O ano de 2016 virou história. Cada um fará a seleção afetiva daquilo que vale transformar em memória. Para mim, uma certeza. A categoria política e analítica “gênero” entrou definitivamente no léxico político nacional. Todas as vezes que um parlamentar ocupava a tribuna da Câmara para falar da ordem natural do ser homem e ser mulher, contribuía para provar que as masculinidades e feminilidades não são assunto da natureza, mas dizem respeito às relações de poder.
O que assistimos em 2016? À batalha das identidades femininas. Muitos desqualificavam a presidente Dilma Rousseff por não ter um comportamento adequado ao seu gênero. Outros, ao contrário, afirmavam que ela tinha a força e a sensibilidade que a tornavam sob medida para o cargo para o qual havia sido eleita.
Os meses se passaram e eis que aparece uma mulher jovem bonita, recatada e do lar. As qualidades típicas de gênero de Marcela Temer foram estampadas sem economia nas páginas de revistas. Qualidades? Isso mesmo, para muitos a definição da “mulher de verdade” está assentada no tripé beleza, honradez e heterossexualidade (maternidade, do lar). Ao destacar essas qualidades, os ideólogos do poder jogavam perspicazmente com as matrizes hegemônicas do gênero feminino. E por que exploraram tanto a imagem de Marcela? Para agregar valor e poder simbólico ao marido, um homem que, embora possua grande capital de gênero (homem/branco/rico/heterossexual), carece de capital político. Ele precisou vampirizar a juventude da “recatada” Marcela-vestido-azul. Mas também valeria perguntar, num esforço para me distanciar das leituras vitimistas, quem vampiriza quem?
Seja com a presidente Dilma Rousseff, seja com Marcela Temer, o que notamos foi a plasticidade da categoria gênero. Determinados atributos (passividade/ atividade; recato/ousadia; emocionalidade /racionalidade) são acionados de acordo com os interesses pontuais.
A plasticidade esconde o estruturante: as relações entre masculinidades e feminilidades não são naturais, são, ao contrário, históricas, sociais, cultuais e políticas. Joan Scott, historiadora inglesa, defende que as masculinidades/feminilidades são formas primeiras de dar sentidos às relações de poder. Ou seja, as relações de gênero devem ter o mesmo status explicativo para as estratificações sociais que as classes sociais, a religião, a raça e a sexualidade.
Essa centralidade foi explicitada midiaticamente ao longo de 2016.
O leitor atento poderá se perguntar: afinal, o que é gênero? Se não é da ordem natural, como identificar uma “mulher de verdade”? Ao afirmar o caráter plástico, estou dizendo que não existe mulher e homem in natura. O vestidinho azul de Marcela foi um ato generificado que negociou com as idealizações hegemônicas do feminino. E, ao fazer isso, ela está nos revelando que não há uma essência interior que é posta em prática quando ela veste o vestido de princesa da Disney, senta-se de pernas fechadas, com as mãos sobre os joelhos, usa uma maquiagem discreta e faz um penteado de donzela.
Ela, por inteiro, é uma citação das normas de gênero que dizem qual a forma apropriada que as “mulheres de verdade” devem empreender ao se comportar, antítese à Dilma Rousseff e eis aí o segredo. Construir uma imagem antitética do feminino performatizado pela presidente Dilma Rousseff, numa econômica discursiva de verdade e poder.
O que é gênero? Essa foi a pergunta que atormentou o juízo de parlamentares e outros poderosos no ano passado. De repente, uma turba de pessoas trans começou a exigir o reconhecimento social e legal de suas identidades de gênero. Mas como? Mulheres sem vagina? Homens sem pênis? E eis aqui, mais uma vez, o caráter não fixo, não natural, do gênero. E se a bela, recatada e do lar Marcela Temer for uma mulher trans não cirurgiada? Impossível! Gritaram muitos. Não, não é impossível. No reino da plasticidade das identidades de gênero, pouco importa o que você tenha embaixo do vestido azul. O que importa é o vestido azul. E isso não é ridículo. É poder.
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