão “amigo de fé, irmão camarada” não bate com os fatos.
Em maio de 2006, seis anos antes da doença de dona Maria Helena, esposa do ministro, Teori Zavascki estava no Superior Tribunal de Justiça e foi relator de um recurso que interessava diretamente a Filgueiras: a Prefeitura de São Paulo queria receber de Filgueiras IPTU que considerava sonegado e tentou executar a dívida, dada como certa pela Justiça em primeira instância.
Mas Filgueiras apelou e o caso foi parar no STJ, através de um recurso especial da Prefeitura de São Paulo, que exigia de Filgueiras bens em garantia para a execução da dívida. A decisão de Zavascki dispensou Filgueiras de oferecer bens (o que significa penhora) enquanto recorria.
O voto de Zavascki foi acompanhado por mais dois ministros – um deles Luiz Fux, hoje no STF, que divulgou nota a respeito da morte do colega – “jamais o esqueceremos pelo bem que realizou em prol do País e da Justiça”.
Portanto, quando Teori se hospedou no Emiliano (se é que se hospedou alguma vez, funcionários não viram e um deles, perguntado por mim, que não me apresentei como jornalista, disse que estava proibido de falar desse assunto), o dono do hotel já tinha cruzado com sua rotina profissional – agora tratada como legado.
Teori poderia se registrar no Emiliano sem se preocupar com quem é o dono – em geral, ninguém busca essa informação ao fazer uma reserva –, mas, uma vez apresentado ao proprietário, talvez devesse ter tido alguma cautela.
Só no Tribunal de Justiça de São Paulo o nome de Carlos Alberto Fernandes Filgueiras aparece em 39 processos na área civil – a maioria deles como autor, sem contar o processo em Angra dos Reis, onde é acusado de crime de ambiental.
Em alguns processos no Tribunal de Justiça de São Paulo, ele aparece como executado por não pagar IPTU e, em um caso, o nome dele está por trás de uma empresa condenada por débitos entre particulares e apontada por um juiz como autora de fraude contra credores.
A empresa se chama Tuama Construtora e Incorporadora Ltda, da qual Terezinha Peixoto Coutinho tenta cobrar uma dívida, sem sucesso, desde 2003. Em 2009, o juiz escreveu:
“Ora, no caso sub judice se vislumbra, como salientado supra, laivos de que os sócios da Executada estão se homiziando atrás da personalidade jurídica de sua empresa para inadimplir suas obrigações para com terceiros seus credores, configurando e patenteando esse comportamento fraude e abuso de direito no decorrer da sua gestão, bem assim como o mau uso que da sociedade comercial estão a fazer.”
A sentença, da 6ª. Vara Cívil de São Paulo, relaciona Carlos Alberto Fernandes Filgueiras como um dos sócios da Tuama e determina a desconstituição da personalidade jurídica, para que ele e dois sócios respondam com seus bens pessoais. Seis anos depois, a ação ainda corre e Terezinha não recebeu o que reclamou na Justiça, com ganho de causa.
Nos anos 90, o cantor Roberto Carlos teve uma parceria com essa empresa, a Tuama Construtora e Incorporadora Ltda, que já era de Carlos Alberto Fernandes Filgueiras. Os dois se associaram para construir um edifício de flats na rua Oscar Freire.
Em 2011, o jornalista Guilherme Barros noticiou em sua coluna no IG que o cantor estreava no mercado imobiliário com a incorporadora Emoções, mas um leitor, Nélson Borges, corretor veterano, o corrigiu:
“Não é a primeira incursão do Rei Roberto Carlos nesse mundo. Trabalho com imóveis há 32 anos e me lembro dele com a Incorporadora e Construtora Tuama no primeiro empreendimento imobiliário. Ele e a família Filgueiras não tiveram sucesso num empreendimento na Rua Oscar Freire, um Flat com apenas quatro apartamentos por andar. Houve problemas com a fundação e esse erro de produto, pois um flat com quatro apartamentos por andar não funciona. Sou muito fã desse grande cantor. Sucesso nessa segunda etapa.”
Roberto Carlos admite, através de sua assessoria, que teve esse negócio com Filgueiras, mas se recusa a falar sobre o assunto e sobre o empresário.
Ele teria tido prejuízo e deixou a sociedade antes que Filgueiras transformasse o flat no hotel Emiliano, com um produto – que chamou de hotel butique – e uma ação de marketing que levou o empreendimento até as páginas do New York Times, que fez uma resenha positiva do Emiliano.
Pelo silêncio do cantor, que não quer falar de um homem que já morreu, não é difícil concluir que Roberto Carlos teve motivos para se afastar de Filgueiras que vão além de um suposto erro de projeto arquitetônico, como aponta o veterano corretor.
Talvez Roberto Carlos tenha tido a cautela que faltou a Teori Zavascki – mas quem viaja imaginando que o avião vai cair e deixar uma grande quantidade de perguntas sem resposta?
Os fatos, como se disse, insistem em embaçar a imagem do herói da Lava Jato. Desde 2010, Teori já era cotado para uma indicação ao STF. Quando vagou a cadeira de Eros Grau, Mônica Bergamo informou, em sua coluna na Folha de S. Paulo, que ele tinha um padrinho forte: Nélson Jobim.
Em 2015, depois que o ministro foi nomeado para o STF, a Revista Época, numa reportagem crítica a uma decisão de Teori Zavascki entendida como favorável ao PT, cravou: “Em sua ascensão, Teori contou com a amizade do ex-deputado e ex-ministro do Nelson Jobim, que foi integrante dos governos de Fernando Henrique e Lula.”
Na mesma reportagem, escrita quando Teori não era visto pelos editores como um herói da Lava Jato, a Revista Época recuou a um passado ainda mais remoto, 1989, quando ele era advogado do Banco Central e foi nomeado desembargador do Tribunal Federal da Quarta Região pelo então presidente José Sarney.
A revista publicou cópia de um telegrama do então presidente José Sarney ao ministro do Supremo Tribunal Federal Paulo Brossard, transmitido para comunicar que o presidente da República aceitara a indicação de Brossard e nomeara o então jovem Teori Zavascki (40 anos) para o Tribunal Regional Federal.
Época não fez essa relação, mas, como Nélson Jobim reconheceu em um discurso de 2004, Brossard foi um de seus padrinhos políticos, ao incentivá-lo a disputar uma eleição para deputado.
As ligações entre Teori e o universo político de Jobim nunca foram segredo, assim como é público que o ex-governador do Rio Grande do Sul Tarso Genro, do PT, também fez lobby para Teori se tornar ministro do STF.
A diferença é que a rede de relacionamentos de Jobim e Teori passou a ter em comum a pessoa de Carlos Alberto Fernandes Filgueiras, através de uma empresa criada para comprar e administrar uma unidade do Emiliano no Rio de Janeiro, a Forte Mar Empreendimentos.
A empresa tem capital social de quase R$ 150 milhões, divididos entre Carlos Alberto Fernandes Filgueiras e um fundo de investimento gerido pelo BTG Pactual, de André Esteves. Dois ex-diretores do BTG, homens de confiança de Esteves, também são diretores da Forte Mar.
Em novembro de 2015, Esteves foi acusado de concordar com a compra de um ex-diretor da Petrobrás para não ser envolvido na Lava Jato, e Teori mandou prendê-lo, juntamente com o senador Delcídio do Amaral, mas Esteves deixou a cadeia bem antes dele, um mês depois da prisão.
O banqueiro teve primeiramente o benefício da prisão domiciliar. Em abril do ano passado, Teori revogou a prisão domiciliar e devolveu a liberdade praticamente plena a André Esteves.
Em agosto, quatro meses depois de Esteves recuperar a liberdade, o BTG anunciou mudança na sua direção e Nélson Jobim foi apresentado como novo presidente, com uma remuneração de R$ 60 milhões por um contrato de cinco anos – ou seja, R$ 1 milhão por mês.
No anúncio ao mercado, Jobim, ex-ministro da Justiça e ex-ministro do Supremo, foi apresentado como a pessoa com perfil adequado para dar maior rigidez aos critérios de governança corporativa, ou seja, evitar a corrupção. Tudo muito bonito até o acidente aéreo revelar a proximidade de Teori com Filgueiras, sócio do BTG de Esteves.
Num situação hipotética, poderia ocorrer de Filgueiras agradecer Teori por livrar o sócio da prisão e Teori manifestar gratidão por ter o padrinho acolhido na vice-presidência do BTG. É uma hipótese, registre-se mais uma vez, mas não é uma hipótese absurda. Constrangimento que poderia ser evitado.
Mas quem conheceu de perto o empresário Filgueiras já viveu muitas situações que poderiam causar constrangimento, mas de outra natureza. Filgueiras era separado e teve quatro filhos, todos adultos. Foi visto muitas vezes na companhia de mulheres tão bonitas quanto caladas.
A jornalista Luiza Pastor postou em seu Facebook uma nota para contar que conheceu o empresário, jantou com ele algumas vezes num restaurante japonês, na companhia do artista plástico Siron Franco, e que, instada a dar conselho sobre como ter “uma mulher interessante, inteligente e que não pensasse só no seu dinheiro”, respondeu a Filgueiras que ele deveria deixar de contratar garotas de programa:
“Que tal começar procurando em algum lugar que não seja o Café Photo ou o Bahamas? Se você, por acaso, conseguir encontrar uma mulher com esse perfil e, de cara, convidá-la a passar o fim de semana em sua casa de Paraty, presenteando-a com um jogo de malas Louis Vuitton, com certeza ela vai sair correndo de susto. Leia um pouco mais de Vinícius, escute o que o poeta diz em Para viver um grande amor, tenha em vista “um crédito de rosas na florista, muito, muito mais que na modista”. Talvez funcione…”
A paulistana Marilu Alves de Oliveira também conheceu Filgueiras de perto, só que numa relação diferente da de Luiza Pastor. Ela era empregada do Emiliano. Trabalhou doze anos no hotel, praticamente desde o seu início até 2013, quando foi demitida.
Começou como ajudante , depois passou à arrumadeira e terminou servindo cafezinho ao patrão. Numa ação trabalhista, ela acusou Filgueiras de ataque sexual e atribuiu sua saída da empresa ao fato de ter resistido ao assédio.
Na Justiça do Trabalho, numa ação a que não deu nenhuma divulgação, Marilu disse que, bêbado, Filgueiras a agarrou numa festa de fim de ano, tocou em suas partes íntimas na frente de outros funcionários e, quando ela tentou se desvencilhar, ouviu um grito:
“Dança comigo, porra!”
Segundo ela, depois dessa cena, Filgueiras saiu para férias de fim de ano e, um mês depois, quando ele retornou, Marilu teria ficado sem função e acabou demitida, sem receber todos os seus direitos.
Na Justiça do trabalho, ela relatou um cotidiano de trabalho altamente desgastante e ambiente ruim. Ao tomar conhecimento da ação, Filgueiras constituiu um dos mais famosos criminalistas do Brasil, Nélio Machado, para questioná-la judicialmente.
A ex-funcionária confirmou a acusação e foi processada, por injúria e calúnia. Em abril do ano passado, a juíza da 16ª Vara do Fórum Criminal da Barra Funda absolveu Marilu por entender que não houve crime contra a honra, já que a ex-funcionária não espalhou a denúncia de ataque sexual. O que fez foi denunciar o assédio, nos limites da Justiça do Trabalho.
“Muitos dos fatos discutidos nesta queixa-crime dizem respeito ao objeto da reclamação trabalhista e teriam sido enfrentados não tivessem as partes encerrado a questão com acordo”, escreveu a juíza, na sentença de cinco páginas. Pelo acordo, Filgueiras pagou R$ 15 mil de indenização, além de liberar o fundo de garantia.
Na sentença, a juíza registra também que, ao depor, Filgueiras citou um escândalo ocorrido alguns meses antes de processar a ex-funcionária, o do então diretor-geral do FMI, Dominque Strauss-Khan, acusado de estuprar uma camareira de um hotel em Nova Iorque.
O sentido da citação parece ser que Filgueiras, ao processar Marilu, queria evitar alvo de um escândalo no Brasil, ainda que as acusações fossem diferentes e que ele tenha refutado com veemência a denúncia da funcionária.
A defesa de Filgueiras recorreu dessa decisão da Justiça Criminal.
Marilu não apresentou testemunha que comprovasse sua acusação e as testemunhas de Filgueiras, funcionários do hotel, disseram que não viram nada.
As alegações da arrumadeira do hotel expõem situações, verdadeiras ou não, que acabam aproximando Filgueiras muito mais de sua origem empresarial conhecida, como investidor do garimpo de Serra Pelada e madeireiro do Sul do Pará, do que da realidade empresarial de seus anos mais recentes.
O ex-prefeito de Tucuruí, no Pará, Parsifal Pontes, conheceu Filgueiras desta época e contou em seu blog ambos compravam barrancos e não eram garimpeiros.
Outro contemporâneo de Serra Pelada escreveu, num comentário: “Também lembro dele, às vezes jogava umas partidas de dominó com Nestozão e Rodolfo, no barraco deles na rua do Sereno. Que a terra lhe seja leve.”
A partir de Serra Pelada, Filgueiras prosperou. No que é de conhecimento público, um de seus filhos, também chamado Carlos, foi investidor do Grupo X de Eike Batista, do qual se afastou após perder dinheiro.
Associou-se então ao grupo americano DeVry, que atua área educacional, e comprou faculdades no Brasil, começando pelo Norte e Nordeste. Um de seus últimos negócios foi a aquisição da Damásio Eduacional, de São Paulo, famosa por seus cursos jurídicos.
Filgueiras, o pai, tinha vários negócios no próprio nome, no ramo de hotelaria e incorporação imobiliária, mas era visto sempre no hotel, onde o empreiteiro Ricardo Pessoa diz ter jantado em 2014, pouco tempo antes da eleição, com o senador Renan Calheiros e acertado com ele a entrega de R$ 1,5 milhão para a campanha do filho, hoje governador de Alagoas. O relato está na delação premiada de Ricardo Pessoa, dono da UTC.
Um lobista com quem conversei esta semana disse ter estado no hotel para negociar comissões envolvendo créditos na Dersa, a estatal de transportes do governo do Estado de São Paulo.
É um lobista que já apareceu em páginas policiais, envolvido com negócios obscuros que envolvem PSDB, DEM, PSD e até o PSB. Ele pediu para não ter o nome divulgado. Mas deu pistas e autorizou divulgar seu relato.
Checando o que ele disse, confirmei que o Ministério Público já tomou seu depoimento, mas, questionado por uma situação específica, não teve a oportunidade de denunciar esquemas mais abrangentes, que envolveriam autoridades do Estado de São Paulo. Segundo ele, promotores de São Paulo não tiveram interesse de ouvir as informações que o aproximavam do Palácio dos Bandeirantes.
Na reunião que ele teve no Emiliano, em 2008, este lobista conheceu Filgueiras e se surpreendeu quando ouviu dele próprio que havia um esquema para comprar créditos duvidosos da Dersa por 10% do valor. Na versão do lobista, quem antecipava o dinheiro era Filgueiras e depois, graças a influências nas instâncias superiores da Justiça, o crédito era recebido na sua integralidade.
Denúncia grave, mas não tão grave quanto a que o jornalista paraguaio Chiqui Ávalos fez no Twitter, relacionando Filgueiras a negócios muito obscuros na fronteira e conhecido por suas “más amizades” no Paraguai. Um leitor quis detalhes e ele disse que o contrabando de bebidas é um desses negócios obscuros.
Chiqui Ávalos já foi colunista e correspondente em Paris do ABC Color, o principal jornal do país, e é autor de um best seller local, o La Outra Cara de HC, com acusações pesadas, inclusive de envolvimento com o narcotráfico, do atual presidente de lá, Horácio Cartes.
No livro, ele agradece a quem o ajudou a levantar as informações. Está lá o nome do senador Romeu Tuma, que já foi chefe da Polícia Federal do Brasil e da Receita Federal.
“Que fazia o relator da Operação Lava Jato no avião (com uma jovenzinha a bordo), em fim de semana na mansão da praia com um tipo assim?”, questionou Ávalos.
No Brasil, deveria haver a mesma perplexidade. São muitas as perguntas, mas já começam a surgir algumas respostas.
Pelo contrário. E, para entender o que está por trás da última viagem do ministro, é preciso conhecer quem o colocou naquele voo, e com que propósito.
Carlos Alberto Fernandes Filgueiras era um milionário com múltiplos negócios e uma habilidade em particular: fazer amizade com gente poderosa e às vezes famosa, como Roberto Carlos no passado e Eike Batista mais recentemente, mas sem deixar de viver na sombra, sempre longe de holofotes.
Logo depois do acidente, no dia 19 de janeiro, a coluna de Lauro Jardim no jornal O Globo publicou uma nota em que relaciona a amizade entre Teori e Filgueiras a um episódio trágico: os dois teriam se conhecido em 2012, quando o ministro se hospedava no hotel para acompanhar o tratamento da mulher contra um câncer, no Hospital Sírio Libanês.
Estive no hotel Emiliano segunda-feira, dia 23, e conversei com alguns funcionários, sem me apresentar como jornalista. Nenhum deles se lembra de ter visto Teori por ali, embora o ministro fosse uma personalidade conhecida nacionalmente.
Teori pode ter estado lá, mesmo que recepcionistas e garçons não o tenham visto e ele pudesse fazer frente a uma das diárias de hotel mais caras do Brasil.
A tarifa de balcão fixada para o apartamento luxo, a mais barata, sai por R$ 2.130,00, mas, fazendo a reserva pelo telefone, o hóspede paga R$ 1.750,00.
Um dia no Emiliano consome quase 5% do salário de um ministro do Supremo – e é razoável supor que vir de Brasília a São Paulo para o tratamento de uma doença grave como o câncer não seja jornada para um único dia.
Unidos em vida pela tragédia de uma doença, a da esposa de Teori, mortos em outro tragédia, a da queda do avião. Este é um enredo que combina com a versão de herói. Diz a nota do jornal O Globo: “Carlos Alberto era um frequente companheiro de papo de Teori, com quem conversava sobretudo depois das visitas do hospital.”
Na mesma linha, a revista Época, da mesma editora do jornal, na capa da edição que noticiou a morte do ministro, destacou: “Obrigado, Vossa Excelência - a trajetória e o legado do discreto juiz que se revelou um herói silencioso da Lava Jato”.
Não era necessário muito esforço jornalístico para ver que a versão “amigo de fé, irmão camarada” não bate com os fatos.
Em maio de 2006, seis anos antes da doença de dona Maria Helena, esposa do ministro, Teori Zavascki estava no Superior Tribunal de Justiça e foi relator de um recurso que interessava diretamente a Filgueiras: a Prefeitura de São Paulo queria receber de Filgueiras IPTU que considerava sonegado e tentou executar a dívida, dada como certa pela Justiça em primeira instância.
Mas Filgueiras apelou e o caso foi parar no STJ, através de um recurso especial da Prefeitura de São Paulo, que exigia de Filgueiras bens em garantia para a execução da dívida. A decisão de Zavascki dispensou Filgueiras de oferecer bens (o que significa penhora) enquanto recorria.
O voto de Zavascki foi acompanhado por mais dois ministros – um deles Luiz Fux, hoje no STF, que divulgou nota a respeito da morte do colega – “jamais o esqueceremos pelo bem que realizou em prol do País e da Justiça”.
Portanto, quando Teori se hospedou no Emiliano (se é que se hospedou alguma vez, funcionários não viram e um deles, perguntado por mim, que não me apresentei como jornalista, disse que estava proibido de falar desse assunto), o dono do hotel já tinha cruzado com sua rotina profissional – agora tratada como legado.
Teori poderia se registrar no Emiliano sem se preocupar com quem é o dono – em geral, ninguém busca essa informação ao fazer uma reserva –, mas, uma vez apresentado ao proprietário, talvez devesse ter tido alguma cautela.
Só no Tribunal de Justiça de São Paulo o nome de Carlos Alberto Fernandes Filgueiras aparece em 39 processos na área civil – a maioria deles como autor, sem contar o processo em Angra dos Reis, onde é acusado de crime de ambiental.
Em alguns processos no Tribunal de Justiça de São Paulo, ele aparece como executado por não pagar IPTU e, em um caso, o nome dele está por trás de uma empresa condenada por débitos entre particulares e apontada por um juiz como autora de fraude contra credores.
A empresa se chama Tuama Construtora e Incorporadora Ltda, da qual Terezinha Peixoto Coutinho tenta cobrar uma dívida, sem sucesso, desde 2003. Em 2009, o juiz escreveu:
“Ora, no caso sub judice se vislumbra, como salientado supra, laivos de que os sócios da Executada estão se homiziando atrás da personalidade jurídica de sua empresa para inadimplir suas obrigações para com terceiros seus credores, configurando e patenteando esse comportamento fraude e abuso de direito no decorrer da sua gestão, bem assim como o mau uso que da sociedade comercial estão a fazer.”
A sentença, da 6ª. Vara Cívil de São Paulo, relaciona Carlos Alberto Fernandes Filgueiras como um dos sócios da Tuama e determina a desconstituição da personalidade jurídica, para que ele e dois sócios respondam com seus bens pessoais. Seis anos depois, a ação ainda corre e Terezinha não recebeu o que reclamou na Justiça, com ganho de causa.
Nos anos 90, o cantor Roberto Carlos teve uma parceria com essa empresa, a Tuama Construtora e Incorporadora Ltda, que já era de Carlos Alberto Fernandes Filgueiras. Os dois se associaram para construir um edifício de flats na rua Oscar Freire.
Em 2011, o jornalista Guilherme Barros noticiou em sua coluna no IG que o cantor estreava no mercado imobiliário com a incorporadora Emoções, mas um leitor, Nélson Borges, corretor veterano, o corrigiu:
“Não é a primeira incursão do Rei Roberto Carlos nesse mundo. Trabalho com imóveis há 32 anos e me lembro dele com a Incorporadora e Construtora Tuama no primeiro empreendimento imobiliário. Ele e a família Filgueiras não tiveram sucesso num empreendimento na Rua Oscar Freire, um Flat com apenas quatro apartamentos por andar. Houve problemas com a fundação e esse erro de produto, pois um flat com quatro apartamentos por andar não funciona. Sou muito fã desse grande cantor. Sucesso nessa segunda etapa.”
Roberto Carlos admite, através de sua assessoria, que teve esse negócio com Filgueiras, mas se recusa a falar sobre o assunto e sobre o empresário.
Ele teria tido prejuízo e deixou a sociedade antes que Filgueiras transformasse o flat no hotel Emiliano, com um produto – que chamou de hotel butique – e uma ação de marketing que levou o empreendimento até as páginas do New York Times, que fez uma resenha positiva do Emiliano.
Pelo silêncio do cantor, que não quer falar de um homem que já morreu, não é difícil concluir que Roberto Carlos teve motivos para se afastar de Filgueiras que vão além de um suposto erro de projeto arquitetônico, como aponta o veterano corretor.
Talvez Roberto Carlos tenha tido a cautela que faltou a Teori Zavascki – mas quem viaja imaginando que o avião vai cair e deixar uma grande quantidade de perguntas sem resposta?
Os fatos, como se disse, insistem em embaçar a imagem do herói da Lava Jato. Desde 2010, Teori já era cotado para uma indicação ao STF. Quando vagou a cadeira de Eros Grau, Mônica Bergamo informou, em sua coluna na Folha de S. Paulo, que ele tinha um padrinho forte: Nélson Jobim.
Em 2015, depois que o ministro foi nomeado para o STF, a Revista Época, numa reportagem crítica a uma decisão de Teori Zavascki entendida como favorável ao PT, cravou: “Em sua ascensão, Teori contou com a amizade do ex-deputado e ex-ministro do Nelson Jobim, que foi integrante dos governos de Fernando Henrique e Lula.”
Na mesma reportagem, escrita quando Teori não era visto pelos editores como um herói da Lava Jato, a Revista Época recuou a um passado ainda mais remoto, 1989, quando ele era advogado do Banco Central e foi nomeado desembargador do Tribunal Federal da Quarta Região pelo então presidente José Sarney.
A revista publicou cópia de um telegrama do então presidente José Sarney ao ministro do Supremo Tribunal Federal Paulo Brossard, transmitido para comunicar que o presidente da República aceitara a indicação de Brossard e nomeara o então jovem Teori Zavascki (40 anos) para o Tribunal Regional Federal.
Época não fez essa relação, mas, como Nélson Jobim reconheceu em um discurso de 2004, Brossard foi um de seus padrinhos políticos, ao incentivá-lo a disputar uma eleição para deputado.
As ligações entre Teori e o universo político de Jobim nunca foram segredo, assim como é público que o ex-governador do Rio Grande do Sul Tarso Genro, do PT, também fez lobby para Teori se tornar ministro do STF.
A diferença é que a rede de relacionamentos de Jobim e Teori passou a ter em comum a pessoa de Carlos Alberto Fernandes Filgueiras, através de uma empresa criada para comprar e administrar uma unidade do Emiliano no Rio de Janeiro, a Forte Mar Empreendimentos.
A empresa tem capital social de quase R$ 150 milhões, divididos entre Carlos Alberto Fernandes Filgueiras e um fundo de investimento gerido pelo BTG Pactual, de André Esteves. Dois ex-diretores do BTG, homens de confiança de Esteves, também são diretores da Forte Mar.
Em novembro de 2015, Esteves foi acusado de concordar com a compra de um ex-diretor da Petrobrás para não ser envolvido na Lava Jato, e Teori mandou prendê-lo, juntamente com o senador Delcídio do Amaral, mas Esteves deixou a cadeia bem antes dele, um mês depois da prisão.
O banqueiro teve primeiramente o benefício da prisão domiciliar. Em abril do ano passado, Teori revogou a prisão domiciliar e devolveu a liberdade praticamente plena a André Esteves.
Em agosto, quatro meses depois de Esteves recuperar a liberdade, o BTG anunciou mudança na sua direção e Nélson Jobim foi apresentado como novo presidente, com uma remuneração de R$ 60 milhões por um contrato de cinco anos – ou seja, R$ 1 milhão por mês.
No anúncio ao mercado, Jobim, ex-ministro da Justiça e ex-ministro do Supremo, foi apresentado como a pessoa com perfil adequado para dar maior rigidez aos critérios de governança corporativa, ou seja, evitar a corrupção. Tudo muito bonito até o acidente aéreo revelar a proximidade de Teori com Filgueiras, sócio do BTG de Esteves.
Num situação hipotética, poderia ocorrer de Filgueiras agradecer Teori por livrar o sócio da prisão e Teori manifestar gratidão por ter o padrinho acolhido na vice-presidência do BTG. É uma hipótese, registre-se mais uma vez, mas não é uma hipótese absurda. Constrangimento que poderia ser evitado.
Mas quem conheceu de perto o empresário Filgueiras já viveu muitas situações que poderiam causar constrangimento, mas de outra natureza. Filgueiras era separado e teve quatro filhos, todos adultos. Foi visto muitas vezes na companhia de mulheres tão bonitas quanto caladas.
A jornalista Luiza Pastor postou em seu Facebook uma nota para contar que conheceu o empresário, jantou com ele algumas vezes num restaurante japonês, na companhia do artista plástico Siron Franco, e que, instada a dar conselho sobre como ter “uma mulher interessante, inteligente e que não pensasse só no seu dinheiro”, respondeu a Filgueiras que ele deveria deixar de contratar garotas de programa:
“Que tal começar procurando em algum lugar que não seja o Café Photo ou o Bahamas? Se você, por acaso, conseguir encontrar uma mulher com esse perfil e, de cara, convidá-la a passar o fim de semana em sua casa de Paraty, presenteando-a com um jogo de malas Louis Vuitton, com certeza ela vai sair correndo de susto. Leia um pouco mais de Vinícius, escute o que o poeta diz em Para viver um grande amor, tenha em vista “um crédito de rosas na florista, muito, muito mais que na modista”. Talvez funcione…”
A paulistana Marilu Alves de Oliveira também conheceu Filgueiras de perto, só que numa relação diferente da de Luiza Pastor. Ela era empregada do Emiliano. Trabalhou doze anos no hotel, praticamente desde o seu início até 2013, quando foi demitida.
Começou como ajudante , depois passou à arrumadeira e terminou servindo cafezinho ao patrão. Numa ação trabalhista, ela acusou Filgueiras de ataque sexual e atribuiu sua saída da empresa ao fato de ter resistido ao assédio.
Na Justiça do Trabalho, numa ação a que não deu nenhuma divulgação, Marilu disse que, bêbado, Filgueiras a agarrou numa festa de fim de ano, tocou em suas partes íntimas na frente de outros funcionários e, quando ela tentou se desvencilhar, ouviu um grito:
“Dança comigo, porra!”
Segundo ela, depois dessa cena, Filgueiras saiu para férias de fim de ano e, um mês depois, quando ele retornou, Marilu teria ficado sem função e acabou demitida, sem receber todos os seus direitos.
Na Justiça do trabalho, ela relatou um cotidiano de trabalho altamente desgastante e ambiente ruim. Ao tomar conhecimento da ação, Filgueiras constituiu um dos mais famosos criminalistas do Brasil, Nélio Machado, para questioná-la judicialmente.
A ex-funcionária confirmou a acusação e foi processada, por injúria e calúnia. Em abril do ano passado, a juíza da 16ª Vara do Fórum Criminal da Barra Funda absolveu Marilu por entender que não houve crime contra a honra, já que a ex-funcionária não espalhou a denúncia de ataque sexual. O que fez foi denunciar o assédio, nos limites da Justiça do Trabalho.
“Muitos dos fatos discutidos nesta queixa-crime dizem respeito ao objeto da reclamação trabalhista e teriam sido enfrentados não tivessem as partes encerrado a questão com acordo”, escreveu a juíza, na sentença de cinco páginas. Pelo acordo, Filgueiras pagou R$ 15 mil de indenização, além de liberar o fundo de garantia.
Na sentença, a juíza registra também que, ao depor, Filgueiras citou um escândalo ocorrido alguns meses antes de processar a ex-funcionária, o do então diretor-geral do FMI, Dominque Strauss-Khan, acusado de estuprar uma camareira de um hotel em Nova Iorque.
O sentido da citação parece ser que Filgueiras, ao processar Marilu, queria evitar alvo de um escândalo no Brasil, ainda que as acusações fossem diferentes e que ele tenha refutado com veemência a denúncia da funcionária.
A defesa de Filgueiras recorreu dessa decisão da Justiça Criminal.
Marilu não apresentou testemunha que comprovasse sua acusação e as testemunhas de Filgueiras, funcionários do hotel, disseram que não viram nada.
As alegações da arrumadeira do hotel expõem situações, verdadeiras ou não, que acabam aproximando Filgueiras muito mais de sua origem empresarial conhecida, como investidor do garimpo de Serra Pelada e madeireiro do Sul do Pará, do que da realidade empresarial de seus anos mais recentes.
O ex-prefeito de Tucuruí, no Pará, Parsifal Pontes, conheceu Filgueiras desta época e contou em seu blog ambos compravam barrancos e não eram garimpeiros.
Outro contemporâneo de Serra Pelada escreveu, num comentário: “Também lembro dele, às vezes jogava umas partidas de dominó com Nestozão e Rodolfo, no barraco deles na rua do Sereno. Que a terra lhe seja leve.”
A partir de Serra Pelada, Filgueiras prosperou. No que é de conhecimento público, um de seus filhos, também chamado Carlos, foi investidor do Grupo X de Eike Batista, do qual se afastou após perder dinheiro.
Associou-se então ao grupo americano DeVry, que atua área educacional, e comprou faculdades no Brasil, começando pelo Norte e Nordeste. Um de seus últimos negócios foi a aquisição da Damásio Eduacional, de São Paulo, famosa por seus cursos jurídicos.
Filgueiras, o pai, tinha vários negócios no próprio nome, no ramo de hotelaria e incorporação imobiliária, mas era visto sempre no hotel, onde o empreiteiro Ricardo Pessoa diz ter jantado em 2014, pouco tempo antes da eleição, com o senador Renan Calheiros e acertado com ele a entrega de R$ 1,5 milhão para a campanha do filho, hoje governador de Alagoas. O relato está na delação premiada de Ricardo Pessoa, dono da UTC.
Um lobista com quem conversei esta semana disse ter estado no hotel para negociar comissões envolvendo créditos na Dersa, a estatal de transportes do governo do Estado de São Paulo.
É um lobista que já apareceu em páginas policiais, envolvido com negócios obscuros que envolvem PSDB, DEM, PSD e até o PSB. Ele pediu para não ter o nome divulgado. Mas deu pistas e autorizou divulgar seu relato.
Checando o que ele disse, confirmei que o Ministério Público já tomou seu depoimento, mas, questionado por uma situação específica, não teve a oportunidade de denunciar esquemas mais abrangentes, que envolveriam autoridades do Estado de São Paulo. Segundo ele, promotores de São Paulo não tiveram interesse de ouvir as informações que o aproximavam do Palácio dos Bandeirantes.
Na reunião que ele teve no Emiliano, em 2008, este lobista conheceu Filgueiras e se surpreendeu quando ouviu dele próprio que havia um esquema para comprar créditos duvidosos da Dersa por 10% do valor. Na versão do lobista, quem antecipava o dinheiro era Filgueiras e depois, graças a influências nas instâncias superiores da Justiça, o crédito era recebido na sua integralidade.
Denúncia grave, mas não tão grave quanto a que o jornalista paraguaio Chiqui Ávalos fez no Twitter, relacionando Filgueiras a negócios muito obscuros na fronteira e conhecido por suas “más amizades” no Paraguai. Um leitor quis detalhes e ele disse que o contrabando de bebidas é um desses negócios obscuros.
Chiqui Ávalos já foi colunista e correspondente em Paris do ABC Color, o principal jornal do país, e é autor de um best seller local, o La Outra Cara de HC, com acusações pesadas, inclusive de envolvimento com o narcotráfico, do atual presidente de lá, Horácio Cartes.
No livro, ele agradece a quem o ajudou a levantar as informações. Está lá o nome do senador Romeu Tuma, que já foi chefe da Polícia Federal do Brasil e da Receita Federal.
“Que fazia o relator da Operação Lava Jato no avião (com uma jovenzinha a bordo), em fim de semana na mansão da praia com um tipo assim?”, questionou Ávalos.
No Brasil, deveria haver a mesma perplexidade. São muitas as perguntas, mas já começam a surgir algumas respostas.
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